A Investigação Daquilo que é Importante:
O Segundo Fator da Iluminação

Por

Santikaro Bhikkhu

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Os Sete Fatores

A palavra em Pali bojjhanga em geral é traduzida como “fatores da iluminação” e eu também tenho usado essa tradução por força do hábito. Mas eu realmente prefiro o termo “despertar” ao invés de “iluminação.” A palavra em Pali possui duas partes: a primeira parte “bojjh” provém da palavra “bodhi,” baseada na raiz “bodh” que significa “acordar.” Em termos literais Bodhi significa “despertar,” e “Buda” é portanto aquele que “é desperto.” Eu tento evitar a palavra “iluminação” devido às suas conexões culturais com a história ocidental. O Iluminismo foi uma iniciativa bastante racionalista e creio que nos círculos Budistas acabamos ficando atados à palavra “iluminação” em parte porque os primeiros tradutores ocidentais eram acadêmicos do tipo racionalista que interpretavam a literatura Budista sob essa perspectiva. Os primeiros estudiosos não deram muita atenção ao Budismo como um sistema de meditação.

A segunda parte da palavra bojjhanga é “anga,” que em termos literais quer dizer “membro.” Esta palavra é empregada sob várias formas nos discursos (suttas) em Pali e freqüentemente, como neste caso, com o sentido de fator ou como componente de algo. Quando o número sete (satta) é adicionado como prefixo de bojjhanga, ou para a designação mais longa “sambojjhanga,” obtemos a frase “sete fatores do despertar” ou “sete componentes do despertar.” A idéia é que os sete componentes não são coisas separadas – eles prosseguem juntos como um conjunto unitário.

Gostaria de iniciar explicando como os sete fatores interagem. Nessa explicação, tomarei por base o Anapanasati Sutta (Majjhima Nikaya 118), visto que esses fatores do despertar não são um tema puramente teórico; eles têm a ver com a nossa prática e em particular com a prática baseada na respiração delineada no sutta mencionado. Quando analisamos de perto esses fatores dentro da nossa experiência, podemos ver com clareza como cada um suporta e de forma natural promove o surgimento do seguinte. Quando um meditador está em contemplação com a mente bem estabelecida, nesse momento todos os sete fatores ou bojjhangas surgem em conjunto. Eles ocorrem em conjunto no mesmo momento e não de forma separada, um conduzindo ao outro em seqüência.

A abordagem que eu adoto, ao empregar esses sete fatores do despertar como um caminho, é a de aprender como usá-los na vida diária. De acordo com o meu entendimento do Dhamma – e eu espero que vocês compartam desse mesmo entendimento – trabalhar com esses fatores apenas como parte do contexto da meditação formal sentada significa limitar-nos, limitar o dhamma e limitar a meditação. E isso não é para depreciar a prática formal; de fato a nossa prática sentada, andando, bem como a nossa prática nas refeições e no estudo desempenham um papel especial e importante; mas a minha esperança é que aprendamos como mover-nos sem dificuldades entre as práticas formais e o dia a dia da vida.

Atenção Plena

O primeiro dos bojjhangas é sati, que em geral é traduzido como “atenção plena”. Mas alguns autores, como por exemplo Thich Nath Hahn, traduzem como “consciência” ou “plena consciência.” A palavra em Tailandês para sati é “reluk,” que significa recordar, trazer de volta. Com base na etimologia, a raiz de sati é a mesma palavra para memória e em alguns contextos sati pode simplesmente significar memória. Mas com o sentido de atenção plena, sati significa estar sempre voltando para o presente, enquanto que a memória diz mais respeito ao passado. Atenção plena também significa confrontar tudo aquilo que surge na nossa experiência – chegar o mais próximo possível e realmente observar aquilo que está acontecendo.

Ao praticarmos dessa forma, com atenção plena e plena consciência, (ou clara compreensão - sampajañña), sem luta para remover ou agarrar o que quer que seja, ou abandonar os gostos e desgostos em relação ao mundo – essa é a verdadeira essência da prática. Ao praticarmos os quatro fundamentos da atenção plena de forma correta – e deve ser enfatizado que a prática tem que ser correta – então todos os dhammas do Budismo estarão presentes e assim será fácil para os fatores do despertar surgirem e persistirem. Quando a atenção plena e a plena consciência são perfeitas, elas são um antídoto para a interação dos gostos e desgostos, cobiça e aversão em relação ao mundo.

Quando a atenção plena está presente dessa forma, essa é a atenção plena fator do despertar. Não se trata de dois tópicos distintos. Não precisamos praticar algo distinto para que a atenção plena seja um fator do despertar. Na verdade é bem simples. Tudo que precisamos fazer é observar a respiração longa como respiração longa e a respiração curta como curta. A prática desse nível básico é o início da atenção plena do despertar.

Quando somos capazes de observar a respiração longa ou curta com atenção plena suficiente, estamos conscientes ou atentos à respiração longa ao longo de toda a duração da inalação ou exalação. Caso contrário, a respiração nos escapará, o que significa dizer que a atenção plena será interrompida e a mente estará pensando em vários outros assuntos.

Mas assim que chegarmos a esse nível de prática básico, mesmo na primeira lição dos dezesseis passos descritos no Anapanasati Sutta, já teremos iniciado o desenvolvimento da atenção plena como um fator do despertar.

Investigação dos Dhammas

Quando a atenção plena estiver dessa forma engajada, então teremos a capacidade ou a oportunidade para o segundo fator do despertar: investigação dos dhammas ou dhamma-vicaya. Vicaya significa a investigação, o escrutínio ou análise. Podemos interpretar isso como a análise intelectual, ou podemos considerá-lo num contexto meditativo como o escrutínio não intelectual. Dependendo da forma como interpretamos essa análise, a palavra dhamma pode significar algo tão preciso quanto um estado mental em particular, ou pode ter um significado mais amplo abrangendo tudo aquilo de importância nas nossas vidas.

Quando a atenção plena estiver bem estabelecida, então essa atenção plena poderá tomar uma parte da experiência e investigá-la – selecioná-la, mantê-la e submetê-la ao escrutínio. Gosto de pensar na imagem de um joalheiro trabalhando com precisão. Você pode ver esses artífices com os seus pequenos monóculos através dos quais eles observam uma jóia e investigam-na com extremo cuidado. Eles examinam a sua cor, textura, brilho e formato. Eles examinam-na para identificar se possui algum tipo de defeito. E eles não a mantêm numa única posição; eles giram-na para ver como ela é sob a luz por diferentes ângulos, e assim por diante. Esse processo de investigação é bastante ativo; há participação; é dinâmico; é engajado. Como é descrito no Anapanasati Sutta, o meditador “investiga e examina esse estado com sabedoria e faz uma indagação completa a respeito disso.” Essa é a qualidade de investigação que emerge naturalmente da atenção plena como o segundo fator do despertar.

Na atenção plena na respiração, o que importa é que a mente esteja atenta – esteja totalmente consciente a cada inspiração e expiração. Já a investigação é um pouco distinta da mera notação. Na prática da notação podemos observar “ali está um pensamento, agora uma sensação” e assim por diante. Existe um certo grau de atenção plena nisto, mas lhe falta a qualidade de investigação que é a característica do segundo fator do despertar.

É importante observar aquilo que ocorre na mente, mas também é de grande ajuda examinar o efeito que esses coisas causam. A maioria dos mestres explica a atenção plena de uma forma que inclui algum tipo de investigação. Quer você fale sobre ela como duas coisas ou uma só, o que importa é que a investigação ocorra. Essa é a prática consciente.

Compreendendo Aquilo que é Importante

Ajahn Buddhadasa sempre enfatizava a compreensão ampla da palavra dhamma no composto dhammavicaya. Visto que os dhammas são praticamente infinitos, uma pessoa poderia passar toda a sua vida perseguindo os mais ínfimos e insignificantes detalhes e chamar isso de prática. Mas Ajahn Buddhadasa enfatizava que existem muitos dhammas com os quais não é necessário gastar o nosso tempo. Por exemplo, só sentar em meditação e observar tudo aquilo que surge na mente pode ser generalização em demasia e também um tanto quanto confuso. É verdade que ter a capacidade de observar aquilo que surge na mente, observando apenas a sua origem e cessação, é uma boa prática de atenção plena. Mas no fluxo interminável de coisas que surgem e desaparecem, existem alguns fenômenos que são problemáticos e que requerem mais atenção.

O Buda empregou diferentes abordagens ao longo dos suttas para descrever o que merece mais atenção. Um par freqüente de termos é “kusala” e “akusala” – benéfico/saudável e prejudicial/insalubre; hábil e inábil. Kusa é um tipo de capim com as bordas afiadas e também significa cortar. Kusala significa cortar fora os desejos, apegos, as identificações do ego, as contaminações que nos mantêm dando voltas no samsara. Akusala é não cortar, ou cortar as coisas erradas. Kusala é desenvolver aquilo que é saudável tal como a tolerância, metta/amor bondade, karuna/compaixão e todas as demais qualidades benéficas e hábeis, akusala é o oposto de tudo isso.

Assim, ao investigar você pode usar essa idéia simples de observar aquilo que surge: é benéfico ou prejudicial? É algo que nos mantém aprisionados ao sofrimento, ou é algo que leva à libertação do sofrimento? É algo que nos auxilia a soltar-nos das nossas tendências egoístas e assim por diante? Quando investigamos os dhammas, investigamos principalmente aqueles dhammas que ainda são problemáticos nas nossas vidas, tal como o medo, dúvida, ansiedade, ressentimento, orgulho, todas aquelas coisas que nos mantêm aprisionados. Ou investigamos os dhammas benéficos, as qualidades espirituais saudáveis, as emoções saudáveis ou os estados mentais saudáveis de modo a fortificá-los, para possibilitar que eles nos despertem.

Ter habilidade na prática - empregar upaya, ou meios hábeis – significa concentrar-se naquelas qualidades que são importantes nas nossas vidas. Com freqüência são coisas conectadas com o sofrimento, com dukkha. A prática com habilidade envolve a investigação de coisas como os nossos apegos favoritos, porque estes criam sofrimento diretamente para nós e para os outros. Envolve a investigação das nossas opiniões, emoções, desejos, identidades, mecanismos de defesa – essas são as coisas relacionadas diretamente com o sofrimento e são as mais importantes nessa investigação. Se, por exemplo, não existir muita abertura ou flexibilidade nas nossas vidas, ou se não tivermos muita habilidade de perdoar, ou para sermos generosos, tolerantes, pacientes – se qualquer uma dessas qualidades ou dhammas benéficos for fraca ou estiver ausente ou for inconsistente – então isso é algo a ser investigado.

Pergunta: Esse tipo de investigação que você está descrevendo envolve um certo nível de julgamento intelectual e isso não nos afastará da nossa experiência levando-nos na direção do raciocínio conceitual?

Pode ser um processo intelectual, no qual empregamos a mente racional e analisamos as coisas vendo-as por ângulos distintos. E a pessoa tem que ser cuidadosa para não se deixar aprisionar por uma determinada posição intelectual ou racional qualquer. Mas no sentido mais amplo da palavra, apesar de haver espaço para a investigação intelectual, há também a implicação de uma forma de investigação mais sutil, que eu creio ser essencial na meditação. E nesse caso não usamos tanto o intelecto.

Eu sinto que o intelecto é muito bom para levantar questões, para colocá-las no seu devido contexto e para dirigir a atenção para as coisas. Mas a real investigação das coisas, creio, vai além do intelecto. Freqüentemente, para compreendermos o não verbalizado precisamos empregar o intelecto, portanto num estágio inicial o pensamento pode desempenhar um papel de ajuda. O pensamento dirige a nossa atenção para aquilo que está realmente acontecendo, mas depois a parte conceitual perde a sua importância. Mas muito depende da experiência e dos meios hábeis – você aprende com a sua própria mente e aprende a trabalhar com aquilo que funciona. Existem ocasiões em que o pensamento lúcido é necessário, e algumas vezes não pensar é até mesmo irresponsável.

Ajahn Buddhadasa disse-me numa conversa, certa vez, que a sua prática era guiada pelo intelecto. Ele era considerado um intelectual e um pensador, mas ao mesmo tempo ele era dedicado à prática. Muito do seu trabalho intelectual esteve direcionado para identificar aquilo que era importante e no que colocar a atenção. E uma vez que você tenha usado o seu intelecto para guiar sua atenção, então a prática será a investigação num nível mais profundo, a contemplação das coisas com cuidado, o exame em profundidade e assim por diante.

A investigação do conteúdo benéfico ou prejudicial daquilo que estiver ocorrendo na mente pode ser num plano verbal, como uma reflexão; mas uma vez que a mente esteja bem treinada podemos abandonar as palavras e o processo se converte num escrutínio mais íntimo, não verbal. Como forma de aprendizado, podemos examinar a natureza da nossa experiência de tempos em tempos até que nos acostumemos a observar as coisas dessa forma. Mais tarde isso se tornará um hábito. No caso do joalheiro mencionado acima, eu não creio que ele tenha que “pensar” naquilo que está fazendo ao examinar uma jóia. O seu treinamento já se tornou uma parte da forma como ele vê as coisas e assim a investigação e a observação não são duas coisas distintas.

Algumas vezes as pessoas usam o termo “atenção sem preferências,” e ao longo dos anos tenho ouvido essa expressão ser empregada de diversas formas – algumas das quais bem confusas. Se a atenção for realmente sem preferências, não haverá reação. E na verdade muito poucas pessoas são capazes de praticar a verdadeira atenção sem preferências: quando todos os sete fatores estão bem desenvolvidos. Se os estados benéficos e prejudiciais continuarem a surgir, não seremos capazes de permanecer totalmente sem preferências. É fácil subestimar o valor das coisas; as coisas com as quais nos sentimos confortáveis, as coisas que gostamos e não gostamos de olhar. Todos nós tendemos a acumular muitos hábitos e depois não queremos ver isso. Mas com freqüência quando existe um hábito formado existe uma grande atividade do ego e é exatamente para isso que devemos olhar.

Para isso, usamos quaisquer ferramentas que nos auxiliem a ver as experiências de uma forma que revelem os seus aspectos ocultos. Pode ser algo muito simples como: isso é sofrimento ou não sofrimento? É benéfico ou prejudicial? Esse tipo de questão não é um julgamento. Os suttas na verdade não proporcionam uma relação detalhada daquilo que é prejudicial, mas nos encorajam a olhar para a experiência e ver como ela é prejudicial, porque se encontra ali, de onde vem. Esse é o processo de investigação.

Investigando o Consenso

Como esse processo de investigação funciona na vida diária? Charles Tart, um conhecido pesquisador e escritor sobre a consciência, emprega o termo “transe consensual.” Eu considero este termo muito útil porque expressa o mundo no qual gastamos muito do nosso tempo. É um transe porque de certo modo nós estamos perdidos nele sem realmente saber o que estamos fazendo, o que somos, o que está acontecendo. E é um consenso porque nós o criamos com os outros por meio da linguagem, através da cultura compartida, através da educação e da mídia. Nós criamos um pacote completo com crenças, premissas, expectativas, valores, teorias, dogmas, “ismos,” que em geral são presumidos mas não muito examinados.

A despeito disso, certos aspectos dessa construção cultural da realidade podem ser examinados através da investigação. Eu tenho alguns amigos que são Marxistas e eles empregam a análise Marxista para avaliar o aspecto das classes sociais no transe consensual e talvez, pelo menos em termos de classes sociais, ele comecem a sair um pouco do transe. Ou as feministas irão encarar isso sob a perspectiva de gênero e revelar as formas camufladas através das quais os nossos pensamentos são moldados pelo consenso. Os psicólogos irão olhar para o transe em relação a certas teorias psicológicas, e assim por diante.

O meu entendimento é que a investigação dos dhammas implica em começar a avaliar as premissas, crenças, teorias, dogmas, ideologias que até certo ponto trazemos dentro de nós talvez até inconscientemente. É possível meditar bastante, especialmente em retiros longos, nos quais a pessoa pode ter experiências que são vívidas, claras e profundas quando ocorrem. Mas em pouco tempo somos arrastados de volta para as antigas estruturas intelectuais nas quais amadurecemos – aquilo que aprendemos na escola, nosso treinamento numa universidade ou numa profissão. Pode ser uma ideologia política, um preconceito cultural, uma excentricidade na personalidade ou qualquer outra coisa que tenha criado a estrutura de opiniões, crenças e idéias nas quais vivemos. Creio ser importante gastar parte do nosso tempo investigando essas premissas, crenças e preconceitos culturais e permitir que a nossa prática de meditação nos liberte desse tipo de coisas – questões de racismo, patriarcado, sexismo, só para nomear algumas.

Eu tive a boa sorte, creio, nesse aspecto, porque cresci num país, e na época em que estava me tornando um adulto, (se isso já aconteceu mesmo, tenho minhas dúvidas), fui para uma cultura muito diferente na qual algumas das crenças e premissas eram diferentes daquelas com as quais eu havia crescido. Assim passei uma boa parte da minha vida com uma certa dissonância entre as minhas premissas e aquilo que estava ocorrendo à minha volta. E então, depois de viver quase 20 anos na Tailândia, regressando aos Estados Unidos de tempos em tempos, essa dissonância continua, o que de certa forma é divertido. Mantém-me em estado de alerta.

A Natureza das Idéias

Alguns dos suttas em Pali da época do Buda nos dão exemplos do tipo de idéias fixas que os filósofos e religiosos estavam formulando. Ao mesmo tempo que a terminologia dessas idéias pode parecer estranha aos nossos ouvidos modernos, o significado ainda é contemporâneo e é possível que nós também tenhamos idéias fixas com relação a assuntos que foram discutidos na época do Buda: “O universo é infinito ou finito?” Esse é um debate atual na cosmologia, sob a forma de se o universo continuará a se expandir indefinidamente ou em algum momento irá se contrair. Ou: “A alma e o corpo são a mesma coisa ou são diferentes?” Esse é um debate em andamento na ciência cognitiva, tendo a ver com a natureza da consciência e a relação entre a mente e o corpo.

Mas se pudermos ver que essas são apenas construções mentais, que se encontram fora da nossa própria experiência, que nós as criamos coletivamente, então não precisamos gerar apego por elas. As idéias são fixas quando você crê que o conteúdo da idéia é algo duradouro, permanente e verdadeiro. Mas se você vir isso apenas como uma idéia que foi criada na mente de uma pessoa, ou de um grupo, que foi passada de geração para geração, então é difícil se apegar de um modo fixo. Quantas opiniões temos às quais ainda estamos apegados porque ainda não vimos que são opiniões criadas? Esse é um assunto para ser investigado.

O Buda falava sobre o “entendimento correto” no sentido de ver a verdade de algo sem se apegar a isso. Só com a observação e investigação cuidadosas podemos ver que os dhammas são impermanentes, insatisfatórios e vazios. Mas esse tipo de entendimento correto é bem distinto da atitude de quem cria um sistema filosófico baseado numa idéia e depois sente-se superior em relação às demais pessoas que não compartem da mesma perspectiva. Alguns Budistas são conhecidos pelo apego à noção do desapego e aí usam isso para criticar os outros. Ou você poderá ouvir que para ser um Budista terá que ter certas idéias. Um autor mencionou recentemente que se você não acreditar no renascimento não poderá ser considerado um Budista.

Ao olharmos para a tarefa de investigar as idéias sob a perspectiva da prática contida no Anapanasati Sutta, veremos que a ênfase está na impermanência e no desapego. O ponto é que, onde quer que coloquemos a atenção plena, quer sejam nos elementos do caminho, nas cinco faculdades, nos cinco poderes – ou em todos os demais itens relacionados nesse sutta – deveríamos estar vendo a impermanência daquilo que estiver sendo experimentado, a sua instabilidade, o fato de que o que quer que esteja surgindo depende de outras coisas. E que, portanto, não possui uma existência inerente independente. Só o que existe é a interdependência, a ausência de uma essência, o vazio em tudo.

Lavrar os seus Campos com os Fatores do Despertar

Muitas das lições de Ajahn Buddhadasa envolvem a aplicação dos ensinamentos na vida diária. A sua tese era que o objetivo de ser um Budista é viver sem sofrimento e não só em alguma caverna ou num retiro de meditação, ou num monastério, mas no meio de qualquer coisa que estejamos fazendo. E a forma de viver sem sofrimento é transformar qualquer coisa que estejamos fazendo – quer seja lavrando os campos de arroz, escovando os dentes, lavando a louça – numa prática do caminho. Ele tinha suas raízes no meio ambiente em que vivia e por isso com freqüência falava sobre os sete fatores do despertar em termos coloquiais.

Na época em que ele viveu, os agricultores tailandeses da vizinhança do monastério de Suan Mokh ainda usavam búfalos para lavrar os seus campos. Na atualidade isso quase não existe mais devido às mudanças econômicas e quase não há mais plantio de arroz naquela região, mas no passado não era assim. Ele costumava dizer aos aldeãos: “Para que um agricultor lavre os seus campos, ele precisa usar os sete fatores do despertar.”

Primeiro, você tem que estar muito atento àquilo que estiver fazendo. Você tem que estar atento ao búfalo e você tem que estar atento ao arado. Se o arado afundar em demasia irá ficar entalado; se ficar muito raso, não irá produzir nenhum resultado. Você tem que estar atento no ponto em que irá virar, aos sinais que estiver dando ao búfalo e uma quantidade de outros fatores.

E não só atento, mas você precisa estar constantemente investigando enquanto estiver lavrando o campo com o búfalo. A mente tem que estar alerta verificando as coisas à medida que você avança: examinando a qualidade do solo, o grau de umidade, o estado do búfalo, a localização dos obstáculos. Você tem que ir aprendendo com o processo.

Você terá que fazer esforço – tanto físico como mental. Sem esforço você poderá se distrair e ficar relaxado. Se o seu búfalo for bom ele poderá seguir adiante por algum tempo; mas alguns búfalos são maliciosos como cavalos e mulas, e se eles perceberem alguma negligência no seu controle, tirarão proveito disso.

Você também precisa ter um certo grau de satisfação naquilo que estiver fazendo. Quer você esteja lavrando um campo ou praticando meditação, qualquer coisa pode ser tediosa ou fatigante se você não obtiver satisfação disso. Ou poderá ser divertido num sentido dhammico – interessante, recompensador. Somos mais capazes de dedicar-nos a algo que consideramos satisfatório sob uma perspectiva saudável.

E essa satisfação trará um estado de calma. Se estivermos lavrando o nosso campo, mas estivermos fisicamente agitados, iremos irritar ou assustar o búfalo. Se a nossa mente estiver agitada, irá interferir com alguns dos outros fatores. É mais fácil estar presente, quer seja lavrando o campo ou fazendo meditação, quando estamos calmos.

Quando a mente se acalma, ela naturalmente fica mais focada. As forças que agitam e distraem a mente são eliminadas e é mais fácil para a mente ficar estabelecida sobre uma única tarefa. Tanto o agricultor como o búfalo precisam permanecer sem distrações se o campo tiver que ser arado antes do anoitecer.

Quando todos esses fatores estão presentes – se reforçando mutuamente – a mente ganha a habilidade de vigiar e manter as coisas no seu caminho. O esforço se torna sem esforço, por assim dizer. A equanimidade é assim – quando você está completamente equilibrado mas ainda possui algum momentum. Você não comete erros e parece que a tarefa progride por conta própria.

Assim é como os sete bojjhangas podem atuar em conjunto para converter qualquer atividade diária numa prática recompensadora, progredindo no caminho do despertar.

 


 

Nota: Este artigo foi extraído de um curso de 7 dias ministrado no Barre Center for Buddhist em Março de 2000

 

 

Revisado: 8 Março 2003

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