Um Ensaio sobre o Abhidhamma
Conteúdo:
Paramattha – a Realidade Última
O
Abhidhamma e o Mestre do Dhamma
O
Conhecimento do Abhidhamma é Indispensável?
I. Compêndio da Consciência (Citta)
II.
Compêndio dos Fatores Mentais (Cetasika)
Os Cinqüenta e Dois Fatores Mentais
III.
Compêndio da Matéria (Rupa)
Enumeração dos Fenômenos Materiais
O Agrupamento de Fenômenos Materiais
IV.
Compêndio do Processo Cognitivo (Vithisangahavibhaga)
O Processo nas Cinco Portas dos Meios dos Sentidos
V.
Compêndio da Condicionalidade (Paccayasangahavibhaga)
O Método das Relações Condicionais
As Vinte Quatro Relações Condicionais
As Relações Condicionais e a Origem Dependente
Sob a
perspectiva da prática pode ser dito que o Budismo consiste de três
ensinamentos superiores, (adhisikkha): a ética, (sila), o
desenvolvimento da mente ou meditação, (bhavana) e a sabedoria, (pañña).
Todos esses três elementos são essenciais para alcançar a libertação do
sofrimento. Apenas um ou dois deles não será o bastante. Em linhas gerais, pode
ser dito que a doutrina Budista contida no Tipitaka,ou ‘três cestos’,
está organizada de modo a correlacionar-se com esses três elementos essenciais.
Assim o primeiro ‘cesto’ da Disciplina, (Vinaya), corresponde ao
ensinamento da ética, os Discursos, (Sutta), correspondem aos
ensinamentos de meditação enquanto que o terceiro ‘cesto’, o Ensinamento mais
Elevado, (Abhidhamma), corresponde aos ensinamentos da sabedoria. Com
base nesse modelo, aqueles que têm como meta o objetivo máximo do Budismo
deveriam, além do cultivo da ética e da meditação, aprender também algo do
Abhidhamma. O estudo do Abhidhamma permite a formulação de um estrutura
filosófica prática que poderá ser empregada para vários fins: a investigação
das experiências na prática da meditação de insight e a interpretação dos
ensinamentos contidos nos outros dois ‘cestos’, os Suttas e o Vinaya, cuja
exegese num nível avançado é guiada pelos princípios do Abhidhamma.
O
Abhidhamma possui a reputação de ser um ensinamento denso e difícil, talvez
derivado do fato de, originalmente, nas sociedades Budistas tradicionais apenas
monges e monjas estudarem-no, enquanto que as pessoas leigas se contentavam com
os Suttas e algumas narrativas do Vinaya. O Vinaya diz respeito ao Buda e à
comunidade monástica. Abrange a história das suas vidas e da comunidade,
incorporando os julgamentos éticos feitos pelo Buda de acordo com cada situação
individual que conforme o caso resultava numa regra de conduta para toda a
comunidade. Os Suttas são os discursos proferidos pelo Buda e pelos seus
discípulos mais graduados dirigidos a audiências específicas. O Abhidhamma
apresenta os ensinamentos contidos nos suttas num formato abstrato,
estruturado, com uma aparência altamente técnica, empregando esquemas ou
matrizes para representar a totalidade da natureza da mente e matéria. O
Abhidhamma consiste de 7 livros: Dhammasangani, Vibhanga, Dhatukatha,
Puggalapaññatti, Kathavatthu, Yamaka e Patthana, cada um deles com o
seu respectivo comentário: Atthasalini, (do Dhammasangani), Sammoha-vinodani,
(do Vibhanga), e Pañcappakarana-atthakattha, (os demais cinco
livros). Todos os comentários foram obra de Acariya Buddhaghosa, o mais
eminente dos comentadores do Cânone em Pali. Buddhaghosa era um monge hindu que
foi para o Sri Lanka no século V da era cristã para estudar os antigos
comentários compilados em Cingalês que haviam sido preservados no Mahavihara, o
Grande Monastério que era o centro da ortodoxia Theravada em Anuradhapura. Com
base nesses comentários, Buddhaghosa compôs novos comentários no idioma
internacional do Theravada, atualmente conhecido como Pali. Esses comentários,
compostos com refinamento e coerência doutrinária, não são obras originais que
expressam o pensamento de Buddhaghosa mas versões editadas e sintetizadas dos
comentários antigos. Esses comentários antigos não sobreviveram ao desgaste dos
anos. A obra prima de Buddhaghosa, o Visuddhimagga, é na verdade uma obra de
“Abhidhamma na prática” e os capítulos 14-27 constituem um compêndio resumido
da teoria do Abhidhamma como preparação para a meditação de insight.
O Tipitaka
ou Cânone em Pali foi compilado durante os três grandes concílios que ocorreram
na Índia depois da morte do Buda. O primeiro concílio ocorreu em Rajagaha três
meses depois do Parinibbana do Buda. Nesse concílio se reuniram 500 monges
arahants liderados pelo Ven. Mahakassapa, onde foram recitados todos os
ensinamentos do Buda. A recitação do Vinaya pelo Ven. Upali foi aceita como o
Vinaya Pitaka; a recitação do Dhamma pelo Ven. Ananda ficou estabelecida como o
Sutta Pitaka. Cem anos após o Parinibbana do Buda houve o segundo concílio em
Vesali. O terceiro concílio ocorreu em Pataliputra duzentos anos depois do
Parinibbana do Buda e nesse concílio o Abhidhamma foi recitado. Mas essa
explicação não é suficiente para dar resposta à questão sobre como surgiram
esses textos. Ao contrário dos suttas e dos relatos das regras monásticas no
Vinaya, os livros do Abhidhamma não trazem qualquer informação quanto à sua
origem. Os comentários, no entanto, atribuem essa dissertação ao próprio Buda.
O Atthasalini, que traz o relato mais explícito, menciona que o Buda
concretizou o Abhidhamma na noite da sua iluminação e que a investigação em
detalhe foi realizada durante a quarta semana após a iluminação. Depois disso,
durante o sétimo retiro das chuvas o Buda ensinou o Abhidhamma para as
divindades do Paraíso de Tavatimsa que incluía uma divindade que havia sido
antes a sua mãe. Como demonstração de gratidão para com a sua mãe, que havia
falecido sete dias depois do seu nascimento, o Buda ensinou o Abhidhamma
durante três meses, para que aquela divindade pudesse alcançar a libertação
final. A cada manhã, durante esse período, ele voltava ao plano humano para a
sua refeição diária quando então ensinava os métodos ou princípios da doutrina
que ele havia tratado para o seu discípulo principal Sariputta. A elaboração
detalhada dos ensinamentos do Abhidhamma a partir dos princípios gerais
definidos pelo Buda é atribuída a Sariputta que teria transmitido esses
ensinamentos aos seus discípulos diretos. O Anupada
Sutta (MN 111) relata uma
análise detalhada dos processos mentais feita pelo Ven. Sariputta. Muitos
outros suttas como por exemplo o Madhupindika
Sutta (MN 18) e o Uddesavibhanga Sutta (MN 138) também ilustram situações em que o Buda
transmite um ensinamento de forma sumária cabendo aos seus discípulos mais próximos
analisar aquilo que foi dito de forma resumida. Sob o ponto de vista
Theravada o esquema exposto pelo Abhidhamma é considerado como pertencendo ao
domínio dos Budas, ou seja, não é a invenção do pensamento especulativo ou
discursivo, ou um mosaico de hipóteses metafísicas, mas a exposição da
verdadeira natureza da existência tal como foi compreendida por uma mente que
penetrou a totalidade das coisas tanto nos seus níveis mais profundos como no
seus maiores detalhes. Dado esse caráter, o Abhidhamma expressa do modo mais
perfeito possível o conhecimento onisciente do Buda. É a manifestação de como
as coisas são, compreendidas pela mente de um Buda, organizadas de acordo com
os dois marcos principais dos seus ensinamentos: o sofrimento e a cessação do
sofrimento. Nos países Theravada como o Sri Lanka, Myanmar e Tailândia, o
Abhidhamma é altamente apreciado e reverenciado como o pináculo das escrituras
Budistas. Como exemplo da estima que o Abhidhamma desfruta, o rei Kassapa V do
Sri Lanka (séc. X da era cristã) ordenou que todo o Abhidhamma fosse inscrito
em placas de ouro e o primeiro livro decorado com gemas preciosas.
No entanto,
nos círculos acadêmicos existem opiniões distintas quanto à origem do
Abhidhamma, e baseados em estudos comparativos dos diversos textos disponíveis
é traçada uma rota alternativa para os textos canônicos. A palavra abhidhamma
aparece nos suttas, mas em contextos que indicam que era um assunto de
discussão entre os monges, ao invés de um ensinamento transmitido pelo Buda.
Algumas vezes a palavra abhidhamma é encontrada junto com abhivinaya e podemos
supor que os dois termos se referem respectivamente ao tratamento analítico,
especializado, da doutrina e da disciplina monástica. Um outro fator que os
acadêmicos contemporâneos consideram ter sido uma semente no desenvolvimento do
Abhidhamma é o uso de certas listas mestras para representar a estrutura
conceitual dos ensinamentos do Buda. Com o propósito de facilitar a memorização
e visando auxiliar nas explicações, os especialistas na doutrina dentro da
Sangha com freqüência formulavam os ensinamentos sob uma forma esquemática.
Esses esquemas, que se baseavam nos conjuntos numéricos que o próprio Buda
usava com regularidade como armação para expor a sua doutrina, não eram mutuamente
exclusivos mas se combinavam e mesclavam de modo a permitirem a sua integração
em listas mestras que se assemelhavam a diagramas em forma de árvore. Essas
listas mestras eram chamadas matikas, ‘matrizes,’ e a habilidade exigida
para o seu uso era algumas vezes considerada como uma das qualidades de um
monge erudito. Para ser competente no uso das matikas era necessário conhecer
não somente os termos e suas definições, mas também a sua estrutura subjacente
e o arranjo arquitetônico que revelavam a estrutura lógica interna do Dhamma.
Uma fase inicial do Abhidhamma pode ter consistido da elaboração dessas listas
mestras, uma tarefa que exigiria um conhecimento abrangente dos ensinamentos e
capacidade para um raciocínio com precisão técnica rigorosa.
Mesmo para
os não Budistas que não consideram ter sido o Buda um ser onisciente, mas
apenas um eminente e profundo pensador, parece ser improvável que o Buda não
pudesse ter ciência das implicações
filosóficas e psicológicas dos seus ensinamentos, mesmo que ele não falasse
sobre isso desde o princípio para todos os seus discípulos. Considerando a
inegável profundidade do Abhidhamma, parece mais provável que pelo menos os
seus ensinamentos básicos derivam daquela intuição profunda que o Buda chamava samma
sambodhi, a Perfeita Iluminação. Parece, portanto, plausível que a tradição
Theravada atribua a estrutura e os elementos básicos do Abhidhamma ao próprio
Buda. Uma questão totalmente distinta, é claro, é a origem da literatura
ordenada do Abhidhamma tal como a conhecemos hoje. Os textos do Abhidhamma, que
foram apresentados no terceiro concílio em Pataliputra, que constituíram o
núcleo original do Abhidhamma Pitaka do Theravada, podem ter continuado a
evoluir por alguns séculos mais. No primeiro século antes da era cristã o
Abhidhamma Pitaka, juntamente com o restante do Cânone em Pali, foi registrado
em forma escrita pela primeira vez no Alokavihara no Sri Lanka. Essa versão
aprovada oficialmente marca o ponto terminal do desenvolvimento dos textos
canônicos do Abhidhamma Pitaka no Theravada.
Um outro
elemento, que com freqüência é ignorado, é que ao fazer uma análise comparativa
do Abhidhamma com o Sutta Pitaka, são encontrados muitos suttas, em particular
no Samyutta Nikaya, que contêm uma quantidade considerável de análises típicas
do Abhidhamma. São discursos que fazem uso da linguagem sob a perspectiva da
realidade última, (paramattha),
empregando estrita terminologia filosófica e explicando a
experiência como processos condicionados desprovidos de uma entidade ou
substância permanente; como exemplo, os suttas que tratam dos cinco agregados,
os dezoito elementos e os seis meios dos sentidos (khandhas, dhatu,
ayatana).
Agora, em
que sentido o Abhidhamma pode ser chamado de filosofia? Façamos a grosso modo
uma divisão da filosofia em fenomenologia e ontologia e vamos caracterizá-las
de modo sucinto da seguinte forma: a fenomenologia lida, como o nome
implica, com os “fenômenos”, isto é, com o mundo da experiência interno e
externo. A ontologia, ou metafísica, investiga e busca a existência e a
natureza de uma essência, ou princípio último, que dá suporte a todo o mundo
dos fenômenos. Em outras palavras, a fenomenologia investiga as
questões: O que acontece no mundo da nossa experiência? Como isso
acontece? A ontologia por outro lado, insiste que a questão “como” não
pode ser respondida sem a referência a uma essência eterna que dá suporte à
realidade, podendo essa essência ser concebida como imanente ou transcendente.
Com freqüência neste caso, a pergunta “como” é transformada em “porque”,
assumindo a premissa tácita de que a resposta tem que ser encontrada fora da
realidade tal como ela se apresenta. O Abhidhamma, sem dúvida, pertence à
primeira dessas duas divisões da filosofia, isto é, a fenomenologia. Mesmo o
termo dhamma, tão fundamental no Abhidhamma, que inclui as “coisas”
corporais bem como materiais, pode muito bem ser interpretado como “fenômeno”.
Portanto, o Abhidhamma não é uma filosofia especulativa mas descritiva. Com o
objetivo de descrever os fenômenos o Abhidhamma emprega dois métodos
complementares: a análise e a investigação das relações, (ou condicionalidade),
dos fenômenos.
Os dois
livros mais importantes do Abhidhamma são o Dhammasangani e o Patthana-pakarana.
O Dhammasangani é a classificação da existência em três categorias
últimas empíricas: consciência, (citta), fatores mentais, (cetasikas),
e mentalidade-materialidade (nome e forma), (nama-rupa). Nele é encontrada a análise
sistemática dos agregados, (khandhas), bases ou meios, (ayatana),
e elementos, (dhatu). O Patthana-pakarana é o maior volume
compreendendo seis partes. Nele é encontrado o modelo das relações
condicionadas, uma das quatro principais aplicações da doutrina da origem
dependente. Essas quatro aplicações são:
As quatro
nobres verdades
Os doze
elos da cadeia do vir a ser
O modelo
das relações condicionadas
A lei de
kamma
O Dhamasangani
é em essência um livro que contém classificações e definições dos termos empregados
no Abhidhamma. Seu enfoque é analítico, dissecando e categorizando as
experiências de acordo com os seus constituintes últimos ou dhammas. O Patthana
usa o método da síntese e mostra como todos esses fenômenos estão relacionados
e condicionados.
O
Abhidhamma também pode ser considerado como uma sistematização das doutrinas
contidas ou implícitas no Sutta Pitaka. Essas doutrinas são formuladas no
Abhidhamma numa linguagem mais precisa, estritamente filosófica ou
verdadeiramente realista, descrevendo as funções e processos desprovidos dos
conceitos convencionais e irreais que assumem a existência de um agente, de uma
identidade, de uma alma ou substância.
Paramattha – a Realidade
Última
De acordo
com a filosofia do Abhidhamma existem dois tipos de realidade – a convencional,
(sammuti), e a última, (paramattha). A realidade convencional é o
referencial do pensamento conceitual comum e modos de expressão convencionais.
Isto inclui entidades como seres vivos, pessoas, homem, mulher, animais e os objetos
aparentemente estáveis que constituem o quadro que percebemos como sendo o
mundo. O Abhidhamma defende que essas noções em última análise não possuem
validade pois os objetos que elas representam não existem por si mesmos como
realidades irredutíveis. A sua existência é puramente conceitual, não real.
Eles são o produto de fabricações mentais, não realidades com uma substância
inerente.
A realidade
última, por outro lado, são os dhammas: elementos irredutíveis da
existência, as entidades últimas resultantes da correta análise da experiência.
Esses elementos são o nível de redução mais elementar dos fenômenos passíveis
de serem experimentados. São os verdadeiros constituintes da complexa
multiplicidade das experiências.
Nos suttas,
em geral, o Buda analisa um ser ou indivíduo sob a forma de cinco tipos de paramatha,
os cinco agregados: matéria, sensação, percepção, formações mentais e
consciência. No Abhidhamma a realidade última é organizada em quatro
categorias. As três primeiras – consciência, fatores mentais e matéria –
abrangem toda a realidade condicionada. Os cinco agregados mencionados nos
suttas se encaixam dentro desses três grupos. O agregado da consciência, (viññana,)
está representado no Abhidhamma pela consciência, (citta), sendo que
a palavra citta em geral é
empregada para se referir aos diferentes tipos de consciência que se
diferenciam de acordo com os seus fatores mentais concomitantes. Os três
agregados intermediários são incluídos no Abhidhamma dentro do grupo de fatores
mentais, (cetasika), os estados mentais que surgem juntamente com a
consciência e que desempenham diferentes funções. O Abhidhamma enumera 52
fatores mentais: os agregados da sensação e percepção são considerados cada um
como um fator; o agregado das formações mentais, (sankhara), é
subdividido em 50 fatores mentais. O agregado da matéria é idêntico ao grupo da
matéria no Abhidhamma. No Abhidhamma a matéria está dividida em 28 tipos de
fenômenos materiais.
A esses
três tipos de realidade condicionada é adicionada uma quarta realidade que é
incondicionada. Essa realidade que não está incluída nos cinco agregados é
Nibbana, o estado de libertação final do sofrimento inerente aos estados
condicionados. Portanto, no Abhidhamma existem ao todo essas quatro realidades
últimas: consciência, fatores mentais, matéria e Nibbana.
Um dos
principais componentes do Abhidhamma é a análise e classificação da
consciência. A mente humana, tão evanescente e tão elusiva, foi submetida a um
escrutínio abrangente, meticuloso e imparcial. A abordagem adotada é de uma
rigorosa fenomenologia que descarta a noção de que na mente pode ser encontrada
qualquer tipo de unidade estática ou substância imanente. No entanto, essa
psicologia tem um fundamento básico na ética e um propósito soteriológico que
impede que a análise realista e não metafísica da mente acabe implicando em
conclusões de materialismo ético ou amoralismo teórico e prático. O método de
investigação empregado no Abhidhamma é indutivo, estando baseado
exclusivamente na observação introspectiva imparcial e sutil dos processos
mentais. O Buda conseguiu reduzir o processo de cognição aos seus distintos
momentos de consciência, que dada a sua sutileza e o seu caráter evanescente,
não podem ser observados diretamente por uma mente que não esteja treinada em
meditação. Na mente de cada ser ocorrem
distintos tipos de estados mentais benéficos, hábeis ou saudáveis, e
prejudiciais, inábeis ou insalubres.
Cada estado mental saudável tem o seu correspondente oposto insalubre. Da mesma
forma como as criaturas microscópicas numa gota d’água só se tornam visíveis
com o uso de um microscópio, os processos acelerados e de curta duração da
mente só são reconhecidos com o auxílio de um instrumento preciso para o escrutínio
mental – uma mente aprimorada pelo treinamento metódico em meditação. O Anupada Sutta (MN
111) mencionado acima, relata que o Ven. Sariputta, depois de
emergir dos jhanas, analisou as suas realizações meditativas de acordo com os
seus respectivos fatores mentais constituintes. Essa análise pode ser
considerada como precursora da análise mais detalhada proporcionada pelo Dhamasangani.
O Abhidhamma e o Mestre do Dhamma
Na tradição
Theravada a familiaridade com o Abhidhamma é considerado requisito
indispensável para aqueles que querem ensinar o Dhamma. As características do
Abhidhamma que são de particular importância para alguém que queira ensinar o
Dhamma são as seguintes: a organização sistemática do material doutrinário
contido no Sutta Pitaka; o emprego do raciocínio metódico e ordenado; a
definição precisa dos termos técnicos e sua delimitações; o tratamento de
vários temas e situações da vida diária sob a perspectiva da realidade última, (paramattha);
a maestria do conteúdo doutrinário.
O Conhecimento do Abhidhamma é Indispensável?
Freqüentemente
surge a questão sobre a compreensão do Abhidhamma, se ela é necessária para o
completo entendimento do Dhamma e para alcançar a libertação. Mesmo no Sutta
Pitaka muitos métodos são ensinados como ‘portas’ para a compreensão e
penetração das mesmas Quatro Nobres Verdades. Nem todas são necessárias para
alcançar o objetivo último, Nibbana, nem todas são adequadas na sua totalidade
para todos os tipos de indivíduos. Na verdade, o Buda ensinou diversas
abordagens possíveis e deixou por conta dos seus discípulos fazerem as suas
escolhas pessoais de acordo com as suas inclinações, circunstâncias e nível de
maturidade. O mesmo princípio se aplica ao Abhidhamma, quer seja no seu conjunto
ou aspectos individuais. Talvez, a melhor explicação da relação entre o
Abhidhamma e os suttas tenha sido formulada pelo Venerável Pelene Vajiranana
Mahathera nestes símiles: “O Abhidhamma é como uma lente de aumento poderosa,
mas a compreensão obtida dos suttas é o próprio olho, que realiza a ação de
ver. Ou, o Abhidhamma é como um frasco de remédio cujo rótulo contém uma
análise exata e detalhada do medicamento; mas o conhecimento adquirido dos
suttas é o medicamento em si, que por si só é capaz de curar a doença.”
Este
trabalho, e em particular os compêndios da consciência, fatores mentais,
matéria e processo cognitivo, estão baseados no Abhidhammattha Sangaha
que é um livro escrito por Acariya Anurudha. Muito pouco é conhecido sobre o
autor do livro, nem mesmo o seu país de origem ou o período exato em que ele
viveu. Acredita-se que o livro tenha sido composto por volta do séc. XII da era
Cristã. No entanto, a obra que ele compôs é um trabalho de mestre contendo um
resumo da essência do Abhidhamma com uma apresentação que favorece o seu
estudo. Esse livro é hoje o padrão empregado pelos estudantes ao iniciar seus
estudos do Abhidhamma em todo o mundo Theravada.
Gostaria de
enfatizar que este trabalho representa apenas a compilação e edição dos textos
elaborados por eminentes autores que possuem conhecimento e erudição neste tema
muito mais amplo que o meu. Quaisquer deficiências neste texto devem ser
atribuídas a mim e os méritos devem ser atribuídos aos autores mencionados
abaixo. (Michael Beisert)
The Abhidhammattha Sangaha – A Comprehensive Manual of Abhidhamma, Acariya Anurudha, Bhikkhu Boddhi,(General Editor); Buddhist Publication Society, 1993.
Abhidhamma Studies, Venerable Nyanaponika Thera; Budhist Publication Society, 1998.
The Psycho-Ethical Aspects of Abhidhamma, Rina
Sircar; University Press of
The Great Discourse on Causation – The Mahanidana Sutta and Its Comentaries, Bhikkhu Boddhi; Buddhist Publication Society, 1995.
Philosophy and Psychology in the Abhidharma, Herbert V Guenther; Motilal Banarsidas Publishers, 1991.
Nota:
Os termos em Pali kusala e akusala têm sido traduzidos geralmente como hábil, benéfico, e inábil, prejudicial
respectivamente. Neste trabalho optei por empregar respectivamente saudável e
insalubre. A idéia de empregar esses termos alternativos foi de oferecer uma
nova opção que permita aos leitores ampliar a compreensão desses termos em
Pali. Os termos saudável/insalubre parecem oferecer uma opção com uma carga
menor de conteúdo ‘moral’ do que benéfico e prejudicial, e também indicam de
uma forma mais intuitiva aquilo que vale a pena e o que não vale a pena.
Revisado: 21 Dezembro 2006
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