Na Presença de Nibbana
Por
Ajaan Brahmavamso
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Na vizinhança de Nibbana
Exatamente agora, aqueles de nós que são monges e monjas Budistas, e aqueles que são praticantes leigos sérios, estamos na vizinhança de nibbana. Estando nesta situação, devemos lembrar que estamos praticando exatamente da mesma maneira que os homens e mulheres, jovens e velhos, têm praticado nos últimos 25 séculos, e eventualmente, nós também alcançaremos os mesmos resultados. Estamos na presença de nibbana no sentido que nos dedicamos à prática que conduz a nibbana.
Às vezes é difícil perceber o quão perto podemos estar. Não nos damos conta que tudo que temos que fazer é virar a nossa cabeça, fazer apenas uma ligeira mudança na nossa maneira de ver as coisas, abrir-nos para a mesma verdade que o Buda viu, a mesma verdade que os Veneráveis Sariputta, Mahamoggallana, Mahakassapa, Ananda, Anuruddha, e todos os outros grandes arahants dos últimos vinte e cinco séculos viram. Estava lá então, e está aqui agora.
Devemos nos recordar disso com freqüência. Lembrar que houve milhares, dezenas de milhares de arahants no passado, e que haverá muitas centenas, milhares, dezenas de milhares de arahants no futuro. Uma das estrofes mais significativas no Dhammapada é o versículo 372: Natthi jhanam apaññasa, pañña natthi ajjhayato, Yamhi jhanam ca pañña ca sa ve nibbanasantike - "não existe concentração (jhana) sem sabedoria (pañña), não existe sabedoria sem concentração. Aquele que tem ambos, concentração e sabedoria, está mais próximo de nibbana." Este caminho ainda está disponível, e quando o caminho está disponível, também estão os frutos. Há um livro chamado A Manual of a Mystic, um tratado antigo sobre meditação encontrado em um obscuro monastério no Sri Lanka faz algumas décadas. [1] Parte da prática de meditação descrita nesse manual é justamente a recordação mencionada acima, a recordação de todos os arahants que realizaram no passado a felicidade sublime de nibbana. E agora, aqui estamos, embarcando na mesma viagem, fazendo as mesmas coisas, que devem dar origem aos mesmos frutos. Esta foi a promessa do Buda. Ele disse que este Dhamma leva a um destino, e apenas um destino: nibbana. Se conseguirmos entrar na correnteza, seremos levados por todo o caminho, até o mar.
Essas recordações, feitas com freqüência, dão origem a uma grande alegria, felicidade e confiança; dão origem à fé nesta prática que chamamos de Budismo, o Dhamma. Esta fé, por sua vez, dá origem à energia, para que possamos ter a vontade, a vontade sustentada, de fazer o que for necessário para transformar o nosso lampejo inicial de fé na realização sustentada.
Estamos na presença de nibbana cada vez que abrimos um dos livros do Tipitaka e lemos os ensinamentos do Buda. Estamos na presença de nibbana porque há apenas esse fino véu entre nós e o Dhamma. Quando o Buda ensinou esses ensinamentos para os monges, como por exemplo o Venerável Bahiya (Ud I.10), apenas os ensinamentos foram suficientes para dar às pessoas desse calibre um grande insight. Um insight, que preencheu a lacuna que faltava para nibbana. Eles não estavam apenas na presença de nibbana; eles fizeram disso aquele passo adicional na direção de nibbana, para a completa realização de nibbana.
O Venerável Bahiya e os outros como ele provavelmente nunca imaginaram estarem tão perto de um estado tão maravilhoso e sublime, mas eles se tornaram grandes discípulos do Buda. Na verdade, quando as pessoas olham através das lentes da delusão, muitas vezes pensam: "Como poderia alguém como eu algum dia realizar essa felicidade sublime de nibbana? Como poderia alguém como eu algum dia alcançar um jhana? Como poderia alguém como eu algum dia penetrar esse Dhamma profundo e difícil de compreender?" Mas o Buda disse que podemos! Você pode, porque tem a segurança e a fé para vestir os mantos de cor ocre do Buda, ou para praticar os seus ensinamentos com seriedade como um leigo.
Dando Ouvidos
Um aspecto importante do caminho, além da virtude e da boa conduta, é o estudo dos ensinamentos do Buda. O Buda expressou de modo muito belo nos seus discursos: a pessoa dá ouvidos, inclina a mente, escuta com interesse, e aplica a mente, de modo que aquilo que é ouvido pode penetrar profundamente na mente e ali se estabelecer. Ao se firmar, ao longo das semanas, meses e anos, irá crescer e dar frutos. Um dia essa fruta será muito doce, o fruto do Despertar.
Dando ouvidos para o Dhamma, contemplando e permitindo que ele varra a mente como uma bela brisa em um dia quente, permitindo que impregne e penetre profundamente na mente, que penetre mais profundo do que o pensamento, mais profundo do que o intelecto, muito mais profundo do que a mente que busca defeitos, e muito, muito mais profundo do que a mente com a qual estamos acostumados. O Dhamma penetra naquela parte da mente que ainda temos que conhecer - ali esperando, esperando, até que, através da prática da meditação, entramos nesses estados mentais muito refinados, belos e sutis, onde as sementes do Dhamma estão descansando, esperando para dar frutos, esperando para dar a bem-aventurança do Despertar.
Temos segurança e fé porque sabemos que outros já realizaram isso no passado. Às vezes as pessoas pensam que os grandes mestres, os monges e monjas do passado, eram de alguma forma super-homens e super-mulheres. Mas muitos deles começaram de uma maneira não muito distinta da maioria dos praticantes de hoje. Às vezes, os candidatos mais improváveis tornaram-se os maiores santos. Eles se dedicaram ao treinamento com o melhor de suas habilidades, perseveraram nas suas tentativas de domesticar a mente e acalmá-la, para levá-la à unicidade, à quietude. Então, um dia, através do acúmulo de todos os seus esforços, do acúmulo de toda a sua prática da virtude, do acúmulo da prática de meditação - algumas vezes cabeceando, algumas vezes dispersos - através do acúmulo do aprendizado, e das suas reflexões, dos seus pequenos insights, eles finalmente conseguiram quebrar as barreiras que os separavam de seu objetivo.
Uma Gota de Cada Vez
O Buda compara a prática do Dhamma com encher um pote com uma gota de cada vez. Chega o momento em que apenas mais uma gota cai no pote, e em seguida, ele transborda: o Dhamma é visto. Nunca se sabe antes quando será o momento para a última gota. A pessoa comum, não iluminada, não consegue ver esse pote sendo enchido, porque o pote fica numa parte da mente na qual ela ainda não tem acesso - mas pouco a pouco o pote está sendo enchido. Um dia irá estar completamente cheio e irá transbordar para a mente que é conhecida agora; depois, levará para a fonte, para a mente interior mais profunda, que geralmente está escondida pelas contaminações e pelos obstáculos. Assim é que começamos a ver a fonte, que o Buda chamou de "o construtor de casas", o criador do nascimento e do sofrimento.
Então, quer você seja um monástico ou alguém que treina com os preceitos leigos, você nunca deve abandonar o esforço, nunca desista do treinamento. Este é um tema que está sempre presente nos ensinamentos do Buda. Se alguém abandona o treinamento na virtude, meditação e sabedoria, não terá nenhuma chance de sucesso. Mas se continuamos com o treinamento, se continuamos seguindo as instruções do Buda, descobriremos que esse treinamento conduz para apenas uma direção. Conduz a nibbana.
Esta mensagem está encapsulada de uma forma muito bela no melhor conselho que já recebi, dado por um monge muito respeitado no Sri Lanka. É um conselho que dou grande valor e mantenho sempre em mente. Ele me disse que no final das contas, não importa tanto qual estágio tenha sido alcançado, ou o que tenha sido conseguido. O que realmente importa é se naquele dia realmente praticamos até o limite da nossa capacidade - se realmente demos o máximo - ou se ao invés disso fomos descuidados e negligentes, esquecendo os ensinamentos do Buda, e esquecendo a fé que temos que esses ensinamentos realmente conduzem a nibbana. Se no final do dia olharmos para trás e soubermos que tentamos nosso melhor, então estaremos acumulando qualidades espirituais, estaremos sendo preenchidos interiormente com essas gotas preciosas, e aproximando-nos da meta. Continuando desta forma, isso irá acontecer e terá que acontecer, o Despertar virá. Esta reflexão é um meio para desenvolver a fé nos ensinamentos do Buda.
O Buda não somente encorajava a fé usando a metafórica "cenoura" - o encorajamento, a incitação, e a garantia de que esse caminho produz frutos; ele também usou a metáfora da "vara". A vara é apenas refletir e ver com a sabedoria as conseqüências de seguir o caminho errado - para o reino do desejo e do anseio, a decepção e frustração; para o reino do sofrimento, para o reino de mais nascimentos - com certeza incertos. Nascimentos incertos produzem resultados incertos, às vezes com grande sofrimento e tormento.
Essa é uma "vara" adequada, porque produz uma sensação de temor saudável (ottappa), o temor das consequências de não continuar a fazer o esforço, de não continuar a trilhar este caminho, de não continuar a progredir na medida em que a nossa capacidade permita. Não importa onde estejamos no caminho, contanto que estejamos avançando, contanto que a cada dia mais uma gota caia, enchendo aquele grande pote dentro de nós. Se fizermos isso, então já estaremos na presença de nibbana, no sentido de que estamos seguindo o caminho que leva a nibbana.
Virtude
O Buda e os nobres discípulos sempre dizem que o caminho é o Nobre Caminho Óctuplo - o caminho da virtude (sila), concentração (samadhi), e sabedoria (pañña). Para trilhar o caminho da virtude significa que não prejudicaremos qualquer ser vivo. Permanecemos com a intenção na mente pela felicidade de todos os seres - a brandura de espírito ocupada com o bem-estar de todos os seres onde quer que estejam, inclusive com nós mesmos. Essa virtude tem que ser aperfeiçoada. Não é o suficiente ter 90% de virtude, ou 95% de virtude, ou até mesmo 99% de virtude. A virtude deve ser completamente purificada; purificada em primeiro lugar pela fé.
O Buda disse que a virtude é a base do caminho. A virtude é o terreno sobre o qual se apoiam os fatores e aspectos mais elevados do Nobre Caminho Óctuplo. Se esta parte do caminho for fraca, se alguém toma liberdades com a sua própria virtude e flexiona as regras, então ele irá enfraquecer a concentração e criar impedimentos para o surgimento da sabedoria. Assim, da fé e convicção nos ensinamentos do Buda, e nos ensinamentos de todos os eminentes monges e monjas conhecidos, permanecemos num lugar que é mais profundo do que as impurezas, "Manterei esses preceitos, como se fossem um baú de ouro cheio de jóias; vou mantê-los sobre a minha cabeça; vou valorizá-los e protegê-los. Eles são do Buda."
Um famoso professor de meditação costumava dizer para os seus discípulos monges que eles deveriam cuidar das suas tigelas de esmolar alimentos como se fossem a cabeça do Buda. Devemos considerar a virtude como aquilo que está acima da cabeça do Buda, ou até mais elevado ainda. Devemos mantê-la em tal reverência e valor que não nos atreveríamos ir deliberadamente contra qualquer conselho ou pronunciamento vindo de Buda. Eventualmente, à medida em que desenvolvemos melhor concentração e mais sabedoria, nossa fé e convicção nos ensinamentos do Buda crescem a tal ponto que não transgrediríamos os preceitos até mesmo correndo risco de vida. Torna-se quase impossível fazer isso. A mente os valoriza tanto, porque eles provêm do Tathagata, porque conduzem a nibbana, e porque, ao capacitar a mente para atingir a concentração, abrem a porta para que a sabedoria entre.
No início temos apenas a convicção e a fé comuns. Mas com cada realização e com cada insight profundo, nossa convicção e fé são transformadas - não em amor ou adoração, mas em algo maior e mais profundo do que isso. São transformadas em um enorme respeito por aquilo que é o mais elevado de tudo. Como é dito no Ratana Sutta: "Na tena dhammena samatthi kiñci - Não existe nada que possa se igualar a esse Dhamma". Uma vez que compreendemos que o Dhamma é mais valioso do que qualquer outra coisa no mundo inteiro, jamais transgrediremos, danificaremos, desvalorizaremos, ou rebaixaremos a virtude.
Com o fortalecimento da virtude a concentração acontece por si só. Acontece simplesmente porque a mente se torna pura. Tornar-se pura significa livrar-se das contaminações. São as ações que contaminam a mente, as ações com o corpo e com a linguagem, e também os pensamentos que precedem as ações. A prática da virtude significa controlar a mente que está sendo contaminada por padrões habituais de reações inábeis, as reações de uma pessoa louca, as reações de uma pessoa que simplesmente é incapaz de ver. A mente está coberta com "gordura" e "poeira" de modo que realmente não é capaz de ver o que lhe proporciona bem-estar. A prática da virtude é a primeira limpeza e brilho da mente, limpando a poeira e sujeira acumuladas ao longo de muitas vidas.
Aqueles seres dotados de virtude, que falam e agem gentilmente e sabiamente, aparentam não apresentar nada de ameaçador ou prejudicial. Eles irradiam beleza, uma atração magnética, que vem da felicidade interior que experimentam através da sua virtude imaculada. Cada praticante deste caminho deve conhecer essa felicidade, mas somente será conhecida se for mostrada. Se uma pessoa virtuosa parar e olhar para a sua mente, dirigir o aparato da percepção para o interior, verá que a sua virtude é muito pura, a virtude do Buda, e, assim, irá ganhar mais fé e convicção nos ensinamentos do Buda.
Neste caminho para o despertar passamos por diferentes etapas, e cada uma dessas etapas traz a sua própria felicidade. Estes sentimentos de felicidade são pequenas confirmações de que este caminho está seguindo na direção certa. Eles dão encorajamento, e podemos nos perguntar: "Se esta é a felicidade que consegui até agora, qual é a felicidade que me aguarda na próxima etapa?" Esteja avisado, no entanto, que as contaminações fazem com que nos afastemos do que é puro para o que é impuro. Devemos fazer um esforço deliberado para notar que a felicidade pura, sutil e refinada, nasceu de um estilo de vida ilibado, de uma vida de inocuidade.
Talvez consideremos que a nossa virtude ainda é imperfeita. Mas há suficiente perfeição; dias e horas suficientes são gastos em um modo de vida puro, na linguagem pura e na ação pura, devemos observar que o resultado é uma felicidade interior sem mácula. Voltemo-nos para isso; reconheçamos e afirmemos isso. Assim teremos mais confiança nos ensinamentos do Buda sobre a mente e sobre a prática correta com o corpo e a linguagem.
Contenção dos Sentidos
Desenvolvendo a virtude e a contenção que nasce da conduta virtuosa, compreendemos que a maneira para alcançar a perfeição na virtude é através da contenção dos sentidos. Temos que nos conter ao falar, olhar e escutar. Por que ouvir todas as conversas que acontecem à nossa volta? "O que foi dito? O que eles estão fazendo?" Não nos diz respeito. É muito mais benéfico afastar-se das conversas do mundo, afastar-se das atividades das pessoas. Nem sequer olhar para o que está acontecendo lá fora; ao invés disso, olhamos e ouvimos as atividades dentro de nós mesmos. Isto é chamado de contenção. Ao invés dos sentidos irem para fora, eles se voltam para dentro e "observam" a atividade interna.
Na medida em que os sentidos se tornam mais contidos, começamos a experimentar um dos primeiros estágios da felicidade nascida da paz, a felicidade nascida da contenção, a felicidade que nasce quando a mente está começando a experimentar a calma. Os sentidos estão sendo acalmados, pois estão sendo protegidos. Do que eles estão sendo protegidos? Eles estão sendo protegidos do envolvimento com o mundo, aquilo que tende a excitar e perturbar as nossas mentes.
O Buda disse que aqueles que praticam a contenção dos sentidos irão experimentar um resultado muito prazeroso, puro e belo - uma felicidade tranquila, pacífica e estável. Aqueles que praticam a sério, e particularmente aqueles que vivem e praticam em lugares calmos, deveriam ser capazes de desfrutar desse estado maravilhoso de paz. Devemos observar e valorizar essa felicidade.
Estamos seguindo os ensinamentos do Buda quando nos deliciamos com os estados benéficos da mente. É imprudente e inútil deliciar-se com os estados prejudiciais, com os prazeres do mundo dos cinco sentidos. O Buda disse que é nisso onde encontraremos os perigos. Mas quanto à paz e a felicidade nascidas da virtude e da pura contenção dos sentidos, deliciemo-nos com isso, apreciemos, desfrutemos, e celebremos isso. Façamos isso com base na fé no Buda.
Atenção Plena e Plena Consciência
No treinamento gradual a contenção dos sentidos primeiro dá origem à atenção plena e plena consciência. Assim, a mente tem a sua primeira experiência de estar no controle, de estar no comando. Normalmente, em nossas vidas, os sentidos estão no controle, e nós não temos liberdade. Assim que surge um objeto prazeroso, de imediato os sentidos vão até ele. Quando uma pessoa atraente do sexo oposto passa, os olhos vão nessa direção. Assim que um cheiro agradável vem da cozinha, o nariz vai para ele. Assim que surge uma conversa interessante ou uma música agradável, as orelhas vão direto para isso. Os sentidos estão no controle, não a mente, não a sabedoria.
No entanto, quando desenvolvemos o auto-controle, protegendo os sentidos, a atenção plena encontra espaço para crescer. A mente adquire o poder de saber o que realmente está acontecendo, para dirigir a atenção para aquilo que é hábil e útil, e para resistir perder-se em complicações inúteis e atividades compulsivas. Quando a contenção dos sentidos dá origem a essa atenção plena e plena consciência, começamos a desenvolver a base para os estados maravilhosos de concentração onde por fim vemos com clareza o que realmente é a mente.
Concentração e Insight
O que Pensamos Ser, é Outra Coisa
Nos suttas, algumas vezes nos depararamos com pequenas frases de grande importância. Uma dessas frases é: "Qualquer que seja a concepção, o fato é sempre distinto desta". [2] Esta é uma das mais profundas descrições do Dhamma que podemos encontrar. O que quer que concebamos que seja, vai ser outra coisa. Isso é tão verdade para jhana e insight como é para nibbana. Depois de ter uma experiência desses estados, percebe-se como na verdade a experiência é tão completamente diferente daquilo que pensávamos, lemos, e esperávamos que fosse.
A mente conceitual não é capaz de apreender estes aspectos refinados da mente. Todos os conceitos no mundo são justamente construídos à partir dos tijolos da experiência mundana. Como poderia um mecanismo tão tosco e grosseiro como a mente conceitual apreender esses estados? É bom lembrar disso, porque remove a confiança e segurança na mente conceitual. Nós temos a tendência de colocar demasiada credibilidade na nossa capacidade de concepção, tanto assim que perdemos nosso tempo discutindo sobre conceitos, sobre quem está certo e quem está errado, ao invés de realmente embarcar na prática que nos permitirá ver e conhecer a verdade além de conceitos.
Com base na fé no Buda, nossa tarefa e dever é usar a mente conceitual onde for apropriada, e deixá-la de lado onde não é o seu lugar, onde não tem alcance, onde não faz parte. Onde não faz parte é a esfera dos estados que estão além da experiência humana comum (uttarimanussadhamma): os jhanas, os estados de insight, e nibbana. Nesses estados a mente conceitual tem que ser abandonada.
Mas antes de tudo, temos que aceitar isso com base na fé - fé nos ensinamentos do Buda e dos seus nobres discípulos. O que quero dizer com fé é que valorizamos tanto os ensinamentos do Buda que permitimos que eles entrem na nossa mente. Algum dia, quando estivermos próximos da concentração ou do insight, esses ensinamentos darão frutos, e abandonaremos a mente conceitual.
O que cria o enredo conceitual é chamado de proliferação (papañca), uma forma mais grosseira do desejo. Tendo abandonado papañca, a mente fica quieta e pacífica; vamos para o outro lado do véu, por trás da causa do problema. Podemos dizer que a linguagem do eu, do ego, são esses pensamentos e conceitos, e a única forma de ver esse ego é primeiro fazê-lo calar a boca.
Então duvidamos dessa mente conceitual e, ao invés disso desenvolvemos a mente que tem fé nos ensinamentos do Buda, que diz que este caminho pode levar a um só destino. A mente conceitual pode dizer: "Eu não consigo fazer isso, é muito difícil para mim." Mas isso é só a conversa do ego medroso, a conversa de Mara, [3] que está na defensiva, alarmado pelo nosso progresso no caminho para nibbana. Ao invés de acreditar na mente conceitual, a mente de Mara, confiamos nas palavras do Buda e nos conselhos dos nobres discípulos. Deixamos de lado essas dúvidas conceituais, as deixamos ir, e as empurramos para fora. Vamos além, e descobrimos que o Buda era sábio e Desperto: ele ensinou o Dhamma, e esse Dhamma funciona. Isto se torna particularmente evidente quando a mente se torna pacífica.
Empurremos a mente conceitual para fora e despertemos o espírito da fé. Abrimos mão. Deixemos de lado as ordens, a avaliação da situação, e o pensamento sobre o que fazer a seguir. Deixe que o Dhamma assuma; permita que o curso natural da prática assuma. Se estivemos praticando a virtude, a contenção dos sentidos, e a atenção plena, teremos a base para a concentração; então abrimos mão e permitimos que a concentração aconteça. Simplesmente permitimos que a mente se concentre, que reverta para o que poderíamos chamar seu estado natural - a busca de satisfação e conforto dentro de si, ao invés de lá fora.
A mente, então, se torna auto-suficiente, auto-reconfortante, e auto-sustentável, de modo que a porta da mente para os cinco sentidos externos é cortada, e a mente não vai para os cinco sentidos. Em vez disso, a mente continua imersa em si mesma, na felicidade luminosa. Se experimentarmos isso, nos deleitemos com isso, deliciar-se com isso é sábio e é bom. Temos fé no Buda, que disse ser essa felicidade isenta de qualquer tendência subjacente ao desejo e paixão.
Os Primórdios do Desejo
Assim que saimos desses estados de concentração, podemos experimentar os primórdios do desejo, a mente começando a sair para buscar satisfação. Tal como estender a mão para uma xícara de chá (ou qualquer coisa que pensemos trará alegria), vemos o quão estúpido é o desejo. O desejo tem a sua medida de prazer: a antecipação, a alegria da atividade, o fazer, o vir a ser, e o controle. Mas isso é alegria delusiva. Vemos o desejo sair e também vemos os seus resultados.
Quando desenvolvemos o insight baseado nesses poderosos estados de concentração, algo como o desejo, em vez de aparecer como uma idéia ou conceito, aparece como um animal ou criatura que emerge da mente para sair. Vemos isso muito claramente; também podemos entender muito claramente os perigos. A mente grosseira pode ver apenas o que é grosseiro e superficial. A mente sutil, no entanto, pode ver o sutil.
Compreendemos a fonte e a essência do desejo: porque ele funciona, porque a mente se deleita com isso, e as conseqüências desse deleite. Então, a mente pode desenvolver a repulsa pelo desejo em si, repulsa por esses "animais" que emergem da mente e saem prometendo felicidade e alegria, mas depois voltam para morder e atormentar a mente. O desejo não é fiel à sua promessa; ele promete prazer, felicidade, satisfação e contentamento, mas no final traz apenas tormento e decepção. A mente refinada pode ver isso.
A mente refinada pode ver onde esse desejo primeiro se origina. Ele primeiro se origina na delusão do "eu" e na delusão do "meu". É a delusão de um "eu" (atta), que em primeiro lugar precisa de alegria e satisfação. Este senso de ego, esse senso de "eu", é a fonte do desejo, e isso não vai ser descoberto facilmente, pois fica muito profundo no interior. Precisamos da mente poderosa, refinada, sutil, para até mesmo ser capaz de chegar perto da fonte e do significado do eu, ou melhor, aquilo que consideramos ser o eu. Isso é uma coisa muito difícil de ver, mas com fé e convicção nos ensinamentos do Buda, e colocando-os em prática, chegamos cada vez mais perto.
Uma vez que vejamos o eu, ou melhor, o que nós consideramos ser o eu, então podemos deveras dizer que estamos na presença de nibbana. Vemos o eu como apenas uma miragem, algo que tem enganado a mente por tantas vidas. "Vemos" isso não como um conceito, mas como um estado muito refinado que é muito difícil descrever para os outros. A linguagem não chega até esses lugares.
Uma vez que o eu tenha sido visto, a delusão é destruída e o próprio solo do qual brota o desejo é removido. O desejo então é como um pássaro, sem lugar para pousar. Ele ainda pode seguir voando pelo céu, mas não pode voltar para pousar em algum galho ou no chão. Eventualmente, ele irá se cansar, e então morrerá. Uma vez que a mente vê essas coisas - o Dhamma, a origem de todas as coisas, para onde elas levam, a natureza da mente, e a natureza da delusão - a fé se transforma em sabedoria. Transforma-se na experiência do Dhamma, em sabedoria poderosa e que Desperta.
Muitos podem se perguntar como alguém pode obter tal refinada sabedoria. Mas aqueles que têm fé no Buda sabem que há um caminho, há um meio, através do qual os seres humanos podem obter essa sabedoria. Esse caminho é o Nobre Caminho Óctuplo. Desde o início até o fim, não é tão longo, não leva tanto tempo assim. Apenas precisamos de paciência e de energia nascidas da convicção.
Se essa energia vem de um sentimento de "eu", não vai ser muito produtiva. Se a energia que despertamos para a prática vem de um senso de "eu" e "meu", por exemplo porque temos vergonha do que temos feito até agora e queremos melhorar, isso não será nem de perto tão eficaz como seria se viesse da fé nos ensinamentos do Buda. Se for a energia que nasce da fé, não é a energia que vem do "eu", é a energia que vem do Buda. Se for a fé no Dhamma, ou se for a fé na Nobre (ariya) Sangha, é a energia que nasce do Dhamma, a energia que nasce da Sangha - Ariya Sangha. Se ouvimos um grande discurso de um dos Nobres, isso dá origem à fé, e essa fé dá origem à energia. Ela nasce dos Ariyas, dos Nobres. Essa energia, poderosa e penetrante, pode nos estimular a desenvolver nossa própria virtude imaculada, pode aperfeiçoar a contenção dos sentidos, aguçar a atenção plena, e trazer a mente para a concentração.
"Quer queiramos ou não, isso acontece": quer você pense que jhana é o caminho para nibbana ou não, você entra em jhana. É uma parte natural do Nobre Caminho Óctuplo, e isso acontece por si só. Planejá-lo ou não planejá-lo apenas atrapalha e adia o seu acontecimento. A experiência de jhana ocorre naturalmente em uma mente na qual os obstáculos foram suprimidos; na qual a fé tenha sido desenvolvida; na qual a pureza da virtude foi desenvolvida; na qual a contenção dos sentidos foi desenvolvida; na qual a atenção plena foi desenvolvida. Quer queiramos ou não, quer tenhamos decidido ou não, a felicidade trazida por todas essas práticas preparatórias, naturalmente, dão origem aos lindos jhanas.
A Felicidade da Iluminação
O Buda chamou os jhanas a "Felicidade da Iluminação". [4] Os jhanas não são a verdadeira libertação da iluminação, mas estão perto o suficiente em suas qualidades afetivas para dar o sabor da liberdade. Os jhanas são também chamados a libertação da mente (cetovimutti). São a primeira experiência real de liberdade para o meditador. Temos um gostinho do que nibbana é verdadeiramente. A mente se acalmou, as impurezas se foram - embora apenas temporariamente - e experimentamos a mente sem impurezas, que está simplesmente "dentro de si mesma." Experimentamos contentamento, um lugar onde o desejo não chega, um lugar onde Mara está de olhos vendados.
A experiência desses belos estados que o Buda descreveu dá uma indicação do que é nibbana. Então, não precisamos mais nos preocupar com a fé. A experiência está presente e, uma vez presente, a fé no Buda, Dhamma e Sangha se "tornaram grandes" (mahaggata). Se o meditador confiar um pouco mais e voltar a atenção para onde o Buda indicou, ele começa a desvendar a miragem do eu, aquilo que sempre foi tomado como sendo o "eu" ou "meu". Se olharmos por trás da tela para a fonte do filme, a luz e o projetor em si, então começamos a ver o Dhamma. Como foi dito anteriormente, então começamos a perceber a origem das contaminações. A fonte dos obstáculos, a miragem do eu é descoberta. É essa delusão (avijja), que é a causa do sofrimento.
Entrando na Correnteza
Se desenraizamos a miragem do eu, e vemos claramente com uma mente além dos conceitos, com a mente livre através da prática do Nobre Caminho Óctuplo, então com certeza virá o conhecimento de que entramos na correnteza e somos um sotapanna, tendo a Iluminação como destino. Não há nenhuma maneira que isto possa ser revertido, por isso é dito que neste estágio a fé no Buda, Dhamma e Sangha torna-se inabalável. Torna-se tão poderosa, elevada e grande, que não há nenhuma maneira no mundo que alguém possa voltar atrás.
Tendo realizado o Dhamma, podemos nos deliciar com isso, deliciar-nos com a realização e a singularidade do Buda. Com esta realização, nós realmente sabemos o que é o Buda. Como o Buda disse: "Quem vê o Dhamma, vê o Buda". [5] Esse é um ditado profundo, e é preciso ter realmente visto o Dhamma para entender seu significado. Em outras palavras, caso tenhamos realmente visto o Dhamma, iremos valorizar o Buda, o Dhamma e a Sangha acima de todo o restante. A convicção e fé no Buda atingem o seu pico e se tornam uma enorme fonte de alegria e felicidade - a felicidade da pura convicção.
A fé não somente é a fonte da energia, mas de felicidade e prazer (sukha) também. E, novamente, é um prazer e felicidade do qual não há nada que se sentir culpado ou ser temido. É um lago do qual podemos beber, onde não há poluição e nada que cause lesão ou doença. Assim, a fé é uma ferramenta poderosa. Ela nos conduz desde o início até o final deste reino do samsara, e eventualmente nos liberta.
Exortação
Como mencionado antes, logo no início, a nossa fé pode ser fraca e debilitada pelas contaminações, mas apenas observemos, como ao seguir o Caminho Óctuplo, cada estágio dá origem a um maior grau de felicidade. Essas experiências de felicidade são reais e ali estão para serem desfrutadas a qualquer momento em que sejam notadas. Elas são como companheiros invisíveis que temos como certo e com frequência não percebemos. Eles nos darão mais fé de que essa prática funciona, e à medida em que a fé se fortalece, ela irá nos impulsionar ao longo do caminho.
Estamos na presença de Nibbana porque estamos praticando o Nobre Caminho Óctuplo. A convicção nessa verdade pode justamente possibilitar que a mente aceite que nibbana está apenas escondido atrás do mais fino dos véus. Pode justamente ser o incentivo para ir além e alcançar os jhanas, realizar o insight, e tornar-se um dos Nobres. Então, notaremos que não era tanto assim, não foi tão difícil. Basta dar um passo a mais para o interior da mente e um passo a mais por trás das defesas da delusão do eu.
Notas:
Fonte: Bodhi Leaves No: 149, Buddhist Publication Society, 1999.
[1] Traduzido por F.L. Woodward, ed. por Mrs. C.A.F. Rhys Davids (London: Pali Text Society, 1982). [Retorna]
[2] Yena yena hi maññanti tato tam hoti aññatha - Veja o MN 113, nota 3. [Retorna]
[3] Veja Mara no Glossário. [Retorna]
[4] Sambodhisukha - veja o MN 66, nota 8. [Retorna]
Revisado: 18 Maio 2013
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