Alimento para a Iluminação
O Papel da Atenção com Sabedoria

Por

Ajaan Thanissaro

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O Mito da Mera Atenção

O Buda nunca usou a palavra “mera atenção” nas suas instruções de meditação. Isto porque ele compreendeu que a atenção nunca ocorre numa forma de condição mera, pura ou incondicional. Ela é sempre colorida pelas nossas opiniões e percepções: os rótulos que temos a tendência de dar para os eventos; e pelas intenções: a escolha para onde dirigir a atenção e a razão para estar atento. Se não compreendermos a natureza condicionada mesmo de simples atos de atenção, poderemos presumir que um momento de atenção não-reativa é um momento da iluminação. E deste modo não estaremos considerando um dos mais cruciais insights da meditação Budista, de como até os eventos mentais mais simples podem formar uma condição para o apego e o sofrimento. Se tomarmos um evento condicionado como incondicionado, fecharemos a porta para o incondicionado. Portanto, é importante entender a natureza condicionada da atenção e como o Buda recomendou que ela fosse treinada – como atenção com sabedoria – para ser um fator do caminho que leva para além da atenção, para a completa iluminação.

O termo em Pali para atenção é manasikara. Você pode ter ouvido que o termo para mindfulnesssati – significa atenção, mas não é como o Buda usava o termo. Mindfulness, para ele, significa manter alguma coisa em mente. É a função da memória. Quando praticamos o estabelecimento de mindfulness, (satipatthana), permanecemos focados na observação do objeto que foi escolhido como base de referência: o corpo, as sensações, a mente ou as qualidades mentais. Esse processo de ficar firmemente focado na observação de um objeto é chamado anupassana, e requer a ajuda de três qualidades mentais. Atenção plena, (satima), para manter o objeto de referência em mente, para continuar se lembrando dele. Ao mesmo tempo, precisamos estar alertas, completamente conscientes do que estamos fazendo, (sampajañña), para ter certeza que estamos realmente fazendo aquilo que está na mente como tarefa. Por fim precisamos ser zelosos ou ardentes, (atapi), para fazer isso habilidosamente. O ato de observar um objeto desse modo – com atenção plena, plena consciência e ardente – é o que constitui o estabelecimento da atenção plena, (mindfulness), que então forma o tópico ou tema, (nimitta), da concentração correta.

Por exemplo, se focarmos na respiração como objeto de referência, anupassana, isso significa manter contínua atenção na respiração. Atenção plena significa simplesmente lembrar de ficar com isso, mantendo isso na mente o tempo todo, enquanto que ter plena consciência significa saber claramente o que a respiração está fazendo e quão bem você está permanecendo com ela. Ardência é o esforço para fazer tudo isso habilidosamente. Quando todas essas atividades permanecem completamente coordenadas, elas formam o tema da nossa concentração.

Mas, para compreender como a atenção com sabedoria funciona no contexto desse treinamento, primeiro temos de compreender como a atenção habitual funciona numa mente não treinada.

O Condicionamento da Atenção

No ensinamento da origem dependente – a explicação do Buda de como os eventos interagem para criar as condições para o sofrimento – a atenção aparece no início da seqüência, no fator dos eventos mentais chamado “mentalidade”. Seguido de ignorância, fabricação e consciência; e precedido dos seis meios dos sentidos, contato e sensação.

“Ignorância” aqui não significa uma falta geral de conhecimento. Significa não compreender a experiência dentro do contexto das quatro nobres verdades: sofrimento, sua causa, sua cessação e o caminho para a sua cessação. Qualquer outro sistema para entender a experiência, não importando quão sofisticado, qualificaria como ignorância. Exemplos clássicos dados no Cânone incluem uma visão das coisas através do princípio do eu e do outro, ou da existência e da não-existência: O que sou eu? O que eu não sou? Eu existo? Eu não existo? As coisas existem fora de mim? Elas não existem?

Essa ignorância condiciona a fabricação intencional, ou manipulação, dos estados corporais, verbais e mentais. A respiração é o principal meio de fabricação de estados corporais e a experiência prática mostra que - ao promover o aparecimento de sensações de conforto e desconforto - ela também tem um impacto nos estados mentais. Quando colorida pela ignorância, até a respiração pode agir como uma causa de sofrimento. Quanto aos estados verbais, o pensamento aplicado e o pensamento sustentado são os meios para a fabricação de palavras e sentenças , enquanto os estados mentais são fabricados pelas sensações – prazer, dor, nem-prazer, nem-dor e percepções – os rótulos que colocamos nas coisas.

A consciência sensorial é colorida por essas fabricações. E aí – com base nas condições de ignorância, fabricação e consciência sensorial – o ato da atenção surge como um evento de um grupo de eventos mentais e físicos chamados mentalidade-materialidade (nome e forma).

Como se as precondições para a atenção já não fossem complexas o suficiente, as condições que surgem concomitantemente à mentalidade-materialidade (nome e forma) adicionam um outro nível de complexidade. “Materialidade ou Forma” significa a forma do corpo como experienciado a partir de dentro e delineado pela atividade da respiração. “Mentalidade” inclui não só a atenção, mas também intenção, novamente; sensação e percepção, novamente; e contato, que aqui aparentemente significa contato entre todos os fatores já listados.

Todas essas condições, agindo juntas, são o que ordinariamente colorem cada ato da atenção para cada um dos seis sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato, e o sentido da mente que sabe as qualidades mentais e idéias.

A partir disso – e muito mais poderia ser dito sobre essas condições – deveria ser óbvio que o simples ato da atenção é qualquer coisa, menos mera. A atenção é em geral moldada por idéias ignorantes e as ações intencionais influenciadas por essas idéias. Como resultado, habitualmente a atenção é sem sabedoria: aplicada às coisas erradas e por razões não apropriadas, agravando assim o problema do sofrimento, ao invés de aliviá-lo.

Treinando a Atenção com sabedoria

Então, como a atenção pode ser treinada na outra direção? Obviamente, ela deveria ser livre das condições de ignorância, mas isto não significa que ela deveria – ou mesmo que pode – ser inteiramente livre de condicionamentos. Afinal, isso requereria um ato da vontade, e esse ato de vontade teria de ser formado por um entendimento correto e pragmático do sofrimento e das suas causas. E também, esse ato de vontade e esse entendimento teria de ser trazido à mente continuamente para que a atenção pudesse ser re-treinada continuamente.

Assim, ao invés de ser despojada de todas as condições, a atenção requer esse novo conjunto de condições para fazer com que ela se torne sábia. É por isso que o Buda disse que os fatores correspondentes ao caminho – entendimento correto, esforço correto e atenção plena correta – estão sempre juntos com cada passo do caminho. Entendimento correto fornece a habilidade de ver as coisas sob o prisma das quatro nobre verdades, o esforço correto ativa o desejo e a intenção de agir habilmente em relação a esse entendimento, enquanto que a atenção plena correta fornece uma base sólida para a manutenção desse entendimento e desse esforço na mente.

Desses três fatores do caminho, entendimento correto vem primeiro, pois é o antídoto direto para a primeira condição da ignorância. Entendimento correto não é simplesmente conhecimento sobre as quatro nobres verdades; é o entendimento que vê as coisas sob o ângulo dessas verdades. Em outras palavras, para uma pessoa que objetiva o fim do sofrimento e do estresse, esse entendimento indica os quatro principais fatores que devem ser buscados a todo momento. Ao mesmo tempo, o entendimento vê as tarefas e obrigações apropriadas a cada fator: o sofrimento deve ser compreendido, a sua causa abandonada, a sua cessação realizada, e o caminho para a sua cessação desenvolvido. Como o Buda mencionou no seu primeiro sutta, esse conhecimento das tarefas apropriadas para cada verdade vem em dois estágios. O primeiro, identifica a tarefa. O segundo, compreende que a tarefa foi completada. Esse segundo estágio é o conhecimento da iluminação. Entre o primeiro estágio e o segundo estágio se estende a prática.

O que isso significa é que a prática será marcada por períodos alternados de ignorância e sabedoria, com a sabedoria crescendo gradualmente cada vez mais forte e mais refinada. Durante esses períodos de sabedoria, o ato da atenção será informado pelo entendimento do sofrimento e das suas causas. Será motivado também pelas intenções – expressadas através da maneira como nos relacionamos com a respiração, pela atividade mental referente ao pensamento aplicado e pensamento sustentado e pelas nossas percepções e sensações – que objetivam trazer o sofrimento para um fim. Essa combinação do entendimento sábio e da intenção compassiva é o que transforma o ato da atenção, de causa do sofrimento numa estratégia saudável: uma atenção curativa. Essa atenção curativa é chamada sábia por que olha para as coisas de maneira apropriada para seguir adiante com as tarefas das nobres verdades, focando em quaisquer que sejam as tarefas que necessitem ser desenvolvidas num determinado momento.

Por exemplo, quando a atenção precisar ser focada na compreensão do sofrimento, o papel da atenção com sabedoria é ver os agregados – os componentes do nosso sentido de eu – de tal modo que induza o desapego em relação a eles.

“Um bhikkhu virtuoso, meu amigo Kotthita, deveria observar com atenção com sabedoria os cinco agregados influenciados pelo apego como impermanentes, sofrimento, uma enfermidade, um câncer, uma flecha, dolorosos, uma aflição, estranhos, uma dissolução, um vazio, não-eu. Quais cinco? A forma como um agregado influenciado pelo apego, sensação ... percepção ... formações ... consciência como um agregado influenciado pelo apego. Um bhikkhu virtuoso deveria observar com atenção com sabedoria esses cinco agregados influenciados pelo apego como impermanentes, sofrimento, uma enfermidade, um câncer, uma flecha, dolorosos, uma aflição, estranhos, uma dissolução, um vazio, não-eu. Pois, é possível que, um bhikkhu virtuoso, que observe com atenção com sabedoria esses cinco agregados como impermanentes ... não-eu, possa alcançar o fruto de ‘entrar na correnteza’” [ SN 22.122]

Dar atenção aos agregados dessa forma ajuda a progredir na tarefa do abandono de qualquer apego aos agregados que causem sofrimento.

Quando a atenção precisa ser focada no desenvolvimento do caminho, o papel da atenção com sabedoria é alimentar os fatores da iluminação e esfomear os cinco obstáculos que atrapalham. Aqui é onde a atenção com sabedoria se aplica à prática do estabelecimento da atenção plena, levando-se em conta que a atenção plena solidamente estabelecida é o primeiro fator da iluminação. Assim, um dos primeiros papéis da atenção com sabedoria é alimentar o desenvolvimento da atenção plena.

A imagem de alimentar ou esfomear está aqui diretamente relacionada com o insight da condicionalidade que formou a mensagem essencial da iluminação do Buda. De fato, quando ele introduziu o tópico da condicionalidade aos jovens noviços, ele o ilustrou com o ato da alimentação: Todos os seres, ele disse, sobrevivem de comida. Se a existência deles depende do ato de comer, então, ela termina quando eles são privados dessa comida. A aplicação dessa analogia ao problema do sofrimento nos leva à conclusão de que, se o sofrimento depende de condições, ele pode ser levado a um fim se o esfomearmos das suas condições.

Na sua expressão mais sofisticada, porém, o insight do Buda, em relação à causalidade, indica que cada momento é composto de três tipos de fatores: resultados de intenções no passado, intenções no momento presente e resultados de intenções no momento presente. Por que muitas intenções no momento passado podem ter um impacto a qualquer momento, isso significa que pode haver muitas influências potenciais provindas do passado – benéficas ou prejudiciais – aparecendo no corpo ou mente a todo momento. O papel da atenção com sabedoria é focar em qualquer que seja a influência potencialmente mais benéfica e olhar de tal modo que promova intenções habilidosas no presente momento.

Alimentando e Esfomeando

O Discurso da Comida, (Ahara Sutta, SN 46.51), indica como a atenção com sabedoria pode ser aplicada aos potenciais do momento presente para esfomear os obstáculos e alimentar os fatores da iluminação. Em relação aos obstáculos ele indica que:

Desejo sensual é alimentado pela atenção sem sabedoria ao tema da beleza e esfomeado pela atenção com sabedoria ao tema do não atrativo. Em outras palavras, para esfomear o desejo sensual voltamos nossa atenção dos aspectos de beleza do objeto de desejo e focamos, ao invés, no seu lado não atrativo.

Má vontade é alimentada pela atenção sem sabedoria ao tema da irritação e esfomeada pela atenção com sabedoria ao abandono mental através da boa vontade, compaixão, alegria altruísta e equanimidade. Em outras palavras, voltamos nossa atenção dos aspectos irritantes que irradiam má vontade e focamos, ao invés, em quanta liberdade a mente experiencia quando pode cultivar essas atitudes sublimes no seu íntimo.

Preguiça e torpor são alimentados pela atenção sem sabedoria aos sentimentos de tédio, sonolência e preguiça. São esfomeados pela atenção com sabedoria a qualquer potencial de energia ou esforço no presente.

Inquietação e ansiedade são alimentadas pela atenção sem sabedoria à falta de tranqüilidade na mente e esfomeadas pela atenção com sabedoria a qualquer tranqüilidade mental que estiver presente.

Dúvida é alimentada pela atenção sem sabedoria aos tópicos que são abstratos e conjecturais e é esfomeada pela atenção com sabedoria às qualidades hábeis e não hábeis da mente. Em outras palavras, ao invés de focar em assuntos que não podem ser resolvidos através da observação no presente momento, focamos em um que pode: quais qualidades mentais resultam em prejuízo para a mente e quais não.

Em resumo, cada obstáculo é esfomeado pela mudança tanto de foco como de qualidade da atenção.

Com os fatores da iluminação, no entanto, o processo de alimento consiste principalmente de mudança da qualidade da atenção. O discurso lista cada fator – atenção plena, investigação dos fenômenos, energia, êxtase, tranqüilidade, concentração, (os quatro jhanas), e equanimidade – junto com a sua base potencial, dizendo que o fator é esfomeado pela atenção sem sabedoria e alimentado pela atenção com sabedoria. Com exceção de uma, o discurso não menciona o nome de cada base. Aparentemente, o propósito disso é desafiar o meditador. Uma vez que o meditador tenha recebido as instruções para a atenção plena e concentração, ele deverá tentar identificar na sua própria experiência qual é a base potencial de cada fator da iluminação.

A única exceção, no entanto, é esclarecedora. A base do segundo fator – investigação dos fenômenos – é a presença de qualidades mentais hábeis e não hábeis. Dar atenção com sabedoria para essas qualidades não só alimenta o fator da investigação dos fenômenos, como também esfomeia o obstáculo da dúvida, e ao mesmo tempo, fornece o referencial para a identificação, por você mesmo, das bases para cada um dos fatores da iluminação restantes.

Desses fatores, a equanimidade é o mais próximo do que é algumas vezes descrito como mera atenção ou atenção não reativa. Mas até mesmo a equanimidade é condicionada pelas idéias e intenções. Por exemplo, o Buda mostra no MN 101 que ao encontrar qualidades não hábeis na mente, o meditador observará que algumas dessas qualidades desaparecerão somente através de um esforço concentrado; em outros casos, porém, só olhar com equanimidade já será o suficiente. Mas até mesmo essa equanimidade é condicionada por um entendimento do que é hábil e não-hábil e está motivada para fazer o que é não-hábil desaparecer.

Não Fabricação

De fato, a equanimidade tem vários níveis, e um insight crucial no nível mais alto da prática é ver que mesmo a equanimidade dos estados refinados de jhana – nos quais a consciência e seu objeto parecem totalmente “unificados” – é uma fabricação: condicionada e resultante da volição. Ao ganhar esse insight, a mente se inclina na direção do que chamamos de “não-fabricação”, (attammayatta) – literalmente, “não-feito-disso”, onde nada é absolutamente adicionado aos dados da experiência sensorial.

A mudança da equanimidade para a não-fabricação é descrita resumidamente numa passagem famosa:

“Então, Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao que é visto, haverá apenas o visto. Com relação ao que é ouvido, haverá apenas o ouvido. Com relação ao que é sentido, haverá apenas o sentido. Com relação ao que é conscientizado, haverá apenas o conscientizado. Assim é como você deve treinar. Quando com relação ao que é visto houver apenas o visto, ao que é ouvido houver apenas o ouvido, ao que é sentido houver apenas o sentido, ao que é conscientizado houver apenas o conscientizado, então, Bahiya, você não estará ‘com aquilo.’ “Quando você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’ Quando você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e tampouco entre os dois. Isso em si mesmo é o fim do sofrimento.” [ Ud I.10]

Superficialmente, essas instruções podem dar a impressão de estar descrevendo a mera atenção, mas se olharmos mais detidamente veremos que tem mais coisa por trás disso. Para começar, as instruções vêem em duas partes: o conselho sobre como treinar a atenção e a promessa dos resultados que virão do treino da atenção dessa maneira. Em outras palavras, o treino também está operando no nível condicionado de causa e efeito. É algo para ser feito. Isso significa que é moldado por uma intenção, o que por sua vez é moldado por um entendimento. A intenção e o entendimento são formados pela parte “resultado” da passagem: O meditador quer atingir o fim do estresse e sofrimento e, portanto, está querendo seguir o caminho para esse fim. Assim, com cada nível distinto da atenção com sabedoria, a atenção correspondente desenvolvida é condicionada pelo entendimento correto – o conhecimento de que as intenções no presente são no final das contas a fonte do sofrimento – e motivadas pelo desejo de colocar um fim a esse sofrimento. É por isso que o esforço é feito para não adicionar absolutamente nada aos potenciais vindos do passado.

A necessidade do entendimento correto pareceria inexistente diante das circunstâncias que circundam essas instruções. Afinal, essas são as primeiras instruções que Bahiya recebe do Buda, e ele realiza a iluminação imediatamente depois de recebê-las, portanto as instruções parecem serem completas por si mesmas. Entretanto, naquilo que antecede essa passagem, Bahiya é descrito como uma pessoa extraordinariamente atenta e motivado em relação à pratica. Ele já sabe que a iluminação é realizada através do ‘fazer algo’ e as instruções vêem em resposta ao seu pedido de um ensinamento que lhe mostrasse o que fazer agora para o seu bem estar e felicidade por muito tempo – a pergunta que o MN 135 identifica como a base da sabedoria e discernimento. Assim, a atitude dele contém todas as sementes do entendimento correto e da intenção correta. Por que ele era sábio – o Buda mais tarde o elogiou como o principal entre os seus discípulos em relação à rapidez do seu discernimento – ele foi capaz de trazer aquelas sementes para fruição imediatamente.

Um verso do SN 35.95 – dito pelo Buda, expressa o sentido das instruções para Bahiya – dá uma explicação sobre como Bahiya pode ter desenvolvido essas sementes.

“Quando, com firme atenção plena, ele vê uma forma, ele não se inflama com a cobiça pelas formas; ele as experimenta com a mente desapegada e não permanece agarrado naquilo com intensidade."

“Ele assim permanece com atenção plena de tal modo que mesmo ao ver a forma, e enquanto sente uma sensação, [o sofrimento] é exaurido, não acumulado. Para aquele que assim desmantela o sofrimento, é dito que Nibbana está muito próximo."

Note duas palavras nesses versos: atenção plena e desapegado. A referência à atenção plena enfatiza a necessidade de continuamente se lembrar da intenção de não adicionar nada a quaisquer potenciais do passado. Isso novamente aponta para a natureza da atenção provida de volição que está sendo cultivada.

Algumas interpretações das instruções para Bahiya sugerem que há um fator adicionado, de um entendimento metafísico de algo por detrás dos dados das experiências, mas esse tipo de idéia metafísica – mesmo que possa constituir uma base para a paixão – será apenas uma entre muitas bases. A crença de que existe algo no exterior que pode ser agarrado e possuído pode obviamente formar uma condição para a paixão, mas assim também a crença de que não existe nada no exterior: quando não existe nada, não haverá nenhum dano ao ceder ao desejo, o tipo de idéia que pode justificar todas as paixões prejudiciais. Então, o meditador tem de ser muito cauteloso para não adicionar hipóteses aos dados da experiência que possam de alguma maneira, forma ou jeito que seja, encorajar a paixão. E isso envolve mais do que mera atenção. Isso requer entendimento correto sobre como a paixão funciona e o que é necessário para derrotá-la.

A noção que temos de quem somos é definida por nossas paixões, (como indicado nos SN 22.36 e SN 23.2). Mesmo quando não pensamos conscientemente no “eu” – como quando estamos totalmente imersos numa atividade, unificados com a atividade – pode existir a paixão por esse estado de unificação com um forte sentido de “estar aqui”, “ser o fazedor”, ou "ser o sabedor”, que é uma forma sutil de identidade.

Mas quando o discernimento está afiado o suficiente para ver que mesmo essa equanimidade é fabricada e condicionada, algo que é feito, (veja MN 137 e MN 140), qualquer paixão por isso pode também ser enfraquecida. Quando a paixão consistentemente não tem um lugar para pousar, não existe o núcleo para um “lugar” de nenhum tipo: nenhum “aqui”, nenhum “lá”, nenhum núcleo para fabricar um sentido de identidade em torno de alguma coisa em absolutamente nenhum lugar. Isso explica o porque do estado de não–fabricação ser expressado como destituído de lugar: “Quando você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’ Quando você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e tampouco entre os dois.”

Com o total desaparecimento da paixão, a intenção final de enfraquecer a paixão pode então ser abandonada. Quando ela é abandonada – sem necessidade de substituição por nenhuma outra – nada mais é construído. Isso traz a verdadeira abertura para o Imortal, que está além de todas as condições – até mesmo das condições de entendimento correto, atenção plena e atenção com sabedoria.

A extraordinária natureza dessa experiência é indicada pelo verso que conclui o discurso para Bahiya:

"Onde a terra, água, fogo e ar, grande e pequeno, fino e grosseiro, puro e impuro – não encontram apoio:

Onde as estrelas não brilham,
             o sol não È visÌvel,
             a lua não aparece,
             a escuridão não é encontrada.

E quando um sábio,
             um brâmane através da sabedoria,
             compreendeu isso de modo direto,

então do material e do imaterial,
             do prazer e da dor,
             ele está libertado."

Quando a pessoa iluminada emerge da sua experiência e recomeça a lidar com as condições de tempo e espaço, é com uma perspectiva totalmente nova. Mas até mesmo nesse caso, ele/ela ainda encontrarão utilidade para a atenção com sabedoria. Como o Venerável Sariputta observa no SN 22.122:

"Um arahant deveria observar com atenção com sabedoria os cinco agregados influenciados pelo apego como impermanentes, sofrimento, uma enfermidade, um câncer, uma flecha, dolorosos, uma aflição, estranhos, uma dissolução, um vazio, não-eu. Apesar de não existir nada mais a ser feito e nada a acrescentar àquilo que já foi feito por um arahant, ainda assim, quando essas coisas são desenvolvidas e cultivadas, elas conduzem a um estado prazeroso no aqui e agora, à atenção plena e à completa compreensão."

Portanto, é importante compreender que não existe essa coisa de mera atenção na prática dos ensinamentos do Buda. Ao invés de tentar criar uma forma incondicionada de atenção, a prática tenta criar um conjunto de condições habilidosas para moldar e direcionar o ato da atenção para transformá–la em sábia: verdadeiramente curativa e que verdadeiramente leva ao fim do sofrimento e estresse. Uma vez que essas condições tenham sido bem desenvolvidas, o Buda garante que elas serão muito úteis – mesmo depois de passado o momento da iluminação, todo o tempo, até a última morte.

 

 

Revisado: 17 Setembro 2011

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