Arahants, Bodhisattas, e Budas

Por

Bhikkhu Bodhi

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I. Ideais Budistas Concorrentes

O ideal do arahant e o ideal do bodhisatta são muitas vezes considerados os respectivos ideais orientadores do Budismo Theravada e do Budismo Mahayana. Esta hipótese não é totalmente correta, pois a tradição Theravada absorveu o ideal do bodhisatta em seu quadro e portanto, reconhece a validade de ambos objetos de aspiração: um arahant e um Buda. Por isso seria mais correto dizer que o ideal do arahant e o ideal do bodhisatta são os ideais orientadores do Budismo Original e do Budismo Mahayana. Por "Budismo Original" não quero dizer a mesma coisa que o Budismo Theravada que existe nos países do sul da Ásia. Refiro-me ao tipo de Budismo consubstanciado nos Nikayas do Budismo Theravada e nos textos correspondentes de outras escolas do Budismo Indiano que não sobreviveram à destruição geral do Budismo na Índia.

É importante reconhecer que esses ideais, nas formas que chegaram até nós, são originários de diferentes corpos de literatura decorrentes de diferentes períodos de desenvolvimento histórico do Budismo. Se não tomarmos em conta esse fato e simplesmente compararmos esses dois ideais, tais como descritos nos textos canônicos Budistas, podemos assumir que os dois foram originalmente expostos pelo próprio Buda histórico, e podemos então supor que o Buda - vivendo e ensinando na planície do Ganges, no século 5 aC - ofereceu aos seus seguidores uma escolha entre os dois, como se quisesse dizer: "Este é o ideal do arahant, que tem características tais e tais, e este é o ideal do bodhisatta, que tem características tais e tais. Escolha qualquer um que você goste." [1] Os sutras Mahayana, como o Mahaprajña-paramita Sutra e o Saddharmapundarika Sutra (Sutra do Lótus), dão a impressão de que o Buda ensinou ambos ideais. No entanto, tais sutras certamente não são originais. Ao contrário, eles são tentativas relativamente tardias para esquematizar os diferentes tipos de prática Budista que evoluíram ao longo de um período de aproximadamente 400 anos após o parinibbana do Buda.

Os textos Budistas originais - os Nikayas em Pali e os seus homólogos de outras escolas iniciais (alguns dos quais foram preservados nos Agamas em Chinês e no Kanjur Tibetano) - retratam o arahant como o ideal para o discípulo Budista. Os sutras Mahayana, compostos alguns séculos mais tarde, em um sânscrito híbrido Budista, representam o bodhisatta como o ideal para o discípulo Mahayana. Agora, algumas pessoas argumentam que, porque o arahant é o ideal do Budismo Original, enquanto o bodhisatta é o ideal do Budismo Mahayana posterior, o Mahayana deve ser um tipo mais avançado ou altamente desenvolvido do Budismo, um ensino mais definitivo em comparação com o mais simples, mais básico dos Nikayas. Isso é realmente uma atitude comum entre os adeptos do Mahayana, que vou chamar de "Elitismo Mahayana". Uma atitude contrária, comum entre os defensores conservadores dos Nikayas, rejeita todos os desenvolvimentos posteriores da história do pensamento Budista como desvio e distorção, um distanciamento da "pureza original" do antigo ensinamento. Eu chamo essa atitude de "Purismo dos Nikayas". Tomando o ideal do arahant como único válido, os puristas dos Nikayas rejeitam o ideal do bodhisatta, às vezes com força e até mesmo agressivamente.

Tenho procurado um ponto de vista que possa fazer justiça a ambas as perspectivas, a dos Nikayas e dos sutras Mahayana, um ponto de vista que possa acomodar seus respectivos pontos fortes sem cair em um sincretismo suave e fácil, sem apagar dissonâncias conceituais entre ambos, sem abandonar a fidelidade aos registros históricos - ainda reconhecendo que esses registros não são de modo algum cristalinos e é improvável estarem livres de tendências. Esta tarefa de modo algum tem sido fácil. É muito mais simples adotar o ponto de vista do "Purismo dos Nikayas" ou do "Elitismo Mahayana" e mantê-los sem pestanejar. No entanto, o problema com esses dois pontos de vista é que ambos são forçados a ignorar fatos que são desconfortáveis para os seus respectivos pontos de vista.

Embora tenha sido ordenado como um monge Budista Theravada, neste artigo não vou estar defendendo as opiniões de qualquer escola em particular do Budismo ou tentando defender um ponto de vista sectário. Durante seis anos vivi em monastérios Mahayana Chineses, e meu entendimento do Budismo tem sido particularmente enriquecido por meu contato com os ensinamentos do estudioso chinês - monge Mestre Yinshun (1906-2005) e seu pupilo mais sênior vivo, Mestre Renjun, o fundador do Monastério Bodhi, em Nova Jersey. Meu primeiro objetivo, tomando como base os textos, é extrair o que os textos dizem explicitamente, e também o que elas implicam sobre esses dois ideais concorrentes da vida Budista. No final, quando tirar as minhas conclusões, vou indicá-las claramente e elas serão inteiramente minhas. Às vezes, não vou tirar conclusões, mas em vez disso levantar questões, apontando para problemas na história do Budismo que estou perfeitamente ciente mas infelizmente não pude resolver. É bem possível que aquilo que considero um ponto de vista diferenciado e equilibrado irá atrair o fogo dos defensores partidários de ambos os lados da divisão. No entanto, do ponto de vista da minha compreensão atual, não tenho escolha a não ser correr esse risco.

II . Olhando para o Buda como o Ideal

Quero começar por fazer o que penso ser uma observação extremamente importante, mas raramente feita, a saber, que os dois tipos de textos - os Nikayas e Agamas por um lado, e os sutras Mahayana por outro - estão, em certo sentido olhando para o Buda como o ideal. Isto é, não é o caso de que o Budismo Original ignorou o Buda e ao invés disso tomou os seus discípulos como o ideal, enquanto que o Budismo Mahayana teria vindo para resgatar e recuperar o que os "hinayanistas" teriam perdido, ou seja, o ímpeto da inspiração transmitida pelo próprio Buda. Pelo contrário, quero afirmar que os discípulos de ambas as formas de Budismo - e os textos oficiais de ambas as formas de desenvolvimento Budista - estão olhando para o Buda como a figura exemplar que um verdadeiro discípulo do Dhamma deve imitar.

As duas formas diferem principalmente ao verem o Buda sob duas perspectivas diferentes. Vou usar uma analogia para ilustrar isso e depois oferecer uma explicação mais completa. O Salão com a imagem do Buda aqui no nosso monastério tem duas entradas situadas em ambos os lados da imagem do Buda. Se olharmos para a imagem, entrando na sala pelo lado oeste, o Buda aparece de uma forma, o ângulo destaca certas características do rosto. Se olharmos para a imagem entrando na sala pelo lado leste, o Buda aparece de uma forma diferente, o ângulo destaca outras características do rosto. Vejo isso como um símile adequado para a forma como as duas tradições vêem o Buda e a sua iluminação. Vejo os suttas dos Nikayas e Agamas, e os sutras Mahayana, dando-nos diferentes perspectivas sobre o Buda e a sua iluminação e assim oferecendo diferentes entendimentos sobre o que significa ser um verdadeiro discípulo do Buda.

Para caracterizar brevemente essas perspectivas, diria que os Nikayas e Agamas nos dão uma "perspectiva histórico-realista" sobre o Buda, enquanto os sutras Mahayana nos dão uma "perspectiva cósmico-metafísica". Ao usar esses termos não tenho a intenção de usar os Nikayas como trunfo contra os sutras Mahayana - embora naturalmente mantenho que os primeiros estejam mais propensos a estar mais perto dos próprios ensinamentos verbais do Buda. Pelo contrário, só estou tentando caracterizar os pontos de vista que os textos usam para olhar para o Buda e interpretar seu significado para o mundo. Assim, essas duas perspectivas definem o que o Buda realizou através de sua iluminação. Quando tomamos a perspectiva histórico-realista, o Buda se tornou um arahant. No entanto, apesar de ser um arahant, ele foi o que poderíamos chamar de "um arahant com distinções", ele foi, além disso, não simplesmente um arahant com algumas diferenças ocasionais, mas um arahant cujas diferenças eventualmente o elevaram a um nível distinto, o Bhagava, um professor do mundo, aquele que se elevou acima de todos os outros arahants. Essas diferenças abriram a porta, por assim dizer, à "perspectiva cósmica-metafísica" do Buda como uma maneira de entender aquilo que foi responsável por essas diferenças. Uma vez que a porta foi aberta, o Buda foi visto como aquele que trouxe à consumação a longa carreira do bodhisatta que se estendeu por incontáveis eras, em que ele se sacrificou de várias maneiras, muitas vezes para o bem de outras pessoas: esse é o aspecto cósmico dessa perspectiva. Mais uma vez, ele foi visto como aquele que chegou à verdade última, o Tathagata: este é o aspecto metafísico da perspectiva. Esta perspectiva cósmica-metafísica tornou-se então a característica do Mahayana.

III . A Perspectiva dos Nikayas

Como indiquei acima, tanto os Nikayas como o sutras Mahayana igualmente tomam como seu projeto demonstrar o que é exigido de quem quer "seguir os passos do Mestre." Mas eles tomam esse projeto a partir desses dois pontos de vista diferentes. Vou explicar primeiro o ponto de vista dos Nikayas e em seguida, o ponto de vista dos sutras Mahayana.

Os Nikayas começam com a nossa condição humana comum e retratam o Buda como partindo desta mesma condição humana. Ou seja, para os Nikayas o Buda começa como um ser humano partilhando plenamente da nossa humanidade. Ele nasce no nosso meio como um homem sujeito às limitações da vida humana. Enquanto cresce ele é confrontado com o inevitável envelhecimento, a doença, e a morte, que lhe revelam a miséria profunda que perpetuamente se esconde por trás da juventude, saúde, e vida, zombando de nossas alegrias mais preciosas. Como muitos outros contemplativos na Índia do seu tempo, ele busca um caminho para a libertação das aflições da vida - e como ele diz, procura a libertação principalmente para si mesmo, não com algum grande pensamento na mente de salvar o mundo. Ele sai de casa, se torna um asceta, e se engaja em uma busca incansável pela libertação. Finalmente ele encontra o caminho correto e alcança o êxtase de nibbana. Após essa realização ele considera se deve tornar o caminho disponível para os outros, e seu primeiro impulso é permanecer em silêncio. Note que ele quase segue a rota de um paccekabuddha. É apenas com as súplicas da divindade Brahma Sahampati que ele assume a tarefa de ensinar esse caminho para os outros. Sua maior conquista é ter atingido nibbana, o estado livre de toda a escravidão e sofrimento. Esse é o grande objetivo, o fim último de toda a busca espiritual, a paz além de toda a ansiedade e agitação da condição humana comum. Ao ensinar o caminho ele torna essa meta disponível para os outros, e aqueles que seguem o caminho alcançam o mesmo objetivo que ele próprio alcançou.

O Buda é o primeiro dos arahants, enquanto que aqueles que atingem a meta seguindo o seu caminho, também se tornam arahants. Nos versos de homenagem ao Buda, é dito: "Iti pi so Bhagava Araham ..." = "De fato, o Abençoado é um arahant ...". Pouco depois da sua iluminação, enquanto caminhava para Benares em busca dos cinco companheiros, um andarilho parou o Buda e perguntou quem ele era. O Buda respondeu: "Eu sou o arahant no mundo, eu sou o mestre supremo" (Ariyapariyesana Sutta). Assim, o Buda, antes de tudo se declara um arahant. A marca definidora de um arahant é a realização de nibbana na vida presente. A palavra "arahant" não foi cunhada pelo Buda, mas era de uso corrente antes mesmo dele aparecer na cena religiosa na Índia. A palavra é derivada do verbo arahati, que significa "ser digno", e portanto, significa uma pessoa que é verdadeiramente digna de veneração e oferendas. Entre os buscadores espirituais no tempo do Buda, a palavra foi utilizada para designar uma pessoa que tinha alcançado o objetivo final, pois isto é o que faz de alguém digno de veneração e oferendas. Do ponto de vista dos Nikayas, o objetivo final - a meta em termos estritamente doutrinários - é nibbana, e o objetivo em termos humanos é o arahant, o estado de uma pessoa que tenha atingido nibbana na vida presente. A Iluminação do Buda é importante porque marcou a primeira realização de nibbana nesta época histórica. Podemos dizer que o Buda se eleva acima do horizonte da história como um arahant, em sua manifestação histórica ele desponta sobre a consciência humana como um arahant.

Depois de atingir a iluminação, o Buda torna o caminho para a iluminação disponível para muitos outros. A iluminação é valorizada porque é a porta de entrada para a derradeira liberdade de nibbana. Nos Nikayas encontramos várias descrições do processo pelo qual o Buda alcançou a iluminação, e há textos correspondentes que descrevem a iluminação dos discípulos nos mesmos termos. No Ariyapariyesana Sutta o Buda diz que "estando eu mesmo sujeito ao nascimento, tendo compreendido o perigo daquilo que está sujeito ao nascimento, buscando o que não nasce, a suprema segurança contra o cativeiro, Nibbana, eu alcancei o que não nasce, a suprema segurança contra o cativeiro, Nibbana." Poucos meses mais tarde, ao ensinar o Dhamma aos seus cinco primeiros discípulos, ele diz deles: "Então o grupo de cinco bhikkhus ensinados e instruídos por mim, estando eles mesmos sujeitos ao nascimento, tendo compreendido o perigo daquilo que está sujeito ao nascimento, buscando o que não nasce, a suprema segurança contra o cativeiro, Nibbana, alcançaram o que não nasce, a suprema segurança contra o cativeiro, Nibbana." Portanto, a realização deles é descrita exatamente nos mesmos termos que o Buda usa para descrever a sua própria realização. Mais uma vez, em vários suttas - MN 4, MN 19, MN 36 - o Buda descreve a realização da iluminação como envolvendo duas fases principais. Primeiro vem a realização dos quatro jhanas. Em segundo lugar, durante as três vigílias da noite, ele realizou os três conhecimentos superiores: a lembrança de vidas passadas, o conhecimento do falecimento e renascimento dos seres de acordo com seu kamma, e o conhecimento da destruição das asavas, as impurezas primordiais que sustentam o ciclo de renascimentos. Agora, vários suttas na mesma coleção, o Majjhima Nikaya, descrevem a iluminação do discípulo exatamente dessa forma: realização dos quatro jhanas e a realização dos três conhecimentos superiores; veja por exemplo MN 27, MN 51, MN 53. Embora seja verdade que nem todos os discípulos atingiram os jhanas e muito provavelmente não alcançaram os dois primeiros conhecimentos superiores, isto parece marcar um certo padrão ideal na Sangha inicial - um padrão que o Buda e os grandes arahants compartilharam em comum.

No Sammasambuddha Sutta, o Buda diz que tanto o Tathagata como o discípulo arahant são iguais ao estarem libertados dos cinco agregados: forma, sensação, percepção, formações volitivas e consciência. Então, qual é a diferença entre eles? A resposta do Buda dá pontos à prioridade temporal como a distinção: "O Tathagata, bhikkhus, o arahant, o Perfeitamente Iluminado, é aquele que fez surgir o caminho que não havia surgido, aquele que produziu o caminho que não estava produzido, aquele que declarou o caminho que não estava declarado; ele conhece o caminho, ele encontrou o caminho, ele tem habilidade no caminho. Os seus discípulos agora seguem esse caminho e eles se tornarão possuidores dessas qualidades no futuro."

Assim, o Buda se distingue dos discípulos arahant não por alguma diferença categórica em suas respectivas realizações, mas por seu papel: ele é o primeiro nesta época histórica a alcançar a libertação e ele serve como guia incomparável em tornar conhecido o caminho para a libertação. Ele tem habilidades no ensino que mesmo o mais capaz dos seus discípulos não consegue igualar, mas no que diz respeito às suas realizações que transcendem o mundo, tanto o Buda como os arahants são Buddho - "iluminados", tendo compreendido as verdades que deveriam ser compreendidas. Ambos são nibbuto - na medida em que extinguiram as impurezas e, assim, alcançaram a paz de nibbana. Ambos são suvimutto - totalmente libertados. Eles compreenderam completamente a verdade do sofrimento, eles abandonaram o desejo - a origem do sofrimento, pois eles já realizaram nibbana - a cessação do sofrimento, e eles concluíram a prática do nobre caminho óctuplo - o caminho que conduz à cessação do sofrimento.

Tendo sido o primeiro a realizar todas essas conquistas dignas o Buda cumpre duas funções. Primeiro, ele serve como um exemplo, o exemplo supremo, quase todos os aspectos de sua vida são exemplares, mas acima de tudo a sua própria pessoa demonstra a possibilidade de alcançar a libertação perfeita de todos os grilhões da mente, a libertação completa do sofrimento, a libertação das armadilhas do nascimento e morte. Em segundo lugar, conforme dito anteriormente, ele serve como guia, aquele que conhece o caminho e pode ensiná-lo em seus detalhes mais intrincados. Como guia ele constantemente exorta seus discípulos a fazer um esforço dedicado para atingir o objetivo final, nibbana. Ele os admoesta a se esforçar tão diligentemente quanto alguém cujo turbante esteja pegando fogo iria se esforçar para apagar o fogo. Os fogos no coração humano são a cobiça, a raiva, e a delusão; a sua extinção é nibbana. Aqueles que extinguiram a cobiça, a raiva, e a delusão são arahants.

IV . Como o Buda se Distingue dos Outros Arahants

No entanto, dificilmente seria correto dizer que a prioridade temporal é a única coisa que distingue o Buda dos arahants. Para realçar a diferença vou destacar duas fórmulas que ocorrem com freqüência nos textos, uma para o Buda e outra para os arahants. Já foi mencionado acima a abertura da fórmula do Buda, agora vou mencioná-la na íntegra:

"De fato, o Abençoado é um arahant, perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime."

São mencionados nove epítetos. Desses nove, quatro são usados também para os discípulos arahant: arahant, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, desperto; cinco são usados exclusivamente para o Buda: perfeitamente iluminado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, sublime. Nota-se que destes cinco, dois: líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, se referem explicitamente ao significado do Buda para os outros, enquanto que, no meu entender, este aspecto também está implícito na palavra Bhagava (sublime). Mesmo os epítetos que significam conhecimento são destinados a mostrar que o Buda é uma autoridade confiável, isto é, em razão de sua sabedoria ou conhecimento ele é alguém em quem os outros podem confiar como fonte de orientação. Então, quando o Buda é designado um samma sambuddha - perfeitamente iluminado, isto evidencia não só a plenitude de sua iluminação, mas a sua autoridade e confiabilidade como um mestre espiritual.

A fórmula para o arahant lê assim: "Um bhikkhu é um arahant, que destruiu as impurezas, viveu a vida santa, fez o que devia ser feito, depôs o fardo, alcançou o verdadeiro objetivo, destruiu os grilhões da existência e está completamente libertado através do conhecimento supremo." Agora, todos estes epítetos são verdadeiros para o Buda, mas o Buda não é descrito desta forma pois esses termos enfatizam a realização da própria libertação, e o Buda é exaltado não primariamente como aquele que atingiu a sua própria libertação mas como aquele que abriu as portas da libertação para os outros. Ou seja, mesmo nos suttas originais dos Nikayas, o significado de "consideração-pelos-outros" já está sendo sutilmente atribuído ao status do Buda mas não é atribuído ao arahant.

Embora, de acordo com os suttas dos Nikayas, o conteúdo da iluminação do Buda não difere qualitativamente dos outros arahants, esta desempenha um papel diferente no que poderíamos chamar de o grande esquema cósmico da salvação. A Iluminação do Buda tem um componente essencialmente "dirigido-a-outros" construído desde o início. Em virtude de ter alcançado a iluminação o Buda serve como o grande mestre que "abre as portas para o Imortal." É dito que ele é a pessoa que aparece no mundo para o bem-estar e benefício de muitos, por compaixão pelo mundo, pelo bem, bem-estar e felicidade de devas e humanos (Bahujanahita Sutta). O Dvedhavitakka Sutta compara o Buda a um homem bondoso que lidera uma rebanho de gamos (significando seres sencientes) de um lugar de perigo para um lugar de segurança; O Culagopalaka Sutta compara o Buda a um pastor sábio, que conduz o gado (ou seja, os nobres discípulos) com segurança pela correnteza do rio até a outra margem. De acordo com o Culasaccaka Sutta, o Buda é homenageado por outros arahants porque: "O Abençoado é iluminado e ele ensina o Dhamma tendo como objetivo a iluminação. O Abençoado é domado e ele ensina o Dhamma para cada um domar a si mesmo. O Abençoado está em paz e ele ensina o Dhamma tendo como objetivo a paz. O Abençoado cruzou a torrente e ele ensina o Dhamma para cruzar a torrente. O Abençoado realizou nibbana e ele ensina o Dhamma para realizar nibbana." Ele é perfeito em todos os aspectos e a mais importante de suas perfeições é a sua capacidade de ensinar o Dhamma de maneiras que são mais adequadas para as capacidades das pessoas que o procuram para obter orientação. Seu ensino é sempre exatamente adequado às capacidades dos que procuram a sua ajuda, e quando seguem as suas instruções os resultados são favoráveis quer seja apenas pela obtenção da fé ou a realização da libertação.

Outros arahants certamente podem ensinar, e muitos ensinam grupos de discípulos. No entanto, como professores eles não se comparam ao Buda. Isso é assim em pelo menos dois aspectos: primeiro, o Dhamma que eles ensinam aos outros é aquele que vem do Buda, e portanto, em última análise, o Buda é a fonte de sua sabedoria. Segundo, as suas habilidades no ensino nunca se equiparam, em todos os aspectos, ás habilidades do Buda, que é o único que conhece o caminho na sua totalidade. O Buda pode funcionar de forma tão eficaz como um professor porque sua realização da iluminação - o conhecimento das quatro nobres verdades que resulta na destruição das impurezas - traz consigo a aquisição de vários outros tipos de conhecimento que são considerados recursos especiais de um Buda. Os principais dentre eles, de acordo com as fontes originais, são os dez poderes do Tathagata (Mahasihanada Sutta), que incluem o conhecimento das diferentes inclinações dos seres e o conhecimento do grau de maturidade das faculdades dos seres. Esses tipos de conhecimento permitem ao Buda entender as tendências mentais e capacidades de qualquer pessoa em busca de orientação, e ensinar essa pessoa de um modo especifico que vai provar ser o mais benéfico, tendo plenamente em conta o seu caráter e circunstâncias pessoais. Ele é portanto, "um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas." Enquanto os discípulos arahants são limitados em suas habilidades de comunicação, o Buda pode se comunicar de forma eficaz com os seres em muitos outros domínios da existência, bem como com pessoas de muitos meios diferentes de vida. Essa habilidade o torna único como "mestre de devas e humanos."

Assim, podemos ver os aspectos em que o Buda e os discípulos arahants compartilham certas qualidades em comum, acima de tudo, a sua libertação de todas as impurezas e de todos os laços que os conectam ao ciclo de renascimentos. Vemos também como o Buda se distingue de seus discípulos, a saber: (1) pela prioridade temporal da sua realização, (2) por sua função como mestre e guia, e (3) pela sua aquisição de certas qualidades e modos de conhecimento que lhe permitem funcionar como mestre e guia. Ele também dispõem de um corpo físico dotado de trinta e duas excelentes características e com outras marcas de beleza física. Estas inspiram confiança naqueles que dependem de beleza da forma.

V. O Problema do Bodhisatta

Antes mencionei que cada atitude extrema - "Purismo dos Nikayas" e "Elitismo Mahayana" - negligencia fatos que são desconfortáveis para os seus respectivos pontos de vista. O "Elitismo Mahayana" negligencia o fato de que, em sua manifestação histórica, tanto quanto podemos verificar através dos primeiros registros dos ensinamentos, o Buda não ensinou o caminho do bodhisatta, que surge apenas em documentos que começam a aparecer pelo menos um século depois da sua morte. O que o Buda ensinou de forma consistente, de acordo com os registros originais, é a realização de nibbana, alcançando o estado de arahant. O problema que assedia o "Purismo dos Nikayas" é a figura do próprio Buda, pois no Buda encontramos uma pessoa que, enquanto um arahant, não alcançou esse estado como um discípulo de um Buda, mas como um Buda. Nos próprios Nikayas ele é descrito não apenas como o primeiro dos arahants, mas como um membro de uma classe de seres - os Tathagatas - que possuem características únicas que os distinguem de todos os outros seres, incluindo os seus discípulos arahants. Os Nikayas além disso consideram os Tathagatas como supremos em toda a ordem dos seres sencientes: “Entre todos os seres que possam existir – sem patas, com duas patas, quatro patas, muitas patas; com forma ou sem forma; perceptivos, não perceptivos, nem perceptivos nem não perceptivos – o Tathagata, um arahant, perfeitamente iluminado, é considerado supremo.“ (Aggappasada Sutta).

Agora, já que o Buda se distingue de seus discípulos liberados nas formas esboçadas acima, parece quase auto-evidente que em suas vidas passadas ele deve ter seguido um curso preparatório adequado para resultar em um estado tão exaltado, ou seja, o curso de um bodhisatta. Esta conclusão é de fato um ponto de acordo comum a todas as escolas Budistas, tanto as derivadas do Budismo Original quanto as pertencentes ao Mahayana, mas também parece ser uma conclusão derivada da reflexão. De acordo com todas as tradições Budistas, atingir a iluminação suprema de um Buda requer a tomada de uma resolução deliberada e a realização das perfeições espirituais, as paramis ou paramitas, e é um bodhisatta que consuma a prática dessas perfeições. No entanto, os Nikayas e Agamas, os textos originais, são estranhamente silenciosos sobre esta questão. [2] Nos Nikayas o Buda refere a si mesmo como um bodhisatta no período anterior à sua iluminação: na vida imediatamente anterior, quando habitava no paraíso de Tusita, e durante o período final de sua vida como Gotama do clã Sakya, antes de sua iluminação. [3] Mas nada é dito que possa sugerir ter ele conscientemente seguido um curso deliberado de conduta destinado à consecução do estado de Buda. Além disso, logo após a iluminação, quando o Buda considerou ensinar ou não o Dhamma , ele diz "minha mente tendia à inação ao invés do ensino do Dhamma" (Ariyapariyesana Sutta) o que sugere que mesmo depois da sua iluminação ele poderia não ter cumprido a função de um sammasambuddha podendo ter se tornado um paccekabuddha.

No entanto há outras passagens espalhadas pelos Nikayas que nos impedem de chegar à conclusão definitiva de que o Buda de alguma forma se deparou com o estado de Buda por mero acaso, ou que a sua hesitação implicava numa verdadeira possibilidade de escolha. Essas passagens sugerem, ao contrário, que a consecução do estado de Buda já havia sido preparada em seus nascimentos anteriores. Embora não seja dito que em suas vidas passadas ele deliberadamente seguiu o caminho do bodhisatta para atingir o estado de Buda, os Nikayas o descrevem habitando no paraíso de Tusita na sua existência imediatamente anterior (como foi observado logo acima), destinado a se tornar um Buda plenamente iluminado em sua próxima vida como Gotama do clã Sakya, e isso implica que em suas vidas passadas ele deve ter cumprido os pré-requisitos mais exigentes para assumir um papel tão exaltado, para se tornar o mais elevado e mais altamente venerado ser em todo o mundo. Quando ele penetra o ventre de sua mãe, uma grande luz imensurável aparece no mundo ultrapassando a luz dos devas, e essa luz aparece novamente no seu nascimento. Ao nascer ele é primeiro recebido por divindades e jatos de água jorram do céu para lavá-lo junto com a sua mãe. Imediatamente após o seu nascimento, ele dá sete passos e se declara o melhor do mundo (Acchariya-abbhuta Sutta). Os devas entoam canções de alegria declarando que o bodhisatta surgiu para o bem-estar e a felicidade do mundo humano. Tais passagens, é claro, podem ser vistas como acréscimos posteriores aos Nikayas, indicando uma fase em que a "Lenda do Buda" já estava fazendo incursões sobre os textos originais. No entanto, dada a operação da lei da causa e efeito nas dimensões espirituais do domínio humano, parece virtualmente impossível que qualquer um poderia ter atingido a estatura extraordinária de um Buda sem ter feito um esforço deliberado através de muitas vidas para alcançar tal suprema realização.

Apesar dessas considerações, nos Nikayas o Buda nunca é visto ensinando os outros a entrarem no caminho de bodhisatta. Sempre que ele exorta seus discípulos monásticos a se empenharem por algum objetivo, é para se esforçarem pelo estado de arahant, pela libertação, por nibbana. Sempre que discípulos monásticos vêm ao Buda, eles pedem orientação para seguir o caminho do arahant. Os monges que o Buda elogia na Sangha são aqueles que atingiram o estado de arahant. Discípulos leigos muitas vezes atingem os três estágios mais baixos da libertação, do que entrou-na-correnteza ao que não-retorna, aqueles que não têm o potencial para realizações supramundanas visam um renascimento celestial ou um renascimento afortunado de volta ao reino humano. Nenhuma menção é feita, no entanto, ao discípulo leigo trilhando o caminho do bodhisatta, muito menos de uma dicotomia entre arahants monásticos e leigos bodhisattas.

No entanto não precisamos simplesmente aceitar os Nikayas pelo seu valor nominal, mas podemos levantar questões. Por que nunca encontramos nos Nikayas algum exemplo de um discípulo indo ao Buda para pedir orientação sobre como seguir o caminho de um bodhisatta para o estado de Buda? E por que o Buda nunca é visto exortando seus discípulos a praticarem o caminho de um bodhisatta? As próprias perguntas parecem perfeitamente legítimas. Tentei trabalhar em várias explicações, mas sem sucesso. Uma explicação é que houve casos em que isso aconteceu, mas eles teriam sido filtrados pelos compiladores dos textos porque tais ensinamentos não eram compatíveis com os ensinamentos que visam o estado de arahant. Esta hipótese parece improvável porque se os discursos sobre o caminho de um bodhisatta tivessem a marca dos genuínos ensinamentos do Buda é improvável que estes fossem omitidos pelos monges compiladores dos textos. Outra explicação é que, na fase inicial do Budismo, a fase pré- textual, o Buda foi simplesmente o primeiro arahant que ensinou o caminho para o estado de arahant, e ele não diferia significativamente daqueles seus discípulos arahants que possuíam os três tipos de conhecimento verdadeiros e os iddhis, os poderes suprahumanos. De acordo com essa descrição, os Nikayas são o produto de várias gerações de elaboração monástica, e assim já mostram traços da apoteose de Buda, sua elevação a um status elevado (mas ainda não suprahumano).

Nessa hipótese, se pudéssemos ter uma máquina do tempo e voltar ao próprio tempo do Buda, descobriríamos que o Buda diferia dos outros arahants principalmente na prioridade temporal de sua realização e, em certas habilidades que possuía como mestre, mas essas diferenças não seriam tão significativas como fazem crer os Nikayas originais. No entanto, essa posição parece despir o Buda daquilo que ele possuía de mais marcante: sua incrível capacidade de atingir profundamente os corações daqueles que vinham até ele para obter orientação e ensinar-lhes um caminho original apropriado para suas características e situações. Essa capacidade prenuncia uma profunda compaixão, espírito de serviço abnegado, que se harmoniza melhor com o conceito posterior do bodhisatta do que com o conceito canônico do arahant tal como o vemos retratado, por exemplo, em muitos dos poemas do Theragatha ou os poemas muni do Sutta-Nipata.

Em última análise, tenho que confessar a minha incapacidade de fornecer uma solução perfeitamente convincente para esse problema. Em vista do fato de que em tempos posteriores muitos Budistas, em terras Theravada bem como no mundo Mahayana, foram inspirados pelo ideal do bodhisatta, é desconcertante que nenhum ensinamento sobre o caminho do bodhisatta ou das práticas do bodhisatta esteja incluído nos discursos considerados como sendo do período mais antigo da história literária Budista. Este continua a ser um enigma - para mim, pessoalmente, e também creio eu, um quebra-cabeça para a historiografia Budista. Em todo caso, os textos que herdamos não mostram uma diferença tão substancial entre a função do Buda na "consideração-por-outros" e a assim chamada "auto-iluminação" dos arahants, tal como as tradições posteriores fazem parecer. Os Nikayas mostram suficiente ênfase na atividade altruísta que visa compartilhar o Dhamma com os outros; reconhecidamente porém, a maior parte dessa ênfase vem do próprio Buda sob a forma de instruções para seus discípulos. Assim, vários textos distinguem as pessoas em quatro tipos: aquelas preocupadas apenas com o próprio bem, aquelas preocupadas só com o bem dos outros, aquelas preocupadas com o bem de nenhum dos dois, e aquelas preocupadas com o bem de ambos, esses textos elogiam como o melhor aquelas que são dedicadas ao bem de ambos. E o que se entende por ser dedicado ao bem de ambos é a prática do nobre caminho óctuplo e ensinar os outros a praticá-lo; observar os cinco preceitos e incentivar os outros a observá-los, trabalhar para eliminar a cobiça, raiva e delusão e incentivar os outros a eliminá-las (Sikkhapada Sutta). Em outros suttas o Buda exorta todos aqueles que conhecem os quatro fundamentos da atenção plena a ensiná-los aos seus familiares e amigos (Mitta Sutta); o mesmo é dito sobre os quatro fatores para entrar-na-correnteza (Mittamacca Sutta); e as quatro nobres verdades (Mitta Sutta). No início do seu ministério, o Buda exorta os seus discípulos a ir e pregar o Dhamma "por compaixão pelo mundo, pelo bem, bem-estar e felicidade de devas e seres humanos" (Vinaya I 21). Entre as qualidades importantes de um monge notável estão o aprendizado e a habilidade em expor o Dhamma, duas qualidades que são diretamente relevantes para o benefício dos outros. Além disso, devemos lembrar que o Buda estabeleceu uma ordem monástica vinculada por regras e regulamentos concebidos para fazê-la funcionar como uma comunidade harmoniosa, e essas regras muitas vezes exigem a renúncia aos próprios interesses em benefício do bem maior. Quanto aos discípulos leigos, o Buda elogia aqueles que praticam para seu próprio bem, para o bem dos outros, e para o bem de todo o mundo. Muitos discípulos leigos proeminentes converteram seus colegas e vizinhos para o Dhamma e os guiaram para a prática correta.

Assim, podemos ver que enquanto o Budismo Original enfatizava que cada pessoa é responsável por seu próprio destino, afirmando que ninguém pode purificar outros ou resgatar outros das misérias do Samsara, também incluía uma dimensão altruísta que o distinguia da maioria dos outros sistemas religiosos que floresceram ao seu lado no norte da Índia. Essa dimensão altruísta pode ser vista como a "semente" da qual a doutrina do bodhisatta se desenvolveu. Pode também ser considerado um dos elementos do Budismo Original que contribuíram para o surgimento do Mahayana.

VI . A Transição para o Conceito do Bodhisatta Pleno

Talvez para que uma doutrina completa do bodhisatta pudesse emergir no Budismo algo mais seria necessário do que a concepção do Buda que encontramos nos textos originais dos Nikayas. Assim, o projeto de comparar o arahant dos Nikayas com a figura do bodhisatta dos sutras Mahayana pode estar um tanto equivocado. A meu ver, um dos fatores que fundamentam a emergência da doutrina do bodhisatta foi a transformação do conceito original do Buda dos textos dos Nikayas na figura do Buda da fé religiosa Budista e das lendas. Isto ocorreu principalmente na era do Budismo sectário, ou seja, entre a fase do Budismo Original representado pelos Nikayas e a ascensão do Budismo Mahayana inicial. Durante esse período, dois desenvolvimentos significativos do conceito do Buda ocorreram. Primeiro, o número de Budas foi multiplicado e segundo, os Budas passaram a ser dotados de qualidades cada vez mais exaltadas. Estes desenvolvimentos ocorreram de modo um pouco distinto nas diferentes escolas Budistas, mas certas características comuns os uniram.

Os Nikayas já mencionam seis Budas anteriores à Gotama e um que irá sucedê-lo - Metteyya (Skt: Maitreya). Agora, visto que o tempo cósmico não tem um começo discernível ou um fim concebível, foi elaborada a inferência de que devem ter existido Budas ainda mais antigos e, assim, o número de Budas do passado foi aumentado; histórias sobre alguns desses Budas entraram em circulação e os trouxeram à vida. Desde que o espaço também era ilimitado, com sistemas-mundo como o nosso espalhados nas "dez direções", algumas escolas postularam a existência no presente de Budas em outros sistemas-mundo além do nosso próprio - Budas ainda vivos que podem ser venerados e que através do poder da meditação podem realmente ser vistos através da visão contemplativa.

Os textos do Budismo sectário aumentaram as faculdades de conhecimento do Buda até que, eventualmente, lhe foi atribuído nada menos do que a onisciência. Ele veio a possuir inúmeros poderes milagrosos. Dezoito "Buda Dharmas" especiais, não mencionados nos suttas originais, foram adicionados. Lendas e histórias entraram em circulação descrevendo as formas maravilhosas através das quais ele ensinou e transformou as pessoas. Algumas dessas histórias já eram encontradas nos suttas: as histórias de seus encontros com o assassino Angulimala, o demônio feroz Alavaka, o pobre leproso Suppabuddha, o brâmane zangado Bharadvaja. Essas histórias aumentaram exponencialmente pintando um retrato do Buda como um mestre incrivelmente engenhoso que redime da miséria e da delusão pessoas de todos os tipos. Ele desfaz o orgulho dos brâmanes arrogantes, ele traz consolo para mães desesperadas e viúvas miseráveis, ele dissipa a complacência de guerreiros orgulhosos e belas cortesãs, ele supera estudiosos inteligentes em debates e ascetas rivais em façanhas de poderes sobrenaturais, ele ensina as maravilhas da generosidade para milionários avarentos, ele inspira diligência em monges desatentos, ele ganha a reverência dos reis e príncipes. Quando Budistas devotos olhavam para trás para o seu falecido Mestre e ponderavam sobre a questão do quê foi responsável por sua grandeza extraordinária, em pouco tempo perceberam que o mais marcante foi a sua compaixão sem limites. Não contentes em confinar a sua preocupação compassiva a uma única vida, eles a viram espalhada por inúmeras vidas na cadeia da existência no samsara. Assim, a imaginação criativa deu à luz a um vasto tesouro de histórias de nascimentos, ou seja, dos nascimentos anteriores do Buda. Essas histórias - os Jatakas ou contos dos nascimentos - relatavam como ele se preparou para a missão como um Buda, trilhando o caminho de um bodhisatta por eras inimagináveis.

A tônica das histórias mais memoráveis é o serviço e auto-sacrifício. Foi por servir aos outros e sacrificar-se para o bem deles que o bodhisatta ganhou os méritos e adquiriu as virtudes que o qualificaram a atingir o estado de Buda. Assim, no pensamento Budista que se desenvolveu depois das escolas do Budismo Original, a dimensão altruísta da iluminação de Buda veio para o primeiro plano, literalmente esculpida em pedra - em pilares e monumentos que se estendem da Índia à Indonésia - e imortalizada em histórias e poesia. A partir dessa perspectiva, a iluminação do Buda foi significativa, não apenas porque abriu o caminho para nibbana para muitos outros, mas porque consumava uma carreira com eras de duração que começou com uma motivação altruísta e perdurou por muitas eras sustentada por uma decisão altruísta. Durante essa carreira, assim foi interpretado, o bodhisatta se qualificou para o estado de Buda desenvolvendo certas virtudes supremas, as paramis ou paramitas, que então tomaram o lugar que os fatores do nobre caminho óctuplo mantiveram no Budismo Original. Esse entendimento do Buda, devo salientar, era comum a todas as escolas do Budismo sectário, incluindo o Theravada.

Durante a era do Budismo sectário, as escolas Budistas admitiam três "veículos" para a iluminação: o veículo do discípulo arahant - o savaka-yana, caminho seguido pelo maior número de discípulos; o veículo do "iluminado solitário" que realiza a iluminação sem um mestre e não ensina - o paccekabuddha-yana, que é mais difícil; e o veículo do aspirante a Buda - o bodhisatta-yana. Uma vez que isso se espalhou pelo Budismo na Índia, a idéia dos três veículos não foi apenas tomada pelo Mahayana, mas acabou também sendo absorvida pelo conservador Budismo Theravada. Assim, lemos nos comentários Theravada, como os de Acariya Dhammapala e outros, sobre os mesmos três yanas ou os três tipos de Bodhi: a iluminação dos discípulos, dos paccekabuddhas e dos samma sambuddhas [4].

VII . O Surgimento do Mahayana como o Veículo do Bodhisatta

Agora, em algum momento durante esse período a interpretação altruísta da iluminação do Buda, que culminou com a concepção do caminho do bodhisatta, fluiu de volta à comunidade Budista e pelo menos para alguns membros assumiu uma força prescritiva. Na medida em que refletiam profundamente sobre o que significava ser um discípulo ideal do Buda, esses discípulos concluíram que para seguir os passos do Buda no sentido mais elevado, não era mais suficiente simplesmente seguir o nobre caminho óctuplo que visa a realização de nibbana. Isso ainda era visto como uma opção válida, uma opção que culminava com a libertação para si mesmo e para aqueles que poderiam ser influenciados imediatamente através do ensino e exemplo, mas, eles mantiveram, o próprio Buda havia visado um estado que lhe permitisse promover o bem-estar e felicidade de hostes de devas e humanos. Assim, esses pensadores sentiram que a escolha superior, a forma mais elevada de seguir o Buda, era de se estabelecer na mesma busca que o Buda tinha se estabelecido: tomando os votos de um bodhisatta e seguindo o caminho do bodhisatta. Isso teria marcado o surgimento do bodhisatta-yana como uma concepção do modo de vida Budista ideal, o caminho que o verdadeiro discípulo do Iluminado deveria seguir.

Esse ideal surgiu de um ponto de partida diferente do Budismo Original, uma perspectiva visionária distinta. Enquanto o Budismo Original toma (como vimos acima) a condição humana comum como ponto de partida, e até mesmo vê o Buda começando como um ser humano sujeito a fraquezas humanas, o Budismo Mahayana do período inicial toma como ponto de partida o plano de fundo cósmico de longo alcance para a realização do estado de Buda. Isto remonta à primeira concepção de bodhicitta, os votos originais, e a prática dos paramitas ao longo de incontáveis vidas, tratando-os como o paradigma para a prática. Ou seja, o Mahayana vê esse processo, não apenas como uma descrição do caminho que um Buda segue, mas como uma recomendação do caminho que seus verdadeiros discípulos devem seguir; algumas versões posteriores do Mahayana vêem isso como a realização do potencial para o estado de Buda, o tathagatagarbha ou "embrião do Tathagata" que já está presente profundamente dentro de cada um.

Podemos imaginar um período em que o bodhisatta-yana tenha sido conscientemente adotado por um número crescente de Budistas, provavelmente primeiro em pequenos círculos de monges que procuravam se orientar pelos suttas dos Nikayas ou Agamas e as histórias do Jataka que lidam com as vidas passadas do Buda. Eles ainda eram membros das comunidades Budistas iniciais e provavelmente ainda nem mesmo tinham tomado consciência de si mesmos como ramificando-se para formar uma nova tradição. Eles não pensariam em si mesmos como "Budistas Mahayana", tal como entendemos o termo hoje, mas simplesmente como comunidades de Budistas comprometidos em seguir o bodhisatta-yana, que pode ter sido designado "Mahayana" simplesmente no sentido de que se tratava de um "caminho grande" para a iluminação. No entanto, embora por algum tempo eles possam ter tentado permanecer dentro do escopo do Budismo tradicional, uma vez que tenham começado a propagar abertamente o ideal do bodhisatta eles teriam se confrontado abertamente com aqueles que aderiam mais rigorosamente às idéias e ideais dos suttas mais antigos e mais bem estabelecidos. Esse confronto teria aumentado a sua noção de distinção e, assim, levado à sua incorporação consciente em comunidades que giravam em torno de uma nova visão do caminho e meta Budista.

Neste ponto, eles poderiam ter achado que os ensinamentos dos suttas dos Nikayas - Agamas, que descrevem as práticas necessárias para atingir a libertação pessoal do ciclo de nascimento e morte, já não satisfaziam as suas necessidades. Eles é claro ainda aceitavam esses ensinamentos como autoridade, uma vez que vieram diretamente do Buda, mas eles também sentiram a necessidade de escrituras enraizadas na mesma autoridade que fornecessem ensinamentos detalhados sobre as práticas e os estágios do caminho do bodhisatta, que visassem nada menos que o estado de Buda perfeito. Provavelmente foi para preencher essa necessidade que os sutras Mahayana começaram a aparecer na cena Budista na Índia. Exatamente como esses sutras foram primeiramente compostos e fizeram sua aparição é um assunto sobre o qual a erudição contemporânea ainda está em grande parte no escuro [5] pois tudo o que temos à nossa disposição são sutras Mahayana que são bastante bem desenvolvidos e representam o Budismo Mahayana que poderíamos chamar de "fase dois" ou mesmo "fase três" de seu desenvolvimento. Infelizmente não podemos usá-los para entender a fase mais inicial do Mahayana, quando esses sutras primeiro começaram a tomar forma, ou até mesmo antes desse período, quando as idéias Mahayana ainda estavam em fase de gestação buscando articulação sem ter ainda se expressado em quaisquer documentos literários.

Agora, há duas atitudes visíveis nos sutras Mahayana em relação ao paradigma original baseado no ideal do arahant. Um deles é afirmá-lo como válido para o discípulo Budista típico, exaltando o caminho do bodhisatta como o veículo apropriado para a pessoa com aspirações excelentes. Essa atitude trata o ideal do arahant, ou o paradigma do savaka, com respeito e admiração, ao mesmo tempo esbanjando os maiores elogios para o ideal do bodhisatta. Quando essa atitude é adotada os dois caminhos - em conjunto com o caminho para a iluminação de um paccekabuddha - tornam-se três veículos válidos, a escolha de qual deles é deixada ao discípulo. A outra atitude vista nos sutras Mahayana é a desvalorização e difamação. Ela envolve não simplesmente comparar o caminho para o estado de arahant desfavoravelmente com o caminho do bodhisatta, mas menosprezar e ridicularizar o velho ideal do Budismo Original, às vezes tratando-o quase com desprezo. A primeira atitude é vista em textos Mahayana iniciais como o Ugrapariprccha Sutra [6]. Com o tempo, no entanto, a segunda atitude tornou-se mais proeminente, até encontrarmos textos como o Vimalakirti Sutra que ridiculariza os grandes discípulos de Buda como Sariputta, Upali e Punna Mantaniputta, ou o Asokadatta Sutra em que uma jovem menina bodhisatta se recusa a mostrar respeito aos grandes discípulos arahants, ou o Saddharmapundarika Sutra que compara o nibbana dos arahants com o salário de um trabalhador contratado. Em alguns sutras é até mesmo dito que os arahants sentem vergonha e reprovam a si mesmos por terem alcançado o estado de arahant, ou que os arahants são vaidosos e deludidos. É indiscutível que os sutras Mahayana muitas vezes têm passagens de grande profundidade e beleza. Porém acredito que uma atitude mais conciliatória em relação ao Budismo Original teria facilitado a tarefa de alcançar a harmonia entre as diferentes escolas Budistas do que ocorre na atualidade. Dentro da escola Theravada os ensinamentos Mahayana do ideal do bodhisatta e a prática das paramis foram incorporados aos comentários posteriores, mas nunca de uma forma que envolvia denegrir a mais antiga, mais histórica, meta Budista do estado de arahant.

VIII . Dissolvendo os Antigos Estereótipos

Nesta parte da apresentação quero usar uma análise histórica para dissolver antigos estereótipos e preconceitos que têm dividido discípulos das duas principais formas de Budismo. Com base nisso, podemos trabalhar para uma saudável, ao invés de competitiva, integração de ambas. Os dois principais estereótipos são os seguintes:

( 1 ) Os arahants e os Budistas Theravada estão preocupados exclusivamente com a sua própria salvação em oposição ao benefício dos outros, eles têm uma limitada fixação na libertação pessoal porque estão "amedrontados com o nascimento e a morte", por conseguinte têm pouca compaixão pelos outros e não realizam atividades destinadas a beneficiá-los.

( 2 ) Seguidores do ideal do bodhisatta e Budistas Mahayana estão tão envolvidos em projetos sociais que visam beneficiar os outros que não se ocupam com a prática que o Buda atribuiu aos seus discípulos, ou seja, a domesticação da mente e o desenvolvimento do insight. Eles se sobrecarregam com deveres sociais e abandonam a prática de meditação.

Vou tratar os dois estereótipos na ordem, começando com os arahants. Embora o Buda tenha sido o pioneiro na descoberta do caminho para a libertação, isto não significa que os seus discípulos arahants egoisticamente apenas colheram os benefícios do caminho e não fizeram nada pelos outros. Ao contrário, nos suttas podemos ver que muitos deles se tornaram grandes mestres por mérito próprio e foram capazes de guiar outros para a libertação. Os mais conhecidos entre eles são Sariputta, Mahakaccana, Moggallana e Ananda. O monge Punna arriscou a vida para ensinar o Dhamma para as pessoas do país bárbaro Sunaparanta. Havia monjas como Khema e Dhammadinna que eram proeminentes pregadoras. Patacara que foi um mestre da disciplina, e muitos outros. Por quatrocentos anos os textos Budistas foram preservados por via oral, transmitidos de professores para alunos, e obviamente tinha de haver milhares de monges e monjas que dedicaram suas vidas para aprender os textos e ensiná-los aos alunos, todos com a finalidade de preservar o bom Dhamma e Vinaya para o mundo.

Ao longo da história o exemplo estabelecido pelos grandes discípulos arahants do Buda tem sido o modelo para os seguidores do ideal do arahant. Enquanto aqueles que perseguem esse ideal não fazem promessas grandiosas como os seguidores do ideal do bodhisatta, eles são inspirados pelo exemplo do Buda e seus grandes discípulos a trabalhar com a melhor de suas capacidades pela elevação espiritual e moral dos outros: por exemplo através do ensino e através da influência espiritual direta, inspirados pelo comando do Buda para "seguir em frente para o bem-estar de todos, pela felicidade de muitos, por compaixão pelo mundo, pelo bem, bem-estar e felicidade de devas e seres humanos."

O seguidor do ideal do arahant em muitos aspectos adota um estilo de vida semelhante ao do Buda. Tomo como exemplo aqueles que podem ainda não ter alcançado o estado de arahant em si mas que estão praticando nesse sentido e já alcançaram algum estágio mais elevado de realização espiritual. No início eles podem ir para um monastério na floresta, ou para um centro de meditação para treinar com um professor competente. Depois de ter atingido um nível de maturidade suficiente para praticar por conta própria, eles vão para algum lugar solitário para desenvolver a sua prática por um período que pode durar cinco anos ou mais. Então, num certo ponto, as suas realizações vão começar a exercer uma influência sobre os outros. Eles podem começar a ensinar por sua própria iniciativa, ou o professor pode pedir-lhes para começar a ensinar, ou os futuros alunos podem perceber que alcançaram algum estado superior e pedem a sua orientação. Desse ponto em diante eles começam a ensinar, e com o tempo podem se tornar mestres espirituais bem respeitados com muitos discípulos e muitos centros sob sua orientação.

Em contraste com a imagem da "libertação pessoal egoísta" que os Budistas Mahayana atribuem aos arahants e aqueles que seguem o savaka-yana, os mais eminentes mestres da tradição Theravada muitas vezes ensinam milhares de discípulos, monásticos e leigos. Alguns podem trabalhar dez ou mais horas por dia. Por exemplo, numa época recente, o Ven. Mahasi Sayadaw estabeleceu centenas de centros de meditação na Birmânia e presidiu o Sexto Concílio Budista; Ajaan Chah liderava um monastério principal e estabeleceu muitos monastérios afiliados na Tailândia, sendo um deles dedicado aos monges estrangeiros; Ven. Pa Auk Sayadaw, U Pandita, e Bhante Gunaratana - atuais professores de meditação Theravada - viajam por todo o mundo dando cursos e dirigindo retiros; Ajaan Maha Boowa, aos 93 anos, tem a reputação de ser um arahant, apóia sessenta hospitais na Tailândia e os visita regularmente para consolar pacientes e distribuir medicamentos. Aqueles que não são competentes para a função como professores de meditação podem ainda se tornar mestres dos textos e da filosofia Budista e se dedicar de forma abnegada a orientar os outros na compreensão do Dhamma, através da formação de monges e monjas, dando instruções para os leigos, ensinando em escolas monásticas Budistas, ou através da pregação em templos Budistas.

Do ponto de vista Theravada, enquanto que o trabalho social é certamente louvável, de todos os benefícios que podem ser conferidos aos outros, o benefício mais precioso é o presente do Dhamma. Assim, a busca pela libertação como um arahant não é um compromisso pessoal puramente privado, mas tem uma influência de longo alcance e pode ter um impacto sobre toda uma sociedade. Nos países tradicionais Theravada, antes da influência corruptora do Ocidente, toda a vida da comunidade girava em torno do Dhamma. Os monges que meditavam nas florestas e montanhas eram a inspiração e modelo para a sociedade, aqueles que pregavam e ensinavam nas aldeias ajudavam a transmitir o Dhamma para as pessoas. A comunidade leiga, desde o rei até os aldeões, viam como seu dever principal apoiar a Sangha. Assim, o objetivo supremo do arahant se tornou o ponto focal para todo um sistema social inspirado e sustentado pela devoção ao Dhamma.

Aqueles que buscam a meta de nibbana não esperam até que se tornem arahants para começar a ajudar os outros. Dentro desse sistema a generosidade é considerada como a base para todas as outras virtudes, é a primeira base para o mérito e a primeira das dez paramis. Assim, as escrituras em pali, e os monges nas suas pregações, incentivam as pessoas a dar o melhor que possam. Os leigos satisfazem as necessidades materiais simples da Sangha como a comida, mantos, moradia, e medicamentos. Eles também dão generosamente aos pobres e desfavorecidos. Por exemplo, no Sri Lanka campanhas de doação de sangue são comuns em feriados Budistas, e muitas pessoas doam seus olhos para bancos de olhos e seus órgãos para a investigação médica após a sua morte. Soube recentemente que no Sri Lanka, mais de 200 monges doaram rins, sem qualquer intenção de remuneração ou qualquer outro benefício pessoal, apenas para ter o privilégio de dar um órgão do corpo. Monges com conhecimento do Dhamma e habilidade para discursar se tornam pregadores e professores. Aqueles com habilidades gerenciais podem se tornar administradores dos monastérios. Os poucos que estão fortemente motivados para fazer um esforço para realizar a libertação nesta vida dedicam sua energia meditando em eremitérios florestais. Professores de meditação realizados irão dedicar o seu tempo ao ensino da meditação e também vão tentar encontrar tempo para desenvolver sua própria prática. Às vezes eles têm que dedicar menos tempo à sua própria prática a fim de cumprir os deveres de ensino.

Basta esse tanto sobre os mal-entendidos com relação ao ideal do arahant. Agora para o ideal bodhisatta. Penso que seria uma simplificação exagerada equiparar a busca do ideal do bodhisatta com o envolvimento no serviço social e assumir que um bodhisatta renuncia a todo treinamento no caminho para a libertação. No meu entendimento o fundamento do caminho do bodhisatta é o surgimento de bodhicitta, a aspiração pela iluminação suprema. Isso geralmente ocorre apenas através do treinamento diligente em meditação. De acordo com as fontes oficiais sobre a meditação Budista Mahayana, para gerar bodhicitta, a mente deve ser treinada sistematicamente para perceber todos os seres como mães e pais, irmãs e irmãos, e despertar em relação a eles ilimitada bondade amorosa e grande compaixão, até que essa percepção se torne natural e espontânea. Isso não é nada fácil. Li que o Dalai Lama teria dito que ele mesmo experimentou a verdadeira bodhicitta apenas algumas vezes, por alguns momentos de cada vez, de modo que isto nos dá uma idéia de quão difícil essa conquista deve ser. Não pode ser conquistada apenas ocasionalmente se envolvendo em um pouco de serviço social e, em seguida, se convencer de que despertou a bodhicitta.

É verdade que os votos do bodhisatta são de trabalhar para o bem-estar dos outros de uma forma mais ampla do que o seguidor do veículo do savaka, mas todos esses esforços são superficiais se não forem motivados e suportados pela verdadeira bodhicitta. Além de gerar a aspiração pela bodhicitta, o bodhisatta deve aplicar a bodhicitta através da prática das seis paramitas e outros grandes feitos de abnegação. As paramitas começam com dana-paramita, a perfeição da generosidade. O engajamento social pode certamente ser incluído nessa categoria, uma vez que envolve dar aos outros oferendas materiais e a oferenda da segurança. Mas essas oferendas, dignas que sejam, não se igualam em valor ao presente do Dhamma, o presente do Dhamma leva à extinção definitiva do sofrimento. Ter os qualificativos para dar essa oferenda requer habilidades que vão além do serviço social.

A próxima perfeição espiritual é sila-paramita, a perfeição da virtude, e o engajamento social pode ser incluído sob a virtude da ação altruísta, atos que beneficiam outros. Estando empenhado no serviço social um bodhisatta deve também praticar a paciência - paciência em suportar condições difíceis, paciência em suportar desrespeito e abuso de outras pessoas, de modo que ele está cumprindo khanti-paramita, a perfeição da paciência. E o trabalho de serviço social exige energia. Isso ajuda a cumprir o virya-paramita, a perfeição da energia. Assim, o engajamento social pode contribuir para o cumprimento de quatro das seis paramitas.

Mas o bodhisatta deve também cumprir dhyana-paramita e prajña-paramita, as perfeições da meditação e da sabedoria, e estas duas perfeições exigem a adoção de um estilo de vida contemplativo. Os Sutras Prajña-Paramita dizem que prajña-paramita guia e dirige as outras cinco paramitas, e as outras cinco paramitas tornam-se "perfeições" ou virtudes transcendentes somente quando estão conectadas com prajña-paramita. Mas prajña-paramita só pode ser alcançado através da prática contemplativa, dedicando-se a um estilo de vida semelhante ao de alguém que busca o estado de arahant.

Os sutras Mahayana iniciais, como o Ugraparipccha Sutra, não recomendam que o bodhisatta monástico novato mergulhe no trabalho social, antes, lhe mostram a floresta e o instruem a dedicar seus esforços à meditação. Se olharmos para a história do Budismo Mahayana, seja na Índia, China ou Tibet, veremos que os grandes mestres Mahayana como Nagarjuna, Asanga e Atisha na Índia; Huineng, Zhiyi e Xuancang (Hsuan Tsang) na China; Longchen, Gampopa e Tsongkhapa no Tibete, não eram conhecidos por seu engajamento no serviço social mas por suas realizações como filósofos, estudiosos, e mestres de meditação. O próprio Buda alcançou as mais altas realizações na meditação. Visto que os bodhisattas aspiram tornar-se Budas, é natural que eles devam aperfeiçoar as habilidades de meditação que são as características de um Buda.

Embora a motivação e a base filosófica para os seguidores do veículo do bodhisatta sejam diferentes das dos seguidores do veículo do savaka, os estilos de vida dos dois não são muito diferentes. As imagens populares do arahant recluso, solitário, e o bodhisatta gregário, superativo, são ficções. Na vida real, os dois se assemelham muito mais do que se poderia pensar. Os arahants, e aqueles que procuram alcançar o estado de arahant, muitas vezes trabalham assiduamente para a melhoria espiritual e material de seus semelhantes. Os bodhisattas, e aspirantes ao estado de bodhisatta, muitas vezes devem passar longos períodos em meditação solitária, cultivando as habilidades de meditação que serão necessárias para atingir o estado de Buda. Eles também terão de estudar todas as doutrinas e os caminhos do veículo do savaka, mas sem realizar esses caminhos. Os bodhisattas terão que aprender a entrar nas absorções meditativas, praticá-las e, finalmente, dominá-las. Eles terão de contemplar as três características da impermanência, sofrimento, e não-eu. Eles terão que adquirir o insight das três características. Eles diferem dos savakas na medida em que um savaka pretende usar o insight para atingir a realização de nibbana. Um bodhisatta vai ligar a sua prática do caminho com a aspiração da bodhicitta, os votos do bodhisatta, e o espírito da grande compaixão. Sustentado por esses apoios, um bodhisatta será capaz de contemplar a natureza da realidade, sem realizar nibbana, até que todas as qualidades que chegam à perfeição no estado de Buda tenham amadurecido. Entre elas está a perfeição da generosidade e a atribuição de benefícios aos seres sencientes. Mas o maior presente que se pode dar é o presente do Dhamma, e o benefício mais amável que se pode conferir aos seres sencientes é ensinar-lhes o Dhamma, orientá-los no Dhamma. Apesar de um bodhisatta poder certamente se envolver no serviço social como uma expressão de sua compaixão, para alcançar os estágios mais elevados do caminho do bodhisatta o aspirante irá necessitar de uma gama diferente de habilidades que as exercidas no engajamento social, habilidades que estão mais próximas das possuídas pelo arahant.

IX . Para uma Integração Saudável dos Veículos

No meu ponto de vista ambos os caminhos (ou veículos) - o caminho do arahant e o caminho do bodhisatta - podem ser vistos como expressões válidas dos ensinamentos do Buda. No entanto, ambos devem estar de acordo com certos critérios formais. Em questões de princípio eles devem estar de acordo com tais ensinamentos como as quatro nobres verdades, as três características. e a origem dependente; e em matéria de prática eles devem incorporar éticas salutares e seguir o esquema do treinamento tríplice: virtude, concentração e sabedoria. No entanto, mesmo quando esses critérios são satisfeitos, devemos evitar ainda mais qualquer tipo de sincretismo que leve a denegrir os ensinamentos originais do Buda histórico, considerando-os como meros expedientes ou adaptações ao ambiente religioso na Índia de sua época tornados irrelevantes pelos ensinamentos que surgiram em períodos posteriores. O tipo de tolerância necessária é aquele que respeita a autenticidade do Budismo Original na medida em que podemos determinar sua natureza a partir dos mais antigos registros históricos, mas também é capaz de reconhecer a capacidade do Budismo de passar por genuínas transformações históricas que trazem à manifestação potenciais ocultos do ensinamento original, transformações não necessariamente predestinadas a surgir a partir do ensino inicial, mas que, no entanto, enriquecem a tradição brotando do Buda como seu manancial.

Quando adotamos essa abordagem, podemos verdadeiramente venerar aqueles praticantes que trabalham com afinco para realizar o objetivo final do Dhamma aqui e agora, para realizar nibbana, a extinção do sofrimento, seguindo o nobre caminho óctuplo até a sua conclusão. Podemos venerar aqueles que glorificam o ensino, mostrando o que realmente leva à libertação final, para o mergulho no estado não-nascido e incondicionado, o elemento imortal, tantas vezes exaltado pelo Buda, chamando-o de magnífico e maravilhoso, a pureza pacífica, a libertação insuperável. Mais uma vez, tomando esta abordagem podemos também venerar aqueles que prometem seguir a rota de compaixão do bodhisatta, que fazem esse voto indo além daquilo que é necessário, visto que isso não é uma condição para a sua própria verdadeira libertação. Nós podemos reverenciar e valorizar o seu amor-bondade, a sua grande compaixão, suas aspirações elevadas e seu serviço de auto-sacrifício para o mundo. O verdadeiro Budismo precisa de todos os três: Budas, arahants e bodhisattas. Precisa de Budas para descobrir e ensinar o caminho para a libertação; precisa de arahants para seguir o caminho e confirmar que o Dhamma de fato leva à libertação adornando os ensinamentos com exemplos de pessoas que vivem a mais pura vida santa; precisa de bodhisattas para gerar a vontade de aperfeiçoar as qualidades que lhes permitirão em algum momento no futuro, próximo ou distante, se tornar Budas e mais uma vez girar a roda insuperável do Dhamma.

 


 

Notas:

[1] Há também um terceiro modelo de vida espiritual Budista, o do paccekabuddha ou pratyekabuddha. O paccekabuddha é semelhante em muitos aspectos ao discípulo arahant, exceto que, enquanto o discípulo arahant realiza a iluminação sob a orientação de um Buda, o paccekabuddha realiza a iluminação sem qualquer orientação externa. Por outro lado, a combinação de qualidades que constituem esse tipo são essencialmente as mesmas. Na literatura dos sistemas Budistas, muitas vezes lemos sobre três tipos de seres iluminados - em Pali: savakas, paccekabuddhas e samma sambuddhas - e dos três veículos que levam a essas realizações: savaka-yana, paccekabuddha-yana, bodhisatta-yana. [Retorna]

[2] Há pelo menos uma possível exceção. O MA 32, (sutta dos Agamas paralelo ao MN 123) menciona: "O Abençoado, no tempo do Buda Kassapa fez o seu voto inicial para o caminho de Buda e praticou a vida santa". A idéia sugerida no MA 32 parece muito improvável pois no MN 81 (com paralelo no MA 132), o oleiro Ghatikara, um discípulo leigo de Buda Kassapa e que havia alcançado o estado daquele que não-retorna, é um amigo do brâmane Jotipala, o Bodhisatta que ira se tornar o Buda Gautama. Durante o período do Buda Gotama, Ghatikara aparece como um arahant habitando em uma das Moradas Puras celestiais. A declaração acima implicaria que no tempo em que Ghatikara avançou do estado de não-retorno ao estado de arahant o bodhisatta teria percorrido todo o caminho desde a aspiração inicial até o fruto final de Buda com todos os seus conhecimentos e poderes extraordinários. [Retorna]

[3] Aliás, em qualquer língua indo-ariana oriental, a palavra é bodhisatta. Ela foi "sanscritizada" como bodhisattva - "ser da iluminação", e tomamos esse significado como garantido, mas a forma sanscritizada pode estar errada. Para MIA bodhisatta também poderia representar o sânscrito bodhisakta, que significa "intenção de iluminação", "devotado à iluminação", e isso faz mais sentido do que "ser da iluminação". [Retorna]

[4] Não creio que as expressões, "três yanas" ou "três Bodhis" são usadas nos comentários que podem ser atribuídos de maneira confiável a Buddhaghosa, embora a idéia já estivesse implícita no reconhecimento de três tipos de pessoas iluminadas que atingem seus objetivos por meio do acúmulo de paramis. [Retorna]

[5] Vejam o simpósio sobre Mahayana no The Eastern Buddhist, vol. 35 (2003), especialmente Paul Harrison, "Mediums and Messages: Reflections on the Production of Mahayana Sutras,", pag. 115-151. [Retorna]

[6] Veja Jan Nattier , A Few Good Men: The Bodhisattva Path according to The Inquiry of Ugra (Honolulu: University of Hawai'i Press, 2003), oferece uma tradução deste sutra juntamente com uma introdução extremamente esclarecedora. De relevância especial para o presente trabalho são os capítulos 4 , 7 e 8 da introdução. [Retorna]

Revisado pelo autor em 30 Novembro de 2013.

Traduzido para o Português por Leon Franco.

 

 

Revisado: 30 Maio 2015

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