Neste Mundo,
O Ódio nunca, até agora, dissipou o Ódio
Por
Sarah Doering
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O ódio,
deveras, nunca, até agora, dissipou o ódio. Só o amor dissipa o ódio. O ódio só
leva à vingança e a vingança leva a mais ódio. Um ciclo de sofrimento é
colocado em movimento e pode continuar indefinidamente. Muitos lugares no mundo
hoje são uma triste evidência dessa verdade.
O ódio é
uma forma extrema de raiva. Os ensinamentos do Buda levam a raiva muito a
sério, porque a raiva causa muito sofrimento. Mesmo quando, por conta da raiva,
nenhuma ação é executada e aparentemente ela é controlada, uma pessoa que
esteja enraivecida pode num instante mudar o ambiente ao entrar num cômodo. Ela
traz consigo um calafrio invisível. Quem quer que esteja por perto se contrai e
se retrai tornando-se menos espontâneo e mais defensivo. Isso ocorre inconscientemente. Parece claramente uma
resposta no nível celular à qualidade de energia que a raiva emite.
Quando a
raiva não é contida e irrompe com violência, o dano é demasiado evidente. Faz
alguns anos, o monge Cambojano Maha Ghosananda observou que “Quando a
contaminação da raiva realmente se fortalece, perde-se a noção do bem e do mal,
certo e errado, de esposos, esposas e filhos. Pode-se até mesmo beber sangue
humano.” Essa foi a triste observação que
ele fez com respeito à longa guerra civil que havia destroçado o Camboja e
matado quase todas as pessoas que ele conhecia.
FERINDO A SI MESMO
O que é
ignorado, com freqüência, sobre os efeitos desastrosos da raiva no entanto, é o
dano que ela causa à própria pessoa. A primeira pessoa ferida é sempre aquela
que está com raiva. Uma mente com raiva é uma mente com sofrimento. Uma mente
enraivecida fica agitada e tensa. Ela fica contraída e estreita. A qualidade da
consciência muda. O julgamento e a perspectiva deixam de existir. Todo o bom
senso desaparece. A pessoa se sente inquieta e compelida. Nada é satisfatório.
O sono é difícil. O corpo fica tenso.
A noção do
eu é engrandecida e da mesma forma a noção do outro. Uma das razões porque a
raiva é tão dolorosa é porque instantaneamente cria uma tamanha separação entre
o eu e os outros. Uma barreira é estabelecida entre os dois, incapaz de ser
superada.
Mas a raiva
também pode ser prazerosa. Há um forte sentimento de justiçamento. Pensamentos
de auto-justificação assumem o comando. Como dizem os versos do Dhammapada,
“Vejam como abusaram de mim! Vejam como me humilharam!” Há um sentimento de
desafio e retidão: “Eu estou certo!” Mas, subjacente ao prazer gerado por esses
pensamentos auto-justificativos encontra-se a dor de uma mente tão
rigorosamente constrita que está fechada a qualquer enlace humano.
As
conseqüências da raiva são sérias. A raiva age como um veneno na mente. Ela
gera karma ruim e prejudicial. Cada pensamento ou palavra, ou ação enraivecida
tem o seu efeito correspondente. Algumas vezes pensamos que ao fazer algo,
especialmente se ninguém mais toma conhecimento, aquela ação simplesmente
desaparece. Essa noção pode ser um tanto reconfortante se estivermos incertos
quanto à bondade daquilo que foi feito.
A ação
aparentemente desaparece. O pensamento foi pensado. A palavra foi dita. A ação
ocorreu e se foi. Mas aquela ação coloca em movimento uma cadeia de efeitos
subseqüentes que persistem. Tal qual as ondas que correm em todas as direções
quando uma pedra é arremessada num lago, da mesma maneira, cada ação
intencional tem resultantes que se movem através do espaço e tempo e afetam
tudo aquilo que tocarem. Estamos atados àquilo que fizemos e aos efeitos do que
causamos. Em outras palavras, somos os herdeiros do nosso karma.
Se a
intenção na mente for benéfica, a felicidade virá depois. Mas se a intenção for
prejudicial, então é outra história. Os resultados de uma ação são sempre da mesma
natureza que a intenção que a realizou. Como quando plantamos uma semente de
maçã, o único tipo de árvore que irá crescer é uma macieira. E aquela árvore
irá gerar apenas um tipo de fruto – maçãs. Uma semente de maçã não produz uma
laranja ou um pêssego.
Assim, do
mesmo modo, se uma semente de raiva tiver sido plantada na mente, o sofrimento
certamente virá depois. Pois, um dia quando as condições forem apropriadas,
aquela semente de raiva irá amadurecer e gerar os frutos enraivecidos. E quando
chegar o momento apropriado, os efeitos da raiva irão regressar como um
bumerangue e golpear-nos uma vez mais.
A raiva,
com freqüência, é comparada ao fogo. Este queima tudo aquilo que lhe dá suporte
e depois aparentemente se extingue. Mas o fogo algumas vezes pode ficar
latente, escondido, até que as circunstâncias se juntem e façam com que o fogo
irrompa novamente.
Eu entendi
essa analogia muito melhor depois de uma viagem a Durango no Colorado, há alguns anos atrás. Fazia pouco tempo que nas
montanhas acima da cidade havia ocorrido um incêndio na floresta, que havia queimado tudo sem controle. Eu fui
até lá para ver as encostas enegrecidas. Não havia nada de verde em nenhum
lugar, apenas árvores carbonizadas e cinzas. Uma paisagem grave. Mas ainda mais sério foi o comentário
de um dos guardas florestais. Ele disse que embora não houvesse mais sinal do
fogo, com certeza ele estava ardendo em algum lugar profundo entre as raízes, e
mesmo um inverno rigoroso com muita neve não o apagaria. Ele disse “Nós não
sabemos onde e quando ele irá reaparecer então, temos que estar sempre
vigilantes.” Da mesma maneira, quando as condições forem apropriadas, os
efeitos da raiva reaparecerão.
A lei de
karma também diz algo mais que é grave. Diz que ao longo do tempo a nossa
personalidade e caráter são moldados por aquilo que pensamos e dizemos e
fazemos. Cada momento de raiva aprofunda a marca da raiva no contínuo mental.
Isso significa que cada vez que sentirmos raiva, será mais fácil sentir raiva
outra vez. Uma reação enraivecida, repetida com freqüência, pouco a pouco se
torna um hábito. Começamos a perceber cada vez menos coisas que nos dão prazer,
tanto na nossa vida como nos outros, e nos tornamos cada vez mais irritadiços e
negativos. E não é de se estranhar que as pessoas comecem a nos evitar e que
nos sintamos isolados e solitários. Enquanto isso, as coisas desagradáveis
continuam acontecendo e somos incapazes de compreender que elas são o resultado
das nossas próprias ações.
A nossa
personalidade e as nossas próprias vidas foram moldadas – e continuam a ser
moldadas – pelas escolhas que fazemos. É, portanto, muito importante refletir
sobre a nossa própria responsabilidade em relação a como as nossas vidas se
desenrolam. As nossas ações são a única coisa que realmente possuímos. Nós
herdamos os resultados delas e colhemos o que quer que semeemos.
LIBERTANDO-SE DA RAIVA
Apesar
disso ... não estamos condenados a repetir o passado.
A qualquer
momento esse padrão pode ser rompido. Pois, quando temos atenção plena, vemos
que a cada momento temos escolha. Devo reagir com raiva? Ou devo responder de
modo gentil, com amor?
Quanto mais
praticarmos e quanto mais reflitirmos sobre as nossas vidas e as vidas à nossa
volta, maior a nossa compreensão sobre a profundidade da lei de karma.
Passaremos a ver porque nunca deveríamos responder à raiva com a raiva. Um lama
Tibetano observou que responder com raiva à raiva de uma outra pessoa é como
seguir um lunático que salta num abismo. Se é
loucura ele fazer isso, é ainda mais louco eu seguí-lo!
No silêncio
que desfrutamos neste retiro, existe uma oportunidade contínua de observar a
mente e os meios que empregamos para nos relacionarmos com o mundo. Existe uma
oportunidade de ver como surge a resistência contra aquilo que não gostamos. A
raiva é uma forma de resistência ao momento presente. Quando não gostamos
daquilo que está presente, nos enrijecemos como em oposição e tentamos nos
livrar daquilo, colocando-o de lado.
A raiva tem
variados matizes e assume muitas formas distintas. Elas incluem a irritação, a frustração, a fúria, o ódio, o
amargor, a tristeza, o cinismo e a impaciência. Além disso, há o julgamento. A
mente julgadora ocorre com freqüência – julgando a si mesmo, julgando os
outros. E a culpa, também, é uma forma de raiva. É a raiva para consigo mesmo.
Todos esses
diferentes tipos de aversão podem ser chamados de emoções negativas. Mas,
negativo neste caso não quer dizer mau. Uma emoção negativa é simplesmente
aquela que nega ou refuta. Quando a raiva diz “Eu não gosto disso. Eu não quero
isso!” ela está dizendo NÃO para a vida. Pois a vida naquele momento ocorre de
um certo modo e esse modo está sendo rejeitado.
A vida
insiste todo o tempo em nos apresentar coisas que nós nunca teríamos escolhido
se tivéssemos escolha. Pode ser uma posição sentada dolorosa, o estomago
embrulhado, um vento gelado, notícias tristes ... A questão então, é como não
reagir com aversão, como não ficar automaticamente com raiva ou triste, ou com
medo.
A prática
toda que estamos realizando conduz à libertação da raiva e a todo tipo de
aversão. Mas nesta noite gostaria de focar especialmente em dois métodos: o
desenvolvimento do amor bondade e o desenvolvimento da atenção plena. Essas
duas práticas podem ser desenvolvidas simultaneamente. Vamos analisar a atenção
plena primeiro.
Nós
precisamos observar as nossas mentes com atenção. Nós queremos capturar a
raiva, se pudermos quando ela ainda é pequena, exatamente quando ela começa a
se desenrolar. Se exatamente a primeira sensação de desagrado for notada, ela
poderá desaparecer antes que cresça como uma irritação. Ou, se já for uma
irritação, poderá ser notada e confrontada antes que cresça como raiva. Ou, se
já for raiva e se for vista, poderá ser capturada antes que jorre para fora em
forma de algum ato do qual mais tarde nos arrependeremos – uma nota mal
humorada, palavras grosseiras ou uma porta batida. A fúria e o ódio, com toda a intensidade, não surgem do nada.
Eles evoluem de uma sensação desagradável momentânea, que passou desapercebida
e que rapidamente cresceu em
intensidade.
O ponto no
qual tomamos consciência da raiva depende da qualidade da atenção. Quanto mais
cedo sintonizarmos e compreendermos que a raiva está presente, mais fácil será
controlá-la e abandoná-la. Mas se estivermos perdidos em pensamentos, perdidos
em alguma estória sobre nós mesmos, não haverá contato com o que de fato está
ocorrendo no presente momento.
Certa vez
eu estava num engarrafamento de tráfego. Uma longa fila de carros estava
imóvel, presa. Eu vi um homem num carro numa outra pista que estava não só buzinando, mas também batendo
no para-choques do carro da frente para que ele saísse da frente. O homem
estava com o rosto em chamas, agitando os punhos para o outro motorista, quando
veio um policial para controlá-lo. Aquele homem estava tomado pela raiva, ele
nem se deu conta que o motorista à sua frente estava tão preso no
engarrafamento quanto ele.
TRABALHANDO COM AS DIFICULDADES
Agora,
aquilo que vou dizer sobre trabalhar com a raiva se aplica a qualquer emoção
aflitiva, portanto, se a raiva não for a sua principal preocupação no momento,
mas o desejo ou o medo, ou a inveja, ou alguma outra coisa, por favor preste
atenção com cuidado, pois as mesmas palavras são aplicáveis.
Se você
estiver sentado e de repente acordar para o fato de que está com raiva, com
muita raiva – dê um passo para fora da estória que está se desenrolando na sua
mente. Deixe de lado o pensar. Faça uma pausa e permaneça com a sensação de
raiva, não importa quão desconfortável ela for. A sensação poderá ser de total
repugnância, uma massa confusa, pesada, quente e que queima. Cada emoção possui
o seu toque particular e quando ela assume o comando, parece ser uma entidade
sólida, substancial, que não tem fim.
Na verdade,
a raiva não é sólida, mas uma combinção de diferentes componentes: pensamentos,
que fazem a estória ficar dando voltas; um toque emocional em particular; e
numerosas sensações corporais. E tudo isso, assim como a própria raiva, é transitório.
Surge e desaparece, surge e desaparece.
Tente
deixar de lado os pensamentos. Abandone a estória que está se desenrolando na
mente: “Ele fez isso, ela disse aquilo, isso não é justo ... “ Esses
pensamentos são a expressão da raiva e também o seu alimento . Abandone-os e
traga a atenção para as sensações no corpo. Permita-se sentir, sinta
completamente a emoção, diretamente. Olhe para ver o que está acontecendo. Há
calor, há pressão, há tensão, há contração? Onde no corpo estão sendo
experimentadas essas sensações? Elas se movem? Elas mudam? Qual a sua relação
com elas? Há resistência contra elas? Se houver resistência, permaneça com ela
e sinta-a.
Se o
pensamento for tão forte que fica puxando-o de volta para a estória, faça uma
pequena notação mental ‘pensando,’ ‘pensando’. A notação mental mantém viva a
atenção plena e é um cordão de sanidade. Ela nos recorda do que na verdade está
acontecendo exatamente neste momento – que, muito simplesmente, são pensamentos
enraivecidos surgindo na mente.
Quando a
raiva for forte e custar muito trabalho permanecer no presente, respire fundo
algumas vezes, respire através da raiva e depois regresse para as sensações no
corpo quando puder. Acima de tudo, aceite o fato de que a raiva está aqui.
Abra-se para ela. Dê permissão, com suavidade. Ficar contrariado e enraivecido
com a raiva só aumenta a raiva e aumenta a dor.
Se a emoção
for demasiado intensa para ficar sentado, faça meditação andando. Caminhe
rápido. Traga a atenção plena para o caminhar. Ou pare e desfrute da natureza.
Olhe para os campos e as árvores contra o céu. Olhe para os pássaros e as
pequenas criaturas. Mas não se entregue aos pensamentos. Tenha atenção plena.
Pois quando temos atenção plena, não há raiva. A raiva desaparece. Isso é verdade
para qualquer emoção negativa. Quando a atenção for incondicional, a
negatividade simplesmente desaparece.
APENAS
UMA PEQUENA FOLHA ...
Faz muito
anos, eu tive uma dessas experiências que fez com que o meu entendimento da
prática mudasse significativamente. Foi numa época em que eu estava muito
triste. Parecia que o fim do mundo havia chegado para mim. Alguém que eu amava
muito havia partido e era improvável que fosse voltar.
Caminhando
no jardim em frente à minha casa eu distraída peguei uma folha dum arbusto. E
depois, por alguma razão, parei e olhei para a folha na minha mão. Minha
atenção foi de alguma forma atraída pela folha e comecei a estudá-la com
cuidado. Eu fiquei parada, olhando para a pequena folha, as suas veias, as
bordas delicadas, a sua suavidade, o seu brilho, o seu verde intenso. E de
repente compreendi que aquela tristeza pesada e obscura que estava me
deprimindo, havia partido. Meu coração estava completamente leve e em paz.
O contraste
entre ser engolida pela tristeza e a repentina libertação para a leveza e a paz
foi tão forte que o pensamento surgiu: “Essa folha é mágica?” Eu não compreendi
em absoluto o que havia acontecido. A mudança foi tão grande, tão completa, que supus que ela tinha de ser causada por algo
fora de mim mesma. E com cuidado eu trouxe a folha para dentro da casa. Eu não
havia compreendido que a mudança do sofrimento para a paz havia acontecido
simplesmente porque por alguns momentos a minha mente esteve focada e plenamente
atenta.
Na manhã
seguinte, eu peguei uma outra folha para ver se ela tinha o mesmo poder, como
se a felicidade repousasse numa folha. É claro que não funcionou. Eu só fui
compreender muito mais tarde que quando a atenção plena é completa, não há
tristeza, não há raiva – pois não há pensamento.
O
pensamento e o entregar-se ao ciclo de pensamentos, permitindo que eles sigam
indefinidamente, é que faz com que nos sintamos infelizes e nos mantém
infelizes. Quando o pensamento é cortado, as aflições mentais desaparecem.
Dukkha é substituído pela felicidade de uma mente alerta e tranqüila.
Aquele
momento com a folha foi uma grande lição para mim. Pois foi através disso que
pude enxergar o poder extraordinário da atenção plena – o seu poder curativo.
Quando a atenção está totalmente com algo, qualquer coisa, não há espaço na
mente para a tristeza ou para a raiva, ou qualquer outra emoção negativa. Só a
atenção está presente. E a paz que provém da completa atenção está acima de
qualquer comparação.
Se tivesse
sido possível transferir aquele tipo de atenção cuidadosa, que havia sido dada
para a folha, para qualquer coisa que eu fizesse e sustentar essa atenção, a
tristeza não teria nunca retornado. Mas é claro, ela retornou. Aquele momento
de presença completa foi apenas um descanso para a minha mente. Foi um tremendo
alívio, mas não deu um fim à minha dor, e nem poderia. Para que isso,
acontecesse, algo mais era necessário.
Na próxima
vez que a tristeza surgiu, ao invés de
buscar pela cura mágica numa folha, como (para ser honesta) eu continuei
fazendo por vários dias, eu deveria ter me voltado para o próprio sentimento de
tristeza. Eu deveria ter estado atenta
permitindo a mim mesma sentí-lo
completamente. A menos que seja possível ficar plenamente atenta o tempo todo, do que eu não era
capaz, a única forma de finalmente resolver qualquer emoção aflitiva é
enfrentá-la de frente, abrir-se para ela, e trazê-la totalmente para a
consciência. Quando for completamente compreendida, ela irá se dissipar e
desaparecer. Em geral não é possível fazer isso de imediato, é óbvio. Pode ser
demasiado doloroso. Então, temos que respeitar as nossas limitações e seguir
num passo apropriado.
Ao mesmo
tempo, é importante compreender, quando estamos numa situação desagradável que
não pode ser mudada, que quanto mais rápido a resistência for abandonada, tanto
mais rápido estaremos em paz. É bom senso, nada mais. De outro modo,
continuaremos batalhando para viver num mundo que não existe, um mundo de
fantasia de como desejaríamos que as coisas fossem, mas não são. Estaremos em
dessintonia com aquilo que está acontecendo no momento e o sofrimento será
inevitável.
O abandono,
com a rendição à realidade do momento presente, é a única coisa realista a ser
feita. Aceitar uma determinada situação não significa que você precisa gostar
dela. Significa simplesmente que, quer gostemos ou não, ela está ali.
UMA VIDA NOTÁVEL
A história
da vida de Maha Ghosananda, o monge Cambojano que mencionei antes, ilustra com
beleza tudo aquilo que tenho tentado explicar. Ghosananda conheceu diretamente
aquilo de pior que a raiva é capaz de fazer. Ghosananda experimentou os efeitos
horríveis da raiva e devido à desesperança decidiu aprender a amar.
Como jovem
monge, Ghosananda primeiro estudou os suttas, [discursos]. Quando chegou a hora
de começar a praticar meditação, ele foi mandado para um monastério na
Tailândia. Foi na Tailândia, um lugar seguro, que ele primeiro ouviu sobre as
hostilidades no Camboja. Ele descobriu que os seus pais e todos os irmãos e
irmãs haviam sido assassinados. À medida que o tempo foi passando, ele ficou
sabendo da morte de muitos dos seus companheiros, monges e monjas. E é claro, ele disse, que chorou por tantas
perdas. Ele chorou pelo seu país. Ele chorou, ele disse, todos os dias e era
incapaz de parar de chorar. Mas o seu mestre o encorajou a parar. “Não chore,”
lhe disse, “Tenha atenção plena.” Isso pode soar como falta de compaixão, mas
foi um bom conselho.
“Estar com
atenção plena,” disse o mestre, “é como saber quando abrir e fechar as suas
janelas e portas. A atenção plena nos diz quando é o momento apropriado de
fazer as coisas ... Você não pode parar a guerra. Ao invés disso, lute contra
os seus impulsos de tristeza e raiva.
Tenha atenção plena. Prepare-se para o dia em que você poderá ser
verdadeiramente útil para o seu país. Pare de chorar e tenha atenção plena!”
Ghosananda
disse que ele ficou muito tempo sentado refletindo sobre o extermínio e naquilo
que o seu mestre havia dito. Ele compreendeu que os mortos estavam mortos. Eles
estavam no passado. Haviam partido. Toda a sua família, todos os seus amigos se
foram. Ele pensou no futuro e viu que ele era totalmente desconhecido. Ele
decidiu fazer a única coisa possível, tomar conta do presente da melhor forma
que ele podia. “O presente é a mãe do futuro,” ele dizia. “Tome conta da mãe.
Assim a mãe tomará conta dos filhos.” Então, ele regressou para a prática, de
volta para a respiração. Pois, dizia ele, “Respirar não é o passado ou o futuro.
Respirar é agora.”
As lágrimas
pararam. “Não há tristeza no momento presente,” ele explicava. “Como poderia
haver? A tristeza e a raiva se referem ao passado. Ou elas surgem pelo medo do futuro.
Mas elas não estão no momento presente. Elas agora não existem.”
Durante
nove anos ele deu seguimento à sua prática nas florestas da Tailândia, isolado
numa cabana, lá ele conquistou a claridade e estabilidade mental, o
entendimento e o amor que são o fruto de profunda meditação.
Quando a
guerra estava chegando ao seu fim, ele regressou ao Camboja. Milhões de civis
haviam morrido devido aos bombardeios, à fome, aprisionamento e tortura. Era
uma nação de ódio e medo e sofrimento. Ghosananda foi para um campo de
refugiados próximo da fronteira. O campo estava abarrotado de pessoas que
haviam fugido dos exércitos inimigos. O esgoto corria a céu aberto. Água e
comida eram escassas. As pessoas estavam desesperadas, sem saber o que fazer.
Ele supervisionou a construção de um grande templo improvisado feito com bambu.
Testemunhas
dizem que milhares de refugiados se juntaram e choraram quando esse único monge
budista nos seus mantos de cor ocre recitou os versos “O ódio nunca até agora
dissipou o ódio. Apenas o amor dissipa o ódio. Essa é a lei antiga e
inexaurível.” E ele disse mais, “agora é a vez da paz e não de mais ódio. Que
não hajam mais violências ...”
De
imediato, ele começou a trabalhar para ajudar a restabelecer a sociedade
fraturada, reconstruindo templos, liderando marchas pela paz, encorajando as
pessoas a dar um fim às hostilidades, a abandonar a raiva e viver em paz. Quase
da noite para o dia ele se tornou uma figura pública e agora é conhecido no
mundo todo como um porta voz da não violência e da reconciliação. Ele algumas
vezes é chamado de “o Gandhi do Camboja.”
Deixar de
lado o passado e aceitar as perdas é algo muito doloroso de ser feito. Mas
apegar-se à tristeza e à auto-piedade e continuar a lamentar aquilo que se foi ou que poderia ter sido simplesmente
corrói a força. Rouba toda a energia criativa de viver.
O rei do
Camboja ficou profundamente deprimido devido ao imenso sofrimento do seu país.
Ghosananda foi perguntado que tipo de conselho ele daria ao rei. Camboja, é claro,
é (ou foi) um país budista e seria algo bastante normal para o rei solicitar um
conselho de um monge.
Ghosananda
disse: “Nós sempre lembramos ao rei para estar no presente. Ele sempre pensa no
futuro, ele sempre lamenta o passado e assim sofre. Se ele permanecer no
momento presente, ele será feliz. A vida existe no momento presente.
Inspirando, momento presente. Expirando, momento presente. Não podemos respirar
no passado,” ele disse. “Não podemos respirar no futuro. Só podemos respirar
aqui e agora.”
Eu gosto
dessa história do rei porque é tão simples. O conselho dado ao rei é o mesmo
conselho dado para você ou para mim. Esteja no presente, tenha atenção plena, e
a tristeza e a raiva desaparecerão.
CURANDO AS FERIDAS
Voltar-se
para o presente e aceitar o inaceitável na verdade acaba sendo um alívio. Se
vocês alguma vez fizeram isso, sabem o que eu quero dizer. Significa que não há
mais necessidade de batalhar. Um fardo, que nem sabíamos estávamos carregando,
é deposto. As coisas são como são. Nós as aceitamos porque são um fato. É a
única coisa realista a ser feita. E assim seguimos com a vida.
Isso toma
tempo, é claro. Como disse Ghosananda, “Guerras do coração sempre demoram mais
para esfriar do que o cano de uma arma ... Nós precisamos curar através do amor
... E precisamos ir devagar, passo a passo ...” Talvez a aceitação possa
acontecer só depois que o sofrimento todo da perda, decepção e desesperança
tenha sido experimentado.
Mas, mesmo
assim, a cura não é fácil. Pois o que é necessário é nada menos do que uma
transformação da mente. O perdão é necessário para que o ódio e a aversão sejam
abandonados e substituídos pelo amor. O passado tem de ser perdoado, a vida em
si tem de ser perdoada, por ela ser como ela é. E metta, ou amor bondade,
tem de ser estimulado.
É
necessário que desenvolvamos metta para nós mesmos, metta para
aqueles à nossa volta, metta para a nossa situação na vida. Como
desenvolver um coração pleno de metta se torna a questão central. Para
começar, o método é refletir e ter claro que isso é o que você realmente quer
fazer, deixar o sofrimento de lado e ser benévolo com você mesmo e com os
outros. Uma intenção clara, repetida com freqüência, coloca a mente na direção
que queremos ir e ajuda a manter-nos seguindo adiante.
O Dalai
Lama menciona uma frase que ele repete a cada manhã ao despertar. “Que todos os
meus pensamentos, palavras e ações hoje não causem malefícios a ninguém, mas
benefícios a todos.” Com o tempo e repetição, essa frase começa a atuar como
uma correnteza subjacente na mente, re-direcionando silenciosamente a intenção,
afastando-a do malefício e dirigindo-a para a expressão do amor.
O que ajuda
também, é refletir sobre as desvantagens da raiva, refletir sobre todas as diferentes
razões pelas quais sabemos que as emoções negativas causam malefícios. Refletir
sobre isso projeta na consciência os seus efeitos danosos e reforça a
determinação de evitar todas as formas que expressem a aversão.
Praticar a
meditação de metta intensivamente durante um longo período de tempo pode
ajudar, ou mesmo praticá-la durante uma hora por dia. Ou começar cada sessão de
meditação com frases de metta. Se você sente freqüentemente raiva de si
mesmo, cheio de autocrítica e auto-julgamento, você poderia começar cada sessão
de meditação com frases de metta
tradicionais dirigidas para você mesmo. Isso pode parecer pouca coisa, mas se
for repetido com fé, com o tempo irá causar um impacto significativo. Com o
tempo haverá menos auto-julgamento, menos auto-condenação e mais auto-respeito.
Sentir metta
por si próprio não só é importante, mas necessário para que a prática evolua. E
por outro lado a prática intensifica o sentimento de metta. Pois com a prática a confiança e convicção em nós
mesmos começa a crescer. E essa confiança crescente proporciona um senso de
valor próprio e apreço, permitindo que nos voltemos mais facilmente para os
outros com o mesmo respeito e apreço.
ATENÇÃO
PLENA E METTA
A mais
importante fonte de metta, e essa pode ser uma surpresa, é a prática da
atenção plena. A atenção plena está intimamente ligada a metta e possui
até um aspecto de metta dentro de si. Pois estar com atenção plena é
estar completamente aberto e receptivo a qualquer coisa presente. Um ditado Zen
Chinês compara a atenção plena a um anfitrião que está recebendo amigos em casa
para uma reunião. O anfitrião fica na porta e cumprimenta cada convidado
conforme eles entram e se despede de cada um deles quando partem, com total
atenção, um após o outro. Não há preferência por um em relação ao outro,
antipatia por um ou outro. Há apenas o interesse genuíno e a atenção para com
quem quer que seja que cruze a porta.
A atenção
total é uma grande dádiva. Quando você dá para alguém a sua total atenção, você
está-lhe oferecendo respeito. Proporcionar atenção incondicional a outrem é
aceitar aquela pessoa totalmente e reconhecer o seu valor. Nesse momento de
completa atenção, um profundo vínculo humano é sentido. A outra pessoa sente
esse interesse compassivo e provavelmente irá corresponder.
Com o
tempo, a prática da atenção plena muda os antigos modos de percepção. Pois num
momento de atenção plena, as memórias e o condicionamento passado são postos de
lado. Cada momento de atenção plena é um momento de pureza no qual, por aquele
instante, vemos com novos olhos a maravilha e a beleza daquilo que aqui está.
Isso é
verdade não só para seres vivos, mas para objetos inanimados também. Krishnamurti, um mestre espiritual da Índia,
certa vez disse que se você pegar uma pedra do chão, uma pedra comum, e
colocá-la sobre a mesa na sua sala de estar e depois olhar para aquela pedra
com bastante cuidado todas as vezes em que você estiver na sala, ao final de um
mês você verá aquela pedra como sagrada. O poder da atenção plena nos conduz
para além da superfície, para a essência de como as coisas são.
Quando a
atenção plena se tornar mais constante e precisa, alguém com quem no passado
estivemos enraivecidos passará a ser visto não como um inimigo, mas como um ser
que está ferido e confuso. (E se nos conhecermos pelo menos um pouco, saberemos
que nós também estamos freqüentemente feridos e confusos). Compreenderemos que
como nós estamos buscando a felicidade, aquela pessoa também quer ser feliz –
mas não sabe como.
Precisamos
nos colocar no lugar dos outros. Como os Índios Americanos costumavam dizer,
precisamos caminhar uma milha com os sapatos daquela pessoa e depois nos
perguntarmos: “Como eu responderia a isso.” A resposta honesta pode muito bem
ser que nós faríamos exatamente a mesma coisa. Pois quanto mais nos sentarmos
em silêncio observando a mente, mais evidente se torna a infeliz descoberta,
que nós mesmos somos capazes de todo o tipo de pensamentos maléficos.
Isso não
significa que não devemos nos erguer em oposição à injustiça. Mas sim, que
devemos fazer isso não com raiva, mas sob a perspectiva de metta, em busca de uma solução para o problema.
Aprender a
amar os nossos inimigos não é fácil. Como Ghosananda escreveu, “Eu não questiono
que amar os próprios opressores pode ser a atitude mais difícil de ser
praticada. Mas é uma lei do universo que a retaliação, o ódio e a vingança só
dão continuidade ao ciclo e nunca o param. Reconciliação não quer dizer
renúncia aos direitos e condições, mas sim, que usamos amor em todas as nossas
negociações.”
Para fazer
isso é necessário grande humildade. Pois, como ele diz, “Nós precisamos nos ver
nos outros. O que é o inimigo senão um ser ignorante, e nós mesmos também somos
ignorantes com relação a muitas coisas ... Só metta e a atenção plena
correta podem nos libertar.”
Todas as referências a Maha Ghosananda podem ser encontradas no livro “ The Future of Peace, Chapter 6,” por Scoll A. Hunt, Harper Collins (2002).
Fonte: Insight Journal, Outono 2004 –
Revisado: 2 Abril 2005
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