Ser Ninguém

Por

Ajaan Sumedho

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Ajaan Sumedho, refletindo sobre seu próprio treinamento sob Luang Pó Chah, conclui que o que era mais significativo sobre a vida no austero mosteiro da floresta, com seu mestre realizado, era a simplicidade.

No meu primeiro ano fiquei por conta própria e pude entrar em estados mentais concentrados altamente desenvolvidos, que realmente gostei. Então fui para Wat Pah Pong, onde a ênfase estava no modo de vida, de acordo com o Vinaya, e uma rotina estabelecida. Lá, era preciso fazer pindapata todas as manhãs e os cânticos matinais e noturnos. Sendo jovem e saudável, a expectativa era que eu participasse das longas caminhadas para receber comida - havia as mais curtas para os bhikkhus mais velhos e fracos. Naquela época, sendo muito vigoroso, sempre participava das longas e longas caminhadas, voltando cansado, para então comer a refeição. No período da tarde todos tinham tarefas a fazer. Não era possível nessas condições permanecer em um estado concentrado. A maior parte do dia era tomada pela rotina diária.

Então me cansei de tudo isso e fui ver Luang Pó Chah dizendo: 'Eu não consigo meditar aqui'. Ele começou a rir de mim e dizer a todos que 'Sumedho não consegue meditar aqui!' Eu estava vendo a meditação como uma experiência muito especial que havia tido e que tinha gostado bastante. Sendo que Luang Pó Chah estava obviamente apontando para a simplicidade da vida cotidiana: levantar, pindapata, o trabalho rotineiro, as tarefas - tudo isso apontava para a atenção plena (sati= mindfulness). Ele não parecia ter nem um pouco de vontade de apoiar os meus desejos de ter uma forte experiência de privação sensorial não tendo que me ocupar com todas aquelas pequenas tarefas diárias. Ele não parecia concordar com isso; então acabei tendo que me conformar e aprender a meditar na simplicidade da vida cotidiana. E no longo prazo isso tem sido o mais útil.

Nem sempre foi o que eu queria, porque todos querem o especial, adoraria uma luz brilhante e insights maravilhosos em Tecnicolor e ter uma felicidade incrível, êxtase e arrebatamento. Não ser apenas feliz e calmo - mas muito, muito feliz!

Mas refletindo sobre a vida nesta forma humana: é simplesmente assim, ser capaz de sentar-se pacificamente e levantar-se pacificamente e se contentar com o que temos; é aquilo que torna a nossa vida uma experiência diária feliz, não sofrimento. Sendo assim que a maior parte da nossa vida pode ser vivida - não podemos viver em estados de êxtase e lavar a louça, não é mesmo? Costumava ler sobre as vidas de santos que estavam tão envolvidos em êxtases que ficavam incapazes de fazer qualquer coisa em nível prático. Mesmo com o sangue fluindo de suas palmas e realizando feitos que os fiéis se apressassem em olhar, quando se tratava de algo prático ou realista, eles eram completamente incapazes.

No entanto, contemplar a disciplina do Vinaya é um treinamento para cultivar a atenção plena. É a atenção plena com relação a fazer mantos, coletar comida, comer, cuidar do kuti; o que fazer nesta situação ou naquela situação. São conselhos práticos sobre a vida cotidiana de um bhikkhu. Um dia comum na vida do Bhikkhu Sumedho não é sobre explosões de êxtase, mas levantar, ir ao banheiro, vestir o manto, tomar banho, fazer isso ou aquilo; é apenas estar atento vivendo dessa forma e aprendendo a despertar para o modo como as coisas são, para o Dhamma.

Por isso que ao contemplarmos a cessação não estamos procurando o fim do universo, mas apenas o fim da expiração, ou o fim do dia, ou o fim do pensamento, ou o fim da sensação. Para perceber isso, significa que temos que prestar atenção ao fluxo da vida - temos que realmente perceber como é, em vez de esperar por algum tipo de experiência fantástica de uma luz maravilhosa nos envolvendo, nos arrebatando, ou o que quer que seja.

Agora apenas contemple a respiração normal do corpo. Percebemos que quando inspiramos é fácil se concentrar. Ao encher os pulmões sentimos uma sensação de expansão, desenvolvimento e força. Quando dizemos que alguém está "inflado", provavelmente está inspirando. É difícil sentir-se inchado exalando. Expandimos o peito e temos a sensação de ser alguém grande e poderoso. No entanto, quando comecei a prestar atenção ao exalar, minha mente vagava; exalar não parecia tão importante quanto inalar - apenas fazemos isso para poder ir para a próxima inspiração.

Agora reflita: podemos observar a respiração, então o que é que observa? O que é que observa e conhece a inalação e a expiração - não é a respiração, é? Também podemos observar o pânico que surge se queremos respirar mas não podemos; mas o observador, o que sabe, não é uma emoção, nem pânico, não é uma exalação ou uma inalação. Portanto, nosso refúgio no Buda é ser esse sabedor; sendo a testemunha, ao invés da emoção, ou a respiração, ou o corpo.

Dessa forma, começamos a ver uma maneira de estarmos plenamente atentos, de levar a atenção plena para as coisas rotineiras e experiências da vida. Tenho uma pequena linda foto no meu quarto de que gosto muito - desse velho com uma caneca de café na mão, olhando pela janela para um jardim inglês com a chuva caindo. O título da imagem é "Aguardando". É assim que penso em mim mesmo; um velho com a minha caneca de café sentado lá na janela, esperando, esperando .. assistindo a chuva ou o sol ou o que quer que seja. Não acho uma imagem deprimente, mas sim pacífica. Essa vida é só esperar, não é? Estamos esperando o tempo todo - essa experiência de espera. Então percebemos isso. Não estamos esperando por nada, mas podemos estar apenas esperando. E então nós respondemos às coisas da vida, à hora do dia, aos deveres, à maneira como as coisas se movem e mudam, à sociedade em que estamos. Essa resposta não vem da força dos hábitos de ganância, raiva e delusão, mas é uma resposta de sabedoria e atenção plena.

 

 

Revisado: 11 Outubro 2018

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