Os Meios dos Sentidos nos Jhanas
Por
Michael Beisert
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A questão que pretendo abordar neste breve ensaio é se os cinco meios dos sentidos estão ativos ou desativados nos jhanas.
Não há um consenso entre os professores do Dhamma e os estudiosos com relação à resposta a essa questão. Para alguns, os sentidos são completamente desativados nos jhanas e a mente permanece desconectada do corpo voltada completamente para si mesma, num estado de intenso prazer e alegria que gradualmente é substituído por um estado de absoluta paz e equanimidade.
Para outros a mente desfruta das mesmas qualidades, no entanto não fica desconectada dos sentidos mas ao mesmo tempo não é perturbada por aquilo que impacta os sentidos.
No primeiro caso a atividade de insight, ou investigação daquilo que está sendo experimentado, ocorre apenas ao sair dos estados de jhana. No segundo caso a atividade de insight pode ocorrer durante a experiência dos jhanas.
É bom sempre lembrar que a característica fundamental dos jhanas é a mente desobstruída, ou seja sem ser importunada pelos cinco obstáculos que são: o desejo pelo prazer dos sentidos, a má vontade, a preguiça e o torpor, a inquietação e a ansiedade ou remorso, e a dúvida. No primeiro caso o insight é possível depois de sair dos jhanas pois durante algum tempo a mente ainda permanece desobstruída dos obstáculos. A mente desobstruída dos obstáculos é que permite ver com clareza a verdadeira natureza dos fenômenos.
Não é difícil concluir que no primeiro caso, em que a mente se desconecta dos sentidos, a possibilidade da mente ser importunada pelos obstáculos é nula, visto que como regra geral os obstáculos têm origem na experiência dos sentidos. O prazer e a alegria experimentados nos jhanas são aquilo que asseguram a sua estabilidade ou seja é a intensidade dessas emoções que faz com que a mente permaneça estável nesses estados.
Já no segundo caso, em que os sentidos permanecem ativos, o contato nos sentidos deve ser extremamente sutil de modo a não estimular os obstáculos. Com certeza esse tipo de estado pode ser experimentado, mas a questão principal é se esse estado pode ser mantido, ou seja se é um estado estável o suficiente, ou, se a qualquer momento, devido a algum estímulo sensorial mais impactante, esse estado possa ser perdido pois a mente será tomada por algum obstáculo.
1. O que Dizem os Suttas:
A definição padrão encontrada nos suttas para o primeiro jhana, seguindo a tradução para o inglês feita por Bhikkhu Bodhi, é a seguinte:
"É o caso em que um bhikkhu afastado dos prazeres sensuais, afastado das qualidades não hábeis, entra e permanece no primeiro jhana, que é caracterizado pelo pensamento aplicado e sustentado, com o êxtase e felicidade nascidos do afastamento.
Ajaan Brahmavamso oferece uma tradução um pouco distinta:
"Um bhikkhu afastado dos cinco sentidos, afastado dos cinco obstáculos, entra e permanece no primeiro jhana que é caracterizado pelo movimento da mente e sustentação da mente no êxtase e felicidade nascidos do afastamento."
Há três diferenças entre as duas traduções:
i) afastado dos prazeres sensuais versus afastado dos cinco sentidos
Os termos em pali são vivicceva kamehi. Vivicceva tem o significado de separar-se de algo, manter distância, afastar-se. Kamehi vem de kama que pode ter um significado objetivo ou subjetivo. O seu significado objetivo são os objetos dos sentidos, o significado subjetivo é o prazer e a alegria causados pelos objetos dos sentidos.
Numa troca de correspondência com Ajaan Brahm ele mencionou o seguinte: "Ajaan Brahmali provou com base nos suttas que sempre que a palavra kama é usada no plural significa os cinco sentidos. Portanto vivicceva kamehi sempre significa afastado/separado dos cinco sentidos."
Portanto vivicceva kamehi tem o significado de separar-se, afastar-se, manter distância dos objetos dos sentidos e do prazer e alegria causado por esses objetos.
ii) afastado das qualidades não hábeis vs. afastado dos cinco obstáculos
Os termos em pali são vivicca akusalehi dhammehi. Vivicca já foi explicado acima. Akusalehi dhammehi, ou akusala dhamma, são qualidades ou fenômenos mentais prejudiciais ou inábeis. Os cinco obstáculos claramente se encaixam nessa definição.
iii) caracterizado pelo pensamento aplicado e sustentado vs. caracterizado pelo movimento da mente e sustentação da mente
Os termos em pali são savitakkam savicaram. Vitakka e vicara como regra geral são empregados com o sentido de pensamento, mas nos estados de meditação profunda, em que os pensamentos foram deixados de lado a interpretação como sendo movimento e sustentação da mente faz mais sentido.
Portanto com base nessa análise dos termos em pali podemos oferecer uma tradução mais detalhada do primeiro jhana como:
"Um bhikkhu, separado, afastado, mantendo à distância os objetos dos sentidos e o prazer e alegria causados pelos objetos dos sentidos; separado, afastado, mantendo à distância os obstáculos, que são qualidades inábeis e prejudiciais, entra e permanece no primeiro jhana que é caracterizado pelo movimento da mente e sustentação da mente no êxtase e felicidade nascidos do afastamento."
2. Os suttas oferecem mais evidências que sustentem essa interpretação?
Há alguns suttas do Anguttara Nikaya que oferecem algumas informações adicionais:
O Anupubbanirodha Sutta diz o seguinte:
"Bhikkhus, há essas nove cessações sucessivas. Quais nove? (1) Naquele que alcançou o primeiro jhana, a percepção sensorial cessa ..."
Os termos em pali para "percepção sensorial cessa" são kamasañña niruddha. Tal como vimos acima kama pode ter um significado objetivo ou subjetivo. O seu significado objetivo são os objetos dos sentidos, o significado subjetivo é o prazer e a alegria causados pelos objetos dos sentidos. Sañña é percepção e niruddha é em geral interpretado como cessar, dissolver, desaparecer. No texto Um Problema com a palavra Nirodha o Venerável Payutto explica que essa interpretação para a palavra nirodha apresenta alguns problemas, nas palavras do Venerável:
"De modo geral, a palavra “cessar” significa eliminar algo que já havia surgido, ou de interromper algo que já havia começado. No entanto, nirodha, no ensinamento da Origem Dependente, (como também em dukkhanirodha, a terceira Nobre Verdade), significa o não surgimento ou não existência de algo porque a causa do seu surgimento foi eliminada. Por exemplo, a frase “quando avijja é nirodha, sankhara também é nirodha,” que em geral é interpretada como “com a cessação da ignorância, as formações volitivas cessam,” na verdade significa “quando não há ignorância, ou a ignorância não surge, ou quando não há mais qualquer problema com a ignorância, não existem formações volitivas, as formações volitivas não surgem, ou não existe mais nenhum problema com as formações volitivas.” Não significa que a ignorância que já surgiu tenha que ser eliminada antes que as formações volitivas que já surgiram também sejam eliminadas."
Trazendo essa interpretação para kamasañña niruddha temos "a percepção dos objetos dos sentidos e do prazer e alegria causados pelos objetos dos sentidos não surge." Qual a condição para o surgimento da percepção? Justamente o contato, ou seja quando o contato não surge, a percepção não irá surgir.
Essa interpretação ainda é mais explícita do que vivicceva que aparece na definição padrão do primeiro jhana. Combinando vivicceva kamehi e kamasañña niruddha temos que no primeiro jhana estamos falando de:
"Separar-se, afastar-se, manter distância dos objetos dos sentidos e do prazer e alegria causado por esses objetos e, o não surgimento do contato e percepção dos objetos dos sentidos e do prazer e alegria causado por esses objetos."
Existe alguma maneira mais clara de descrever o que acontece no primeiro jhana com os meios dos sentidos, com os objetos dos meios dos sentidos, e com as percepções causadas pelo encontro de ambos?
No Lokayatika Sutta o Buda descreve o mundo como os objetos do prazer sensual. Essa definição também é encontrada em outros suttas como por exemplo o Loka Sutta em que a origem e a cessação do mundo têm como base os meios dos sentidos e os seus respectivos objetos. No Lokayatika Sutta é dito que um bhikkhu que está no primeiro jhana "chega ao fim do mundo e permanece no fim do mundo", ou seja, esta é uma outra maneira de dizer que os sentidos estão inativos.
O Piti Sutta diz o seguinte:
" ... Sempre que um nobre discípulo entra e permanece no êxtase do isolamento, nessa ocasião cinco coisas não lhe ocorrem. (1) Sofrimento e tristeza conectados com a sensualidade não lhe ocorrem. (2) Prazer e alegria conectados com a sensualidade não lhe ocorrem ... "
O "êxtase do isolamento" significa o primeiro jhana. Sensualidade é kama em pali que como foi visto acima tem um sentido objetivo e subjetivo. O fato de não ocorrer o sofrimento/tristeza e felicidade/alegria conectados com a sensualidade também é um indicador que os sentidos estão desconectados.
3. A Questão da Primeira Realização Imaterial
A primeira realização imaterial ocorre depois do quarto jhana. A definição padrão da primeira realização imaterial encontrada em vários suttas é a seguinte:
"Há seres que com a completa superação das percepções da forma, com o desaparecimento das percepções do contato sensorial, sem dar atenção às percepções da diversidade, [percebendo] o ‘espaço é infinito,’ pertencem à base do espaço infinito."
Em pali:
sabbaso rupasaññanam samatikkama patighasaññanam atthangama nanattasaññanam amanasikara ananto akasoti akasanañcayatanam upasampajja viharati
Quero destacar dois termos nesse enunciado que são problemáticos:
Patighasaññanam atthangama: traduzido como "com o desaparecimento das percepções do contato sensorial".
De acordo com o dicionário pali, patigha pode ter dois sentidos, o primeiro ético, significando repulsa, repugnância, ou raiva. Segundo, o sentido psicológico, significando reação dos sentidos. Essa foi a interpretação empregada por Bhikkhu Bodhi na tradução para o Inglês e também na tradução para o Português.
O antônimo, apatigha aparece nos textos com o significado de não criar obstáculos, não obstruir, não causar dano, com base nisso, Ajaan Thanissaro traduz patigha como resistência, oposição. Nesse caso a tradução ficaria "com o desaparecimento das percepções de resistência."
A definição da primeira realização imaterial dá base aos argumentos que apenas nesse estado, e não já no primeiro jhana, haveria a superação da percepção da forma e do contato sensorial.
Antes de verificar a evidência dos suttas é bom lembrar que o processo cognitivo na mente é descrito da mesma forma que nos demais meios dos sentidos, ou seja há o contato na mente e com base no contato ocorre a sensação e percepção. Sendo assim, a mente também opera como um meio do sentido, mas com a diferença que a mente não faz parte dos prazeres sensuais. No Mahadukkhakkhandha Sutta o Buda faz uma análise detalhada da gratificação, do perigo, e da escapatória dos prazeres sensuais sendo considerados apenas os cinco meios dos sentidos, excluindo a mente.
Portanto se levarmos em conta o que foi dito antes, que os meios dos sentidos estão inativos nos jhanas, então podemos inferir que esta descrição da primeira realização imaterial se refere justamente ao contato na mente.
Há algum sutta que possa confirmar essa interpretação?
No Upakkilesa Sutta o Buda dialoga com o venerável Anurudha e este relata a sua experiência de meditação desta forma:
“Venerável senhor, enquanto assim permanecemos diligentes, ardentes e decididos, reconhecemos e vemos a luz e as formas. Depois a luz e as formas desaparecem, mas nós ainda não temos habilidade e compreendemos esses nimittas.”
A frase "diligentes, ardentes e decididos" indica que o diálogo diz respeito à prática de meditação. Devemos tomar a luz mencionada como sendo a luz que surge com o primeiro jhana, o chamado nimitta. Mas o que seriam as formas neste caso? Visto que qualquer percepção de formas já deveria haver desaparecido ao entrar no primeiro jhana.
A resposta pode ser encontrada no Gayasisa Sutta no qual o Buda diz o seguinte:
“Bhikkhus, antes da minha iluminação, quando ainda era um Bodisatva não iluminado, eu percebia apenas a luz, mas não via as formas."
"Eu pensei: 'Se perceber a luz e também ver as formas, nesse caso meu conhecimento e visão ficariam ainda mais purificados.' Assim numa outra ocasião, enquanto permanecia diligente, ardente, e decidido, percebi a luz e também vi as formas. No entanto eu não conheci aqueles devas, ou os cumprimentei, ou conversei com eles, e não obtive uma resposta deles."
As formas mencionadas são os devas, ou seja não se trata da percepção das formas com base na faculdade da visão comum mas sim da percepção baseada num estado supra-humano possibilitada pelos jhanas.
Regressando à primeira realização imaterial podemos concluir que a percepção das formas e do contato sensorial que desaparece nessa realização não se refere aos meios dos sentidos comuns mas sim à percepção e contato supra-humano que pode ocorrer nos jhanas com relação aos seres de outros planos de existência.
4. Conclusão:
Baseado nessa análise fica evidente que a conclusão mais lógica é que já à partir do primeiro jhana os meios dos sentidos estão inativos e a mente está completamente voltada e absorta em si mesma.
Revisado: 20 Novembro 2013
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