O Caminho da Tranqüilidade e Insight
Por
Bhante Henepola Gunaratana
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O Buda
disse que assim como no mar existe apenas um sabor, o sabor do sal, na sua
doutrina e disciplina também existe apenas um sabor, o sabor da liberdade. O sabor
da liberdade que permeia os ensinamentos do Buda é o sabor da liberdade
espiritual, que na perspectiva Budista significa a libertação do sofrimento. No
processo de emancipação do sofrimento, a meditação é o meio para gerar o
despertar interior necessário para a libertação. Os métodos de meditação
ensinados na tradição do Budismo Theravada estão baseados na própria
experiência do Buda, forjados por ele durante a sua própria busca pela
iluminação. Eles estão desenhados para recriar, no discípulo que os pratica, o
mesmo tipo de iluminação que o próprio Buda alcançou quando ele sentou sob a
figueira-dos-pagodes, o despertar para as Quatro Nobres Verdades.
Os vários
objetos e métodos de meditação expostos nas escrituras do Budismo Theravada – o
Cânone em Pali e os seus comentários – estão divididos em dois sistemas
interrelacionados. Um é chamado o desenvolvimento da tranqüilidade, (samatha-bhavana),
e o outro, o desenvolvimento do insight, (vipassana-bhavana). O primeiro
também pode ser denominado o desenvolvimento da concentração, (samadhi-bhavana),
e o último, o desenvolvimento da sabedoria, (pañña-bhavana). A prática
da meditação da tranqüilidade objetiva desenvolver uma mente tranqüila,
concentrada, unificada, como meio para experimentar a paz interior e como base
para o desenvolvimento da sabedoria. A prática da meditação de insight objetiva
obter o conhecimento direto da natureza real dos fenômenos. Das duas, o
desenvolvimento de insight é considerado no Budismo como a chave essencial para
a libertação, o antídoto direto contra a ignorância que está por detrás do
cativeiro e do sofrimento. Enquanto a meditação da tranqüilidade é reconhecida
como comum a ambas as disciplinas contemplativas Budistas e não Budistas, a
meditação de insight é considerada como
a descoberta singular do Buda e uma característica inigualável do caminho
proposto por ele.
Consequentemente,
devido ao fato do aprofundamento do insight pressupor um certo grau de
concentração, e a meditação da tranqüilidade ajudar a alcançá-lo, o desenvolvimento
da tranqüilidade também desfruta de um lugar incontestável no processo
meditativo Budista. Juntos, os dois tipos de meditação atuam para fazer da
mente um instrumento capacitado para a iluminação. Com a sua mente unificada
através do desenvolvimento da tranqüilidade, afiada e luminosa com o
desenvolvimento do insight, o meditador poderá proceder desobstruído para
alcançar o fim do sofrimento, nibbana.
Fundamental
em ambos os sistemas de meditação, embora inerente à tranqüilidade, está um conjunto
de realizações meditativas chamadas jhanas. Apesar dos tradutores terem
oferecido variadas interpretações dessa palavra, variando da débil “reflexão”
até a enganosa “transe” e a ambígua “meditação”, nós preferimos a palavra sem
tradução, permitindo que o seu significado aflore do seu uso contextual. Os jhanas são estados de profunda unificação
mental que resultam da concentração da mente num único objeto, com tal poder de
atenção que o que sucede é a total imersão no objeto. Os suttas fazem menção a
quatro jhanas, designados simplesmente com base na sua posição numérica na
série: o primeiro jhana, o segundo jhana, o terceiro jhana e o quarto jhana.
Nos suttas, esses quatro aparecem repetidamente, cada um descrito com um
enunciado padrão. [1]
A importância dos jhanas no caminho Budista pode ser facilmente avaliada
pela freqüência com que eles são mencionados nos suttas. Os jhanas figuram com
proeminência tanto na própria experiência do Buda, bem como nas suas exortações
aos discípulos. Na sua infância, enquanto participava de um festival anual de
semeadura, o futuro Buda espontaneamente entrou no primeiro jhana. Muitos anos
mais tarde, foi a memória desse incidente na sua infância, que, durante um
período de grande desalento em seguida à fútil prática de austeridades, revelou
a ele o caminho para a iluminação. Depois de sentar sob a figueira-dos-pagodes,
o Buda entrou imediatamente nos quatro jhanas antes de dirigir a sua mente para
os três conhecimentos verdadeiros que culminaram com a sua iluminação.
Durante
toda a sua ativa carreira, os quatro jhanas permaneceram como a estada divina à
qual ele recorria para desfrutar de uma permanência confortável aqui e agora. A
sua compreensão das impurezas, da purificação, do surgimento em relação aos
jhanas e outras realizações meditativas é um dos dez poderes de um Tathagata, [2] dez poderes que o
capacitam a girar a incomparável roda do Dhamma. Pouco antes de falecer o Buda
entrou nos jhanas em ordem direta e reversa, e a morte em si ocorreu
diretamente no quarto jhana.
O Buda é
visto constantemente nos suttas encorajando os seus discípulos a desenvolver os
jhanas. Os quatro jhanas são sempre incluídos no curso completo de treinamento
especificado para os seus discípulos. Eles aparecem no treinamento como a
disciplina da mente superior, a concentração correta no Nobre Caminho Óctuplo e
a faculdade e o poder da concentração. Embora um método de “insight seco”,
(prática de insight desprovido de jhana), possa ser encontrado nos textos, os
indícios são de que esse caminho não é fácil, pois carece do auxílio da
poderosa tranqüilidade disponível para o praticante de jhana. O caminho daquele
que realizou jhana parece, em comparação, ser mais estável e mais prazeroso. O
Buda até se refere aos jhanas em sentido figurado como um certo tipo de
nibbana.
Para
alcançar os jhanas, o meditador precisa começar eliminando os estados mentais
ruins e prejudiciais que obstruem a calma interior, em geral agrupados como os
cinco obstáculos: desejo sensual, má vontade, preguiça e torpor, inquietação e
ansiedade, e dúvida. A absorção da mente no seu objeto é produzida por cinco
estados mentais opostos àqueles – pensamento aplicado, pensamento sustentado,
êxtase, felicidade e unicidade – chamados de fatores de jhana porque eles
elevam a mente ao nível do primeiro jhana e permanecem ali como seus
componentes definidores.
Depois de
alcançar o primeiro jhana, o meditador ardente pode prosseguir para alcançar os jhanas mais elevados, que é alcançado
pela eliminação dos fatores mais grosseiros em cada jhana, enquanto ele
objetiva a pureza superior do jhana seguinte. Além dos quatro jhanas, há um
outro grupo de quatro estados meditativos mais elevados, que aprofundam ainda
mais o elemento da tranqüilidade. Essas realizações, conhecidas como
realizações imateriais ou sem forma, são denominadas a base do espaço infinito,
a base da consciência infinita, a base do nada e a base da nem percepção, nem
não percepção. Nos comentários em Pali essas realizações são chamadas de os
quatro jhanas imateriais, sendo que os quatro estados anteriores, visando
evitar confusões, são chamados de os quatro jhanas da matéria sutil.
Freqüentemente, os dois conjuntos são unificados sob o título coletivo de oito
jhanas ou oito realizações.
Os quatro
jhanas e as quatro realizações imateriais aparecem inicialmente como estados
mundanos de profunda tranqüilidade pertencendo ao estágio preliminar do caminho
Budista, e nesse nível eles ajudam a proporcionar a base de concentração
necessária para que a sabedoria surja. Mas os quatro jhanas reaparecem
novamente num estágio subseqüente no desenvolvimento do caminho, em associação
direta com a sabedoria libertadora, e nesse caso, eles são designados de jhanas
supramundanos.
Esses
jhanas supramundanos são os níveis de concentração associados aos quatro níveis
de experiência da iluminação, chamados de caminhos supramundanos, e os estágios
de libertação deles resultantes são chamados de quatro frutos.[3]
Finalmente, mesmo depois que a libertação completa tiver sido alcançada,
os jhanas mundanos ainda permanecem como realizações disponíveis para a pessoa
completamente libertada como parte da sua experiência contemplativa ilimitada.
[1] Veja aqui a descrição de cada um dos Jhanas. [Retorna]
[2] Veja o Mahasihanada Sutta – MN 12. [Retorna].
[3] O caminho supramundano, (magga),de entrar na correnteza e o
fruto, (phala), de entrar na correnteza, (sotapanna); o caminho supramundano
de retornar uma vez e o fruto de retornar uma vez, (sakadagami); o
caminho supramundano de não retornar e o fruto de não retornar, (anagami); o caminho supramundano de arahant e o fruto de
arahant. [Retorna]
Fonte: Tricycle – The Buddhist Review. Winter 2004
Revisado: 21 Maio 2005
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