6. Mal-entendidos da Lei de Kamma
Conteúdo:
Quem provoca a felicidade e o sofrimento?
Crenças que são contrárias à lei de Kamma
Kamma e ‘não-eu’ são contraditórios?
Quem
provoca a felicidade e o sofrimento?
De acordo
com as palavras do Buda, “Através da ignorância, as ações corporais...ações
verbais...ações mentais...são criadas, com o consentimento próprio...através de
influências externas...com conhecimento...sem conhecimento.” Existem também circunstâncias em que o Buda
refutava, tanto a teoria de que toda felicidade e sofrimento são provocados
pelo eu (conhecida como attakaravada) como a de que toda
felicidade e sofrimento são provocados por forças externas (conhecida como arakaravada).
Isso destaca a necessidade de ver kamma em sua relação com o fluxo completo de
causa e efeito. O grau de qualquer intervenção, quer seja própria ou de fatores
externos, deve ser considerado em relação a esse processo. De outro modo
surgirá o mal-entendido corriqueiro de que todos os eventos são causados pelas
ações pessoais, excluindo todo o restante.
O que
precisa ser compreendido é a diferença entre kamma no contexto das leis da
natureza e kamma no contexto da ética. Ao falar de kamma como uma lei da
natureza, um processo que existe na natureza e que incorpora uma grande variedade
de fatores condicionantes, nós não superenfatizamos o papel da ação individual,
assim, dizemos que kamma não é a única causa da felicidade e sofrimento. Mas no
nível da ética, o ensinamento de kamma é para ser usado na prática. Por
conseguinte, a responsabilidade total é colocada sobre o indivíduo. Isso é
enfatizado pelas palavras do Buda no Dhammapada, “Seja um refúgio para você
mesmo.”
Além de
querer dizer que devemos ajudar a nós mesmos, essa injunção também inclui nosso
relacionamento quando ajudados por outros. Isto é, mesmo na eventualidade de
uma ajuda surgir de fontes externas, ainda assim, seremos responsáveis pela
aceitação dessa ajuda em todos ou pelo menos, algum dos três níveis seguintes :
(a) Na solicitação, quer seja intencional ou não, quer seja consciente ou não,
de tal ajuda; (b) Ao encorajar tal ajuda por meio de comportamento apropriado;
(c) E no mínimo, na aceitação de tal ajuda. Por essa razão, não há conflito
entre o princípio de kamma no nível das leis da natureza e no nível da
ética, mas na verdade eles suportam um
ao outro.
Crenças
que são contrárias à lei de Kamma
Existem
três filosofias que o Budismo considera ser entendimento incorreto e que devem
ser distinguidas com cuidado dos ensinamentos de kamma:
1. Pubbekatahetuvada:
A crença de que toda felicidade e sofrimento surgem do kamma passado
(Determinismo das ações passadas).
2. Issaranimmanahetuvada:
A crença de que toda felicidade e sofrimento são causados pelas diretrizes de
um Ser Superior (Determinismo teísta).
3. Ahetu-apaccayavada:
A crença de que toda felicidade e sofrimento são aleatórios, não tendo uma
causa (Indeterminismo ou Acidentalismo).
Com relação
a isso, temos as palavras do Buda:
“Bhikkhus, existem esses três tipos de associações sectárias que – quando
questionadas, pressionadas em dar suas razões e censuradas por pessoas sábias –
embora possam dar uma explicação contrária, permanecem presas a [ uma doutrina
de] inércia. Quais três?
“Existem brâmanes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que
pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa –
prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo tem sua causa no que foi feito no
passado.’ Existem brâmanes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento,
que pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa –
prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo tem sua causa no ato de criação de um ser
superior.’ Existem brâmanes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento,
que pensam dessa maneira: ‘Qualquer que seja a experiência de uma pessoa –
prazerosa, dolorosa ou neutra – tudo não tem uma causa e condição.’
“Tendo me aproximado dos brâmanes e contemplativos que acreditam ...
qualquer que seja a experiência de uma pessoa ... tudo tem sua causa no que foi
feito no passado. ‘Eu lhes digo : ‘É verdade que vocês acreditam ... qualquer
que seja a experiência de uma pessoa ... tudo tem sua causa no que foi feito no
passado?’ Tendo sido inquiridos dessa forma por mim, eles admitem, ‘Sim.’ Então
lhes digo, ‘Então nesse caso, uma pessoa é uma assassina de seres vivos pelo
que foi feito no passado. Uma pessoa é uma ladra ... impura ... mentirosa ...
que causa desarmonia pelo que fala ... rude no que fala ... tagarela ...
ambiciosa ... maldosa ... que tem entendimento incorreto por causa do que foi
feito no passado.’ Bhikkhus, quando uma pessoa retrocede ao que foi feito no
passado como sendo essencial, não existe desejo, não existe esforço [em relação
ao pensamento] , ‘Isto deve ser feito. Isto não deve ser feito.’ Quando a
pessoa não consegue identificar com clareza, como verdade ou realidade, o que
deve e o que não deve ser feito, ela permanece num estado confuso e
desprotegido. Essa pessoa não pode referir-se a si mesma com justiça como uma
contemplativa. Essa foi minha primeira refutação irrepreensível a esses
brâmanes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa
maneira.
“Tendo me aproximado dos brâmanes e contemplativos que acreditam ....
qualquer que seja a experiência de uma pessoa ... tudo tem sua causa no ato de
criação de um ser superior . ‘Eu lhes digo : ‘É verdade que vocês acreditam ...
qualquer que seja a experiência de uma pessoa ... tudo tem sua causa no ato de
criação de um ser superior?’ Tendo sido inquiridos dessa forma por mim, eles
admitem, ‘Sim.’ Então lhes digo, ‘Então nesse caso, uma pessoa é uma assassina
de seres vivos pelo ato de criação de um ser superior. Uma pessoa é uma ladra
... impura .. .mentirosa ... que causa desarmonia pelo que fala ... rude no que
fala ... tagarela ... ambiciosa ... maldosa ... que tem entendimento incorreto
por causa do ato de criação de um ser superior.’Bhikkhus, quando uma pessoa
retrocede ao ato de criação de um ser superior como sendo essencial, não existe
desejo, não existe esforço [em relação ao pensamento] , ‘Isto deve ser feito.
Isto não deve ser feito.’ Quando a pessoa não consegue identificar com clareza,
como verdade ou realidade,o que deve e o que não deve ser feito, ela permanece
num estado confuso e desprotegido. Essa pessoa não pode referir-se a si mesma
com justiça como uma contemplativa. Essa foi minha segunda refutação
irrepreensível a esses brâmanes e contemplativos que acreditam nesse
ensinamento, que pensam dessa maneira.
“ Tendo me aproximado dos brâmanes e contemplativos que acreditam ....
qualquer que seja a experiencia de uma pessoa... tudo não tem uma causa e
condição . ‘Eu lhes digo : ‘É verdade que vocês acreditam ... qualquer que seja
a experiência de uma pessoa ... tudo não tem uma causa e condição?’ Tendo sido
inquiridos dessa forma por mim, eles admitem, ‘Sim.’ Então lhes digo, ‘Então
nesse caso, uma pessoa é uma assassina de seres vivos sem uma causa e condição
. Uma pessoa é uma ladra ... impura ... mentirosa ...que causa desarmonia pelo
que fala ... rude no que fala ... tagarela ... ambiciosa ... maldosa ... que
tem entendimento incorreto sem uma causa e condição.’ Bhikkhus, quando uma
pessoa retrocede a uma ausência de causa e
condição como sendo essencial, não existe desejo, não existe esforço [em
relação ao pensamento] , ‘Isto deve ser feito. Isto não deve ser feito.’ Quando
a pessoa não consegue identificar com clareza, como verdade ou realidade, o que
deve e o que não deve ser feito, ela permanece num estado confuso e
desprotegido. Essa pessoa não pode referir-se a si mesma com justiça como uma
contemplativa. Essa foi minha terceira refutação irrepreensível a esses
brâmanes e contemplativos que acreditam nesse ensinamento, que pensam dessa
maneira. [AN.I.73] (AN.III.61)
A primeira
dessas três escolas de pensamento é a dos Niganthas, da qual podemos aprender
algo mais das palavras do Buda:
“Bhikkhus, existem alguns contemplativos e brâmanes que possuem a
seguinte doutrina e entendimento: ‘Qualquer coisa que uma pessoa sinta, quer
seja prazer ou dor, ou nem prazer, nem dor, tudo é causado pelo que foi feito
no passado. Então aniquilando através do ascetismo as ações
passadas e não cometendo novas ações, não haverá conseqüência no
futuro. Sem conseqüência no futuro, ocorre a destruição da ação. Com a
destruição da ação, ocorre a destruição do sofrimento. Com a destruição do
sofrimento, ocorre a destruição da sensação. Com a destruição da sensação, todo
o sofrimento será extinto.’ Assim dizem os Niganthas, bhikkhus.” [MN.II.214] (MN 101)
As palavras
do Buda a seguir ilustram com clareza o ponto de vista Budista:
“Produzidas por distúrbios da bílis, Sivaka, surgem certos tipos de sensações.
Que isso acontece, pode ser compreendido pela própria pessoa e também no mundo
é aceito como verdadeiro. Produzidas por distúrbios da fleuma … dos ventos … de
um desequilíbrio [dos três] … pela mudança de clima … pelo comportamento descuidado … pela violência … pelos resultados de Kamma – por meio de tudo isso,
Sivaka, surgem certos tipos de sensações. Que isso acontece, pode ser
compreendido pela própria pessoa e também no mundo é aceito como verdadeiro.
“Agora quando esses contemplativos e brâmanes possuem esta doutrina e
entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimentar, quer seja prazer, dor
ou nem dor, nem prazer, tudo é causado pelas ações passadas,’ então eles vão
além daquilo que conhecem por si mesmos e daquilo que é aceito no mundo como
verdadeiro. Portanto, eu digo que esses contemplativos e brâmanes estão
equivocados.” [ SN.IV.230] (SN.XXXVI.21)
Essas
palavras nos desencorajam ir longe demais com o kamma, ao considerá-lo como uma
coisa totalmente do passado. Esse tipo de idéia encoraja a inércia; esperar de
forma passiva que os resultados do kamma passado amadureçam, aceitando as
coisas como elas vêm, sem pensar em corrigí-las ou melhorá-las. Esse é um tipo
de entendimento incorreto, prejudicial, como pode ser visto pelas palavras do
Buda mencionadas acima.
De modo
significativo, no trecho acima, o Buda declara o esforço e a motivação como
fatores cruciais na decisão sobre o valor ético de cada um desses vários
ensinamentos sobre kamma.
O Buda não
descartava a importância do kamma passado, porque este desempenha um papel no
processo de causa e efeito que, portanto, tem um efeito no presente e por sua
capacidade como um dos fatores condicionantes. Mas, é apenas uma dessas
condições, não é uma força sobrenatural à qual temos que nos agarrar ou
submeter passivamente. A compreensão do Princípio da Origem Dependente e do
processo de causa e efeito irá esclarecer isso.
Por
exemplo, se um homem subir até o terceiro andar de um prédio, é verdade, de
modo inegável, que o fato de ele ter chegado ao terceiro andar é o resultado de
uma ação passada – isto é, ter subido as escadas. Tendo chegado lá, é
impossível que ele possa esticar a mão e tocar o solo, ou dirigir um carro.
Obviamente, isso é assim porque ele subiu até o terceiro andar. Ou, ao chegar
ao terceiro andar, se ele estiver demasiado exausto para continuar é algo que
também está relacionado com o fato dele ter subido as escadas. Sua chegada lá,
as coisas que ele será capaz de fazer e as situações que poderá encontrar, tudo
isso está com certeza relacionado ao “kamma passado” de ter subido as escadas.
Mas, exatamente quais ações ele irá tomar, as reações dele em relação às
situações que enfrentará, se ele irá descansar ou seguir subindo, ou descer as
escadas de volta e sair do prédio, são todos temas que ele pode decidir por ele
mesmo naquele momento, e pelas quais ele também irá colher os resultados. Muito
embora a ação de subir as escadas ainda pudesse estar influenciando (por
exemplo, com as forças exauridas ele poderá ser incapaz de funcionar de forma
eficiente numa dada situação), se ele decidir ceder a esse cansaço ou se tentar
superá-lo são questões que ele pode decidir por ele mesmo no presente momento.
Assim, o
kamma passado deve ser compreendido em relação a todo o processo de causa e
efeito. Em relação ao comportamento ético, compreender o processo de causa e
efeito é ser capaz de aprender com o kamma passado, compreender a situação no
presente e com habilidade elaborar um plano de ação para melhorar e preparar
para o futuro.
Certa vez o
Buda disse:
"Bhikkhus, para qualquer um que diga, ‘Qualquer que seja a forma
pela qual uma pessoa faça kamma, é desse modo que ele será experimentado,’ não
há como viver a vida santa, não há oportunidade para o correto fim do
sofrimento. [11] Mas para qualquer um que diga, ‘Quando uma pessoa faz kamma para
ser sentido de tal e tal forma, assim é como o seu resultado é experimentado,’
há como viver a vida santa, há oportunidade para o correto fim do sofrimento.
Há o caso em que um ato insignificante cometido por um certo indivíduo o
conduz ao inferno. Há o caso em que o mesmo tipo de ato insignificante cometido
por outro indivíduo é experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um
momento.
"Agora um ato insignificante cometido por qual tipo de indivíduo o
conduz ao inferno? É o caso em que um certo indivíduo não desenvolve a atenção
plena no corpo, não desenvolve a virtude, não desenvolve a mente, não
desenvolve a sabedoria: limitado, mesquinho, permanece com o sofrimento. Um ato
insignificante cometido por este tipo de indivíduo o conduz ao inferno.
"Agora, um ato insignificante cometido por qual tipo de indivíduo é
experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um momento? É o caso em que
um certo indivíduo desenvolve a atenção plena no corpo, desenvolve a virtude,
desenvolve a mente, desenvolve a sabedoria: ilimitado, generoso, permanece com
o imensurável. Um ato insignificante cometido por esse tipo de indivíduo é
experimentado no aqui e agora e aparece apenas por um momento.. [ AN.I.249] (AN.III.99)
* * *
"Aqui, chefe tribal, um determinado mestre tem uma doutrina e entendimento assim: 'Qualquer um que mate seres vivos ... que tome aquilo que não for dado ... pratique a conduta sexual imprópria ... fale mentiras está destinado a um estado de privação, ao inferno.' Então um discípulo tem plena convicção naquele mestre. Ele pensa: 'Meu mestre tem uma doutrina e entendimento assim: "Qualquer um que mate seres vivos está destinado a um estado de privação, ao inferno." Agora, eu matei seres vivos, então eu também estou destinado a um estado de privação, ao inferno.' Assim ele obtém esse entendimento. Se ele não abandonar essa asserção e esse estado mental, e se ele não abandonar esse entendimento, então de acordo com o seu merecimento ele será, como se fosse, soltado no inferno.
"Ele pensa: 'Meu mestre tem uma doutrina e entendimento assim: "Qualquer um que tome aquilo que não for dado ... pratique a conduta sexual imprópria ... fale mentiras está destinado a um estado de privação, ao inferno." Agora, eu menti, então eu também estou destinado a um estado de privação, ao inferno.' Assim ele obtém esse entendimento. Se ele não abandonar essa asserção e esse estado mental, e se ele não abandonar esse entendimento, então de acordo com o seu merecimento ele será, como se fosse, soltado no inferno.
"Mas aqui, um Tathagata surge no mundo, um arahant perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime. De muitas formas ele critica e censura matar seres vivos, e ele diz: 'Abstenham-se de matar seres vivos.' Ele critica e censura tomar aquilo que não for dado, e ele diz: 'Abstenham-se de tomar aquilo que não for dado.' Ele critica e censura a conduta sexual imprópria, e ele diz: 'Abstenham-se da conduta sexual imprópria.' Ele critica e censura a linguagem mentirosa, e ele diz: 'Abstenham-se de falar mentiras.'
"Então um discípulo tem plena convicção naquele mestre. Ele pensa: 'Meu mestre tem uma doutrina e entendimento assim: De muitas formas o Abençoado critica e censura matar seres vivos, e ele diz: 'Abstenham-se de matar seres vivos.' Agora, eu matei seres vivos. Isso não foi apropriado; isso não foi bom. Mas embora eu me arrependa disso, essa minha ação ruim não pode ser desfeita.' Tendo refletido dessa forma, ele abandona matar seres vivos e se abstém de matar seres vivos no futuro. Assim ocorre o abandono daquela ação ruim, assim ocorre a transcendência daquela ação ruim.
"Ele pensa: 'Meu mestre tem uma doutrina e entendimento assim: "De muitas formas o Abençoado critica e censura tomar aquilo que não for dado ... praticar a conduta sexual imprópria ... falar mentiras, e ele diz: 'Abstenham-se de falar mentiras.' Agora, eu falei mentiras. Isso não foi apropriado; isso não foi bom. Mas embora eu me arrependa disso, essa minha ação ruim não pode ser desfeita.' Tendo refletido dessa forma, ele abandona falar mentiras e se abstém falar mentiras no futuro. Assim ocorre o abandono daquela ação ruim, assim ocorre a transcendência daquela ação ruim.
"Tendo abandonado matar seres vivos, ele se abstém de matar seres vivos, tendo abandonado tomar aquilo que não for dado, ele se abstém de tomar aquilo que não for dado, tendo abandonado a conduta sexual imprópria, ele se abstém da conduta sexual imprópria, tendo abandonado falar mentiras, ele se abstém de falar mentiras, tendo abandonado a linguagem maliciosa, ele se abstém da linguagem maliciosa, tendo abandonado a linguagem grosseira, ele se abstém da linguagem grosseira, tendo abandonado a linguagem frívola, ele se abstém da linguagem frívola, tendo abandonado a cobiça, ele não tem cobiça, tendo abandonado a má vontade, ele tem uma mente sem má vontade, tendo abandonado o entendimento incorreto, ele tem o entendimento correto.
"Então, chefe tribal, aquele nobre discípulo - que assim está desprovido de cobiça, desprovido de má vontade, não confuso, com plena consciência, sempre plenamente atento - permanece permeando o primeiro quadrante com a mente imbuída de amor bondade, da mesma forma o segundo, da mesma forma o terceiro, da mesma forma o quarto; assim acima, abaixo, em volta e em todos os lugares, para todos bem como para si mesmo, ele permanece permeando o mundo todo com a mente imbuída de amor bondade, abundante, transcendente, imensurável, sem hostilidade e sem má vontade. Como se um poderoso trompetista fizesse com pouca dificuldade uma proclamação aos quatro quadrantes, da mesma forma através desta libertação da mente através do amor bondade, qualquer kamma limitante que tenha sido feito ali não permanece, não persiste." [SN.IV.319] (SN XLII.8)
As palavras
acima foram mencionadas de forma a prevenir mal-entendidos em relação à fruição
de kamma. Esta síntese é apenas uma pequena parcela do material disponível,
para apresentá-lo todo ocuparia espaço demasiado.
Kamma e
‘não-eu’ são contraditórios?
Existe uma
questão que, embora só perguntada
poucas vezes, tende a persistir nas mentes de muitos principiantes no
estudo do Budismo: “Os ensinamentos de kamma e não-eu são contraditórios?” Se
tudo, incluindo o corpo e a mente, é não-eu, então como pode existir kamma?
Quem é aquele que pratica kamma? Quem recebe os resultados de kamma? Essas
dúvidas não são apenas um fenômeno da época em que vivemos, mas existiu desde a
época do Buda, como pode ser visto do exemplo a seguir:
Então, na mente de um certo bhikkhu surgiu este pensamento: “Portanto,
parece que, a forma material não é o eu, a sensação não é o eu, a percepção não
é o eu, as formações não são o eu, a consciência não é o eu [12].
Qual o eu então, que é afetado por ações praticadas pelo não
eu?”
Então o Abençoado, conhecendo o pensamento na mente daquele bhikkhu,
dirigiu-se aos bhikkhus da seguinte forma:
“É possível, bhikkhus, que alguma pessoa que aqui está desencaminhada,
obtusa e ignorante, com a sua mente dominada pelo desejo, possa pensar que ela pode
superar a Doutrina do Mestre desta forma: ‘Portanto, parece que, a forma
material não é o eu...a consciência não é o eu. Qual o eu então, que é afetado
por ações praticadas pelo não-eu?’ Agora, bhikkhus, vocês foram treinados por
mim através de interrogações em várias ocasiões em relação a várias coisas.
“Bhikkhus, o que vocês pensam? A forma material é permanente ou
impermanente?” – “Impermanente, venerável senhor”. – “Aquilo que é impermanente
traz o sofrimento ou a felicidade?” – “Sofrimento, venerável senhor”. – “É
adequado que aquilo que é impermanente, traz o sofrimento e está sujeito à
mudança, seja considerado desta forma: ‘Isso é meu, isso sou eu, isso é o meu
eu’?” – “Não venerável senhor”.
“Bhikkhus, o que vocês pensam: A sensação...percepção...formações...consciência
são permanentes ou impermanentes?” – “Impermanentes venerável senhor”. -
“Aquilo que é impermanente traz o sofrimento ou a felicidade?” – “Sofrimento,
venerável senhor”. – “É adequado que aquilo que é impermanente, traz o sofrimento
e está sujeito à mudança, seja considerado desta forma: ‘Isso é meu, isso sou
eu, isso é o meu eu’?” – “Não venerável senhor”.
Portanto, bhikkhus, qualquer tipo de forma material, quer seja do
passado, do futuro ou do presente...toda forma material deve ser vista como na
verdade ela é, com correta sabedoria, desta forma: ‘Isso não é meu, isso não
sou eu, isso não é o meu eu’. Qualquer tipo de sensação... Qualquer tipo de
percepção... Qualquer tipo de formações... Qualquer tipo de consciência... toda
consciência deve ser vista como na verdade ela é, com correta sabedoria, desta
forma: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. “Vendo dessa
forma um nobre discípulo bem instruído se desencanta com a forma material, se
desencanta com a sensação, se desencanta com a percepção, se desencanta com as
formações, se desencanta com a consciência. Desencantado, ele se torna
desapegado. Através do desapego a sua mente é libertada. Quando ela está
libertada surge o conhecimento: ‘Libertada.’ Ele compreende que: ‘O nascimento
foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito foi feito, não
há mais vir a ser a nenhum estado’” [MN.III.19] (MN
109)
Antes de
examinar essa alusão das escrituras, considere a seguinte ilustração: Suponha
que estejamos em pé à margem de um rio, olhando a correnteza passar. A água
flui em uma área na sua maior parte plana, por conseguinte a correnteza é
bastante lenta. A terra naquela área particular é vermelha, o que proporciona
àquele corpo d ´água uma coloração avermelhada. Além disso, a água passa por
regiões densamente povoadas nas quais as pessoas já há muito tempo despejam
lixo, que, junto com o esgoto industrial que flui de várias fábricas
recém-construídas, polui a água. A água é portanto inabitável para a maioria
dos animais; não há muitos peixes nela. Em resumo, o corpo d´água que estamos
vendo é avermelhado, poluído, pouco habitado e lerdo. Todos esses aspectos em
conjunto são as características deste corpo d´água em particular. Algumas
dessas características podem ser semelhantes a outros rios, mas a soma total
dessas características é única dessa corrente d´água.
Somos
informados que atualmente esse corpo d´água é chamado de Rio Tah Wung.
Diferentes pessoas empregam formas distintas para descrevê-lo. Algumas dizem
que o Rio Tah Wung é sujo e não tem muitos peixes. Outras dizem que o Rio Tah
Wung flui muito lentamente. Outras, ainda, dizem que o Rio Tah Wung é
avermelhado.
Em pé, à
margem do rio, temos a impressão que o corpo d´água para o qual estamos olhando
é na verdade completo por si mesmo. Os seus atributos, como ser lento,
avermelhado, sujo, e assim por diante, são todos causados por vários fatores
condicionantes, tal como a correnteza entrando em contato com a terra vermelha.
Além disso, a água para a qual estamos olhando está fluindo constantemente. A
água que vimos no início já não está mais ali e a água que estamos vendo agora
irá passar logo. Mesmo assim, o rio possui as suas características próprias, que
não mudam enquanto os fatores condicionantes relevantes não mudarem.
Mas, então,
nos dizem que esse é o Rio Tah Wung. Não apenas isso, nos dizem que o Rio Tah
Wung é lento, sujo e com poucos peixes. Se apenas olharmos, não podemos ver
nenhum “Rio Tah Wung” que não seja esse corpo d´água fluindo. Não podemos ver
nenhum “Rio Tah Wung” de posse desse corpo d´água. No entanto, nos dizem que o
Rio Tah Wung desmancha a terra vermelha ao passar, o que faz com que a água
fique avermelhada. É quase como se o “Rio Tah Wung” fizesse alguma coisa para a
terra vermelha, que desse motivo para ela “puní-lo” avermelhando a sua água.
Podemos ver
com clareza que esse corpo d´água está sujeito ao processo de causa e efeito
governado pelos seus vários fatores condicionantes: a água molhando a terra
vermelha e a terra vermelha dissolvendo na água é uma condição causal, cujo
resultado é a água avermelhada. Não podemos encontrar nenhum “corpo” fazendo
algo ou recebendo algum resultado. Não podemos ver nenhum Rio Tah Wung com substância
em nenhum lugar. A água fluindo à nossa frente segue fluindo, a água que vimos
antes não mais se encontra ali, águas novas estão constantemente tomando o
lugar das anteriores. Somos capazes de definir aquele corpo d´água apenas por
meio da descrição dos seus fatores condicionantes e dos eventos que surgem como
conseqüência, resultando nas características que havíamos observado. Se
houvesse um Rio Tah Wung verdadeiro e imutável, seria impossível para
aquele fluxo d´água continuar de acordo
com os seus vários fatores determinantes. Por fim, vemos que o termo “Rio Tah
Wung” é desnecessário. Podemos falar sobre aquele corpo d´água sem ter que nos
preocuparmos com esse “Rio Tah Wung.” A verdade é que não existe um Rio Tah Wung de fato!
À medida
que o tempo passa nós viajamos para uma outra região. Desejando descrever
aquele corpo d´água que vimos para as pessoas dessa região, ficamos perdidos.
Então nos lembramos de alguém ter dito que aquele corpo d´água era conhecido
como o Rio Tah Wung. Sabendo disso, podemos relatar nossa experiência de forma
clara e as outras pessoas irão ouvir com interesse e atenção. Nós lhes
relatamos que o Rio Tah Wung tem a água suja, não tem muitos peixes, é lento e
com a coloração avermelhada.
Naquele
momento compreendemos, de forma clara, que aquele “Rio Tah Wung” e o papel que
ele desempenha nos eventos que descrevemos são simples convenções de linguagem
usadas para facilitar a comunicação. Quer a convenção “Rio Tah Wung” exista ou
não, quer a usemos ou não, não terá absolutamente nenhuma influência nas ações
daquele corpo d´água. Aquele corpo d´água continua a ser um processo de reações
inter-relacionadas de causa e efeito. Podemos distinguir com clareza entre a
convenção e a situação verdadeira. Agora somos capazes de compreender e
empregar a convenção da linguagem com tranqüilidade.
Aquilo que
de forma convencional conhecemos como pessoas, às quais damos nomes, e que nos
referimos como “eu” e “você,” são na realidade fluxos contínuos e
interconectados de eventos, formados de incalculáveis fatores componentes
relacionados, igual à água daquele rio. Eles estão sujeitos a inúmeros fatores,
são dirigidos por fatores determinantes relacionados, tanto de dentro do fluxo
de eventos, como de fora. Quando uma reação em particular ocorre de forma
causal, o fruto dessa ação surge causando mudanças dentro do fluxo de eventos.
As
condições referidas como kamma e vipaka são simplesmente o jogo
de causa e efeito dentro de um fluxo de eventos em particular. Elas são
perfeitamente capazes de funcionar dentro daquele fluxo sem a necessidade das
convenções de nomes ou das palavras “eu” e “você,” quer seja como donos ou
perpetradores daquelas ações, ou como receptores dos seus resultados. Isso é a
realidade, [13] que funciona naturalmente
dessa forma. Mas para facilitar a comunicação no mundo social, precisamos usar
a convenção de nomes, tal como Sr. Smith, e assim por diante, para um fluxo de
eventos em particular.
Aceita a
convenção, temos que aceitar a responsabilidade por aquele fluxo de eventos,
tornando-nos o proprietário, o perpetrador ativo e o sujeito passivo das ações
e dos seus resultados, conforme seja o caso. Mas, quer usemos essas convenções
ou não, quer aceitemos os rótulos ou não, o fluxo de eventos em si funciona de
todos os modos, dirigido pela causa e efeito. O ponto importante é ter
consciência das coisas como elas na verdade são, distinguindo entre as
convenções e a própria condição. A mesma coisa, no contexto da sua verdadeira
natureza, é de um jeito, mas quando mencionada em termos convencionais deve ser
referida de outro jeito. Se tivermos a compreensão da realidade dessas coisas
não seremos deludidos ou confundidos pelas convenções.
Ambas a realidade
e as convenções são necessárias. A realidade (com freqüência mencionada como paramattha)
é o estado natural. As convenções são uma invenção humana útil e prática. Os
problemas surgem quando confundimos as duas, apegando-nos à realidade e
tentando fazer com que esta siga as convenções. No interior da realidade não há
confusão, porque o princípio opera por si mesmo de forma natural não estando
sujeito às idéias que alguém possa ter a seu respeito – são as pessoas que
ficam confusas. E como a realidade não é confusa, funcionando independentemente
dos desejos das pessoas, ela frustra aqueles desejos e faz com que as pessoas
fiquem ainda mais confusas e frustradas. Qualquer problema que ocorra é um
problema apenas humano.
Como pode
ser observado no trecho acima, o bhikkhu, que formulou essa dúvida, estava
confundindo a descrição da realidade que ele havia aprendido com a convenção à
qual ele ainda estava apegado. Essa foi a razão da sua confusão e dúvida.
Referindo-se ao texto original, as palavras empregadas foram: “Se o kamma é
criado pelo não-eu, qual eu recebe os frutos de kamma?” A primeira parte da
frase é dita de acordo com o conhecimento adquirido da realidade, enquanto que
a segunda parte é dita de acordo com a sua percepção habitual. Evidentemente
elas não se encaixam.
Do que foi
mencionado até agora, podemos resumir o seguinte:
Os ensinamentos de não-eu e
kamma não são contraditórios em absoluto. Ao contrário, não-eu adiciona
substância ao ensinamento de kamma. Porque as coisas são não-eu,
kamma pode existir e pode
funcionar. Quando o processo de eventos está em operação, todos os fatores
envolvidos têm que surgir, cessar e interagir desimpedidos para que o
fluxo de eventos possa prosseguir. Não pode haver uma entidade permanente
ou substancial que bloqueie esse fluxo. Se houvesse um eu, não poderia
haver kamma, porque um eu (por definição) não está sujeito a causa e
efeito. Nada pode influenciar a sua existência ou fazer com que o eu seja
outra coisa diferente daquilo que ele é. No final, teríamos que dividir um
indivíduo em dois níveis, tal como crêem os da seita sassataditthi
(crença num eu intrínseco), que acreditam que o eu que cria e recebe os
frutos de kamma é apenas um eu externo ou superficial, enquanto que o eu
real, ou a essência do eu, permanece imutável no interior.
A criação de kamma e os seus
resultados no momento presente ocorrem sem a necessidade de um agente ou
recebedor. Devemos considerar da seguinte forma: “Quais fatores estão em
operação? Quais as relações envolvidas? Quais eventos estão surgindo
dentro do fluxo como resultado, e como eles estão influenciando as
mudanças dentro do fluxo?” Quando uma causa, conhecida como kamma, ou
ação, surge, atrás dela segue o resultado, conhecido como vipaka,
como parte ou dentro daquele fluxo de eventos. Chamamos isso de “causa e
efeito.” Esse processo não depende de um dono daquelas ações ou de um
agente ou um recebedor dos resultados como uma entidade adicional,
externa. Kamma é o fluxo de causa e efeito dentro do fluxo de eventos, ao
contrário das convenções que são coladas sobre eles.
Quando há
um acordo para chamar aquele fluxo de eventos de Sr. Smith ou Sra. Brown, surge
um dono das ações, um agente e um recebedor dos resultados. No entanto, o fluxo
dos eventos segue independente disso, completamente perfeito no seu interior no
que diz respeito ao processo de causa e efeito. Este não depende de nomes para
funcionar.
Quando é o
momento de falar do contexto do fluxo de eventos, descrevendo a sua operação,
as suas causas e resultados, então podemos falar desse modo. Quando for o
momento de falar do contexto das convenções, descrevendo as ações e os frutos
das ações em termos pessoais, também podemos falar desse modo. Com o
entendimento correto, nós não confundimos os dois níveis.
Mesmo em
relação a objetos inanimados, tal como o rio mencionado acima, a maioria das
pessoas ainda assim se apega a convenções como se fossem entidades verdadeiras.
Tanto mais quando se trate de seres humanos, que são uma confluência intrincada
de processos causais, envolvendo fatores mentais. Quanto a esses fatores
mentais, eles são extremamente sutis. Mesmo a impermanência é incompreensível
para muitas pessoas. Existem aqueles, por exemplo, que dizem “Quem diz que a
memória é impermanente e instável? A memória é permanente, porque sempre e
quando ela surge, é sempre memória, nunca muda.”
Algumas
pessoas podem concordar com essa linha de raciocínio, mas se o argumento for
aplicado a um objeto material, o engano se tornará mais óbvio. É como dizer,
“Quem diz que o corpo é impermanente? O corpo é permanente e imutável, porque
sempre e quando o corpo surge, é sempre corpo, nunca muda.” É mais fácil ver o
erro neste último argumento, mas na verdade ambos argumentos estão equivocados.
Isto é, ambos confundem a memória com o rótulo “memória,” ou o corpo com o
rótulo “corpo.” Os argumentos sugerem que a memória e o corpo são estáveis e
imutáveis, mas na verdade o que elas estão dizendo é que os nomes “memória” e
“corpo” são (relativamente) estáveis e imutáveis.
O estudo da
lei de kamma só no nível das convenções pode conduzir algumas vezes a uma visão
simplista das coisas, tal como crer que uma certa pessoa tendo cometido tal e
qual kamma, em tal e qual dia, dez anos mais tarde receberá tal e qual
resultado ruim. O processo de causa e efeito em questão salta um intervalo de
dez anos num passo. O fluxo total de eventos envolvidos não é tomado em conta,
e assim é difícil ver o processo real em questão. Estudando o mesmo caso em
relação ao fluxo natural de eventos ajuda a ver a operação das relações de
causa e efeito de forma mais completa e em maior detalhe, revelando o real
significado dos resultados que tenham surgido e como eles surgem.
Suponha que
um certo Sr. Brown tenha uma discussão com o seu vizinho e o mate. Embora ele
procure fugir, no final das contas ele é preso e condenado. Mais tarde, mesmo
depois de ter sido libertado ao final da sua pena de prisão, o Sr. Brown ainda
sente remorso por conta da sua má ação. Ele é atormentado com freqüência pela imagem
da sua vítima. As suas feições e porte físico mudam, tornando-se agitado,
temeroso e depressivo. Esses estados mentais, combinados com o seu forte porte
físico, juntos, fazem com que ele se torne ainda mais violento e irado. À
medida que o tempo passa os seus traços físicos assumem características
grosseiras e hostis. Ele esconde o seu sofrimento com o comportamento
agressivo, tornando-se um perigo para a sociedade e para ele mesmo, incapaz de
encontrar a verdadeira felicidade.
Neste
exemplo, podemos simplesmente dizer que o Sr. Brown cometeu kamma ruim e está
sofrendo os resultados das suas ações. Esta é a linguagem convencional, e é
compreendida com facilidade pela maioria das pessoas. É uma forma de
comunicação que facilita o intercâmbio de idéias, mas apenas descreve a
aparência externa das coisas ou os resultados mais grosseiros dos fatores
relevantes que estão ocultos no seu interior. Não penetra a verdadeira essência
do assunto, dos fatores inter-relacionados que reagem de acordo com as leis da
natureza.
No entanto,
se falarmos baseados na realidade, poderemos falar da essência na sua
totalidade, mencionando-a como um processo de eventos. Por exemplo, podemos
dizer que como parte da operação do conjunto de cinco khandhas, surgiu
um estado mental baseado na raiva. Na seqüência ocorreu a proliferação mental
baseada naquela raiva, conduzindo à ação física. Pensando, dessa forma, com
habitualidade, a mente passou a assumir essas tendências. As repercussões
físicas de fontes externas foram experimentadas, somando-se à sensação
desagradável e assim por diante.
Falando,
dessa maneira, de acordo com as condições, nós temos toda a informação
necessária sem ter que fazer referência
ao Sr. Brown ou qualquer outro tipo de eu. O processo contém em si mesmo
elementos naturais de vários tipos surgindo e reagindo uns com os outros para
produzir ações e reações, sem a necessidade de um agente ou recebedor dos
resultados.
Quer seja
falando de acordo com as condições tal como mencionado acima ou de acordo com as
convenções como mencionado antes, a realidade da situação é idêntica – nenhuma
das duas formas é deficiente ou mais completa – mas a descrição das coisas como
uma condição da natureza é dada com base nos fatos naturais, sem os apêndices
da imageria convencional.
De todo
jeito, mesmo com esses exemplos, pode ainda haver alguma dúvida em relação ao
assunto, então poderia ser de ajuda concluir com uma estória:
Tit Porng [14] foi visitar o Venerável Abade de um
monastério vizinho. Em um dado momento, ele perguntou:
“Luang Por,
o Buda ensinou que tudo é não-eu, e sem um proprietário – não existe ninguém
que realize kamma e ninguém para receber os seus resultados. Se esse é o caso,
então eu posso sair e golpear alguém na cabeça ou até mesmo matá-lo, ou fazer o
que eu quiser, porque não há ninguém realizando kamma e ninguém para receber os
seus resultados.”
Tão pronto
Tit Porng havia terminado de falar, a bengala do Abade, escondida da vista de
Tit Porng, golpeou como um raio. Tit Porng mal foi capaz de erguer o braço para
proteger-se do golpe. Mesmo assim, a bengala o atingiu bem no meio do braço
causando uma boa contusão.
Agarrando o
braço dolorido, Tit Porng disse, “Luang Por! Porque você fez isso?” Com a voz
trêmula pela raiva que brotava dentro dele.
“Oh! Qual é
o problema?” O Abade perguntou de modo despreocupado.
“Porque,
você me golpeou! Isso dói!”
O Abade,
empregando um tom de voz normalmente reservado para os sermões, murmurou
lentamente: “Existe o kamma, mas ninguém criando-o. Existem resultados de
kamma, mas ninguém para recebê-los. Existe a sensação, mas ninguém que a
experimente. Existe a dor, mas ninguém que a sinta...Aquele que tente usar a
lei do não-eu para benefício dos seus próprios propósitos egoístas não está
liberto do eu; aquele que se apega ao não-eu é alguém que se apega ao eu. Ele
na verdade não compreende não-eu. Aquele que se apega à idéia de que não há
ninguém que cria kamma também se apega à idéia de que existe alguém que sente
dor. Ele na verdade não compreende que não há ninguém que cria kamma e ninguém
que sente a dor.”
Moral da
estória: se você quiser dizer que “Não existe ninguém que cria kamma,” você
precisa primeiro aprender a parar de dizer “Ai!”
Início >> 5. O Kamma que dá fim ao Kamma
>> 7. Conclusão
Notas:
[11] Um exemplo deste tipo de crença: Se você destruir um cupinzeiro nesta vida, numa vida futura
você inevitavelmente terá a sua casa destruída por aqueles mesmos cupins, quiçá
renascidos como seres humanos. [Retorna]
[12] Os cinco khandhas, ou agregados da existência. [Retorna]
[13] A palavra “realidade” pode parecer um tanto arbitrária para aqueles
não familiarizados com o Budismo. No contexto desta obra, podemos definí-la de
forma mais clara como “o mundo natural separado dos apêndices das convenções
humanas.” [Retorna]
[14] Tit Porng: “Tit” é um nome Tailandês para alguém que foi ordenado
como bhikkhu durante algum tempo e mais tarde deixou de ser bhikkhu. “Luang
Por,” significa, em termos literais, Venerável Pai, é um termo respeitoso empregado
para veneráveis monges. [Retorna]
Revisado: 2 Fevereiro 2007
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