O Peso das Montanhas
Por
Ajaan Thanissaro
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Uma montanha é pesada?
Ela pode ser pesada, mas contanto que nós não
tentemos levantá-la, ela não será pesada para
nós.
Essa é uma metáfora que um dos meus professores, Ajaan
Suwat, freqüentemente usava para
explicar como parar o sofrimento decorrente dos problemas da vida. Você não
nega a sua existência – as montanhas são pesadas – e você não foge delas. Como
ele acrescentaria, você lida com os problemas sempre que necessário e os
resolve até onde for possível. Você simplesmente aprende como não carregá-los
por aí. A arte da prática está em viver com problemas reais sem fazer da
realidade deles um fardo para o coração.
Como um primeiro passo para dominar essa
arte, seria bom dar uma olhada na fonte usada por Ajaan Suwat para a construção
da sua metáfora – os ensinamentos do Buda sobre dukkha - para termos uma
idéia da extensão da metáfora.
Dukkha é uma palavra notoriamente difícil de traduzir para o Português.
No Cânone em Pali, ela se aplica tanto à dor e ao desconforto físico como à dor
e à enfermidade mental, variando desde a angústia intensa até a noção mais
sutil de opressão ou confinamento. Os comentários em Pali explicam dukkha como
“aquilo que é difícil de suportar”. Ajaan Maha Boowa, um mestre Tailandês da
tradição de florestas, a traduz como “qualquer coisa que coloque um aperto no
coração”. Embora nenhuma palavra em Português cubra todos esses sentidos, a
palavra estresse – como uma tensão no corpo ou na mente – parece a mais próxima
do termo em Pali. É assim que traduzirei essa palavra neste artigo, embora
também venha a usar a palavra sofrimento, quando a palavra estresse parecer
muito suave.
O Buda focou seus ensinamentos na questão do estresse porque ele encontrou um método para transcendê-lo. Para entender esse método, temos que ver que partes da nossa experiência estão marcadas pelo estresse. A partir dessa perspectiva, a experiência cai em duas grandes categorias: condicionada (sankhata) – que ocorre a partir de forças e processos causais - e não condicionada (asankhata). Toda experiência comum é condicionada. Mesmo um simples ato de olhar para uma flor é condicionado, naquilo que depende de condições físicas que dão uma base para a existência da flor, junto com todos os complexos fatores físicos e mentais envolvidos no ato de ver. A única experiência que não é condicionada é extraordinária – nibbana – pois não depende de fatores causais de nenhum tipo.
O estresse está totalmente ausente na experiência não condicionada. Sua relação com a experiência condicionada, no entanto, é mais complexa. Quando o Buda falou sobre Dukkha em relação às três características comuns - impermanência, estresse e não-eu - ele disse que todas as experiências condicionadas são por natureza repletas de estresse. Sob esse ponto de vista, mesmo o olhar para uma flor é cheio de estresse, apesar do óbvio prazer que isso traz, pois ele se apóia numa frágil combinação de fatores que juntos compõem a experiência. Assim, está claro que se nós quisermos ir além do estresse nós teremos que ir além da experiência condicionada. Mas isso apresenta um problema: o que usaremos para alcançar o não condicionado? Nós não podemos usar a experiência não condicionada para levar-nos até lá, pois – por definição – ela não pode desempenhar um papel em nenhum processo condicionado. Ela não pode ser usada como uma ferramenta. Assim, necessitamos de um método no qual a experiência condicionada seja usada com a finalidade de transcender-se a si mesma.
Para satisfazer essa necessidade, o Buda falou sobre dukkha em um outro contexto: as Quatro Nobres Verdades. Aqui, por razões de estratégia, ele dividiu a experiência condicionada em três verdades – estresse, sua causa (desejo), e o caminho para a sua cessação (o Nobre Caminho Óctuplo). A experiência não condicionada ele deixou como a verdade restante: a cessação do estresse. Ao definir a primeira verdade ele disse que as experiências condicionadas eram cheias de estresse apenas quando acompanhadas pelo apego. Nesse sentido, olhar para a flor não é estresse, a menos que nos apeguemos à experiência e tentemos basear a nossa felicidade nisso.
Então é óbvio que nesses dois contextos o Buda está falando de dukkha
com dois sentidos diferentes. A metáfora da montanha de Ajaan Suwat ajuda a
explicar como esses dois sentidos estão relacionados.O peso da montanha
significa dukkha como uma das três características comuns: o estresse inerente
em todas as experiências condicionadas.
O fato da montanha ser pesada apenas para aqueles que tentam levantá-la
significa dukkha como uma nobre verdade: o estresse que vem apenas com o apego
- o apego que transforma a dor física em dor mental e torrna o envelhecimento, enfermidade
e morte um sofrimento mental.
O Buda ensinou dukkha como uma das três características comuns para nos
fazer refletir sobre as coisas às quais nos apegamos: vale mesmo a pena nos
agarrarmos a elas? Se a resposta é não, porque então continuamos nos apegando?
Se a vida não oferecesse prazeres melhores do que aqueles que já temos
resultantes do nosso apego, a insistência do Buda, no estresse contido em
coisas como olhar para uma flor, poderia parecer grosseira e negativa. Mas o
seu propósito em fazer com que reflitamos sobre o outro lado dos prazeres
comuns é para abrir nossos corações para algo muito positivo: a mais alta forma
de felicidade, totalmente destituída de
sofrimento e estresse, que vem apenas quando nos soltamos de tudo
completamente. Assim, ele também ensinou dukkha como uma nobre verdade para
focar a nossa atenção no ponto onde está o verdadeiro problema: não no estresse
contido nas experiências, mas na nossa ignorância em pensar que nós temos que
nos apegarmos a elas. E é uma coisa boa também, pois é aí que está o problema.
Enquanto existirem montanhas, não há muito que possamos fazer sobre o seu peso
inerente, mas nós podemos aprender a quebrar o nosso hábito de levantá-las e
carregá-las por aí. Nós podemos aprender a parar de nos apegarmos. Isso porá um
fim aos nossos sofrimentos.
Para compreender como soltar das coisas de forma eficaz, é de grande
ajuda dar uma olhada na palavra apego em Pali – upadana – pois ela
também tem um segundo sentido: o ato de alimentar-se, como quando a planta se
alimenta do solo ou o fogo do seu combustível.
Esse segundo significado para upadana se aplica à mente também.
Quando a mente se apega a um objeto, ela está se alimentando desse objeto. Está
tentando ganhar alimento dos prazeres sensuais, possessões, relacionamentos,
reconhecimento, status, o que quer que seja, para compensar o corrosivo sentido
de vazio que ela sente por dentro. Infelizmente, esse alimento mental é
temporário na melhor das hipóteses, então ficamos famintos por mais. No
entanto, não importa o quanto a mente tente possuir e controlar suas fontes de
alimento para garantir um fornecimento constante, elas inevitavelmente se
acabam. A mente fica então
sobrecarregada com a busca de novos lugares para se alimentar.
Assim o problema do estresse se resume aos hábitos alimentares da mente.
Se a mente não tivesse que se alimentar, ela não sofreria. Ao mesmo tempo, ela
não criaria mais dificuldades – através da possessão e controle – para as
pessoas e coisas que ela consome como
alimento. Se quisermos terminar com o sofrimento para nós mesmos e ao mesmo
tempo aliviar as dificuldades dos outros, nós deveremos então fortalecer a
mente até o ponto em que ela não precise se alimentar, e então aguçar o seu
discernimento para que ela não queira
se alimentar. Quando ela nem precisar e nem quiser se alimentar mais, ela se
soltará sem termos que dizer que assim o faça.
A prática para dar fim a dukkha seria rápida e fácil se nós simplesmente pudéssemos chegar direto à sabedoria que dá um fim ao apego. Assim, poderíamos então progredir pelo resto das nossas vidas. A analogia da alimentação, no entanto, ajuda a explicar porque, simplesmente, ver as desvantagens do apego não é suficiente para fazer com que nos soltemos. Se não formos fortes o suficiente para ficar sem o alimento, a mente continuará encontrando novas maneiras para se alimentar e se apegar. Portanto, nós primeiro temos que aprender hábitos alimentares saudáveis que fortaleçam a mente. Só então, ela estará numa posição em que não precise se alimentar.
Como a mente se alimenta e se apega? O Cânone em Pali lista quatro
formas:
1. apego
à cobiça sensual pela visão, sons, aromas, sabores e tangíveis;
2. apego
às idéias sobre o mundo e às narrativas de nossas vidas;
3. apego
a preceitos e rituais – isto é, maneiras fixas de fazer as coisas; e
4. apego à idéia da existência de um eu – isto
é, idéias sobre se temos ou não uma verdadeira identidade, ou o que seria essa
identidade.
É raro o momento em que a mente comum não esteja se apegando a pelo
menos uma dessas formas. Mesmo quando abandonamos uma forma de apego,
normalmente, é para favorecer uma outra. Por exemplo, podemos abandonar uma
opinião puritana porque interfere com o prazer sensual; ou um prazer sensual
porque conflita com uma opinião sobre o que deveríamos fazer para nos mantermos
saudáveis e em forma. Nossa opinião sobre quem somos pode variar dependendo de
qual das nossas várias idéias de “eu” esteja mais sensibilizada, expandindo
para um sentido de unidade cósmica quando nos sentimos confinados pelo nosso
pequeno complexo de corpo e mente e contraindo para dentro de uma casca quando
nos sentimos feridos devido à identificação com um cosmo tão cheio de crueldade
e desperdício. Quando a insignificância de nosso eu finito se torna opressiva
novamente, nós podemos saltar para uma idéia de que nós não temos nenhum eu,
mas então isso se torna opressivo.
Assim nossas mentes saltam de apego em apego como um pássaro preso numa
gaiola. Quando percebemos que estamos cativos, nós naturalmente buscamos uma
saída, mas para qualquer lugar que nos voltemos, parece ser um outro lado da
gaiola. Podemos começar a nos indagar se existe uma saída, ou se a conversa de
completa liberdade não passa de um antigo arquétipo ideal que não tem nada a
ver com a realidade humana. Mas o Buda foi um grande estrategista: ele percebeu
que uma das paredes da gaiola é na verdade uma porta e que se nós a tocarmos de
maneira hábil, ela se abrirá completamente.
Em outras palavras, ele descobriu que a maneira de superar o apego é
transformar as nossas quatro formas de apego em um caminho para o seu próprio
abandono. Precisaremos de uma certa dose de prazer sensual – no que se refere a
um alimento adequado, roupas e moradia -
para encontrar a força para superar a cobiça sensual. Necessitaremos de
entendimento correto – que vê todas as coisas, inclusive as idéias, sob a
perspectiva das Quatro Nobres Verdades – para minar nosso apego às idéias. E
todos precisaremos das regras dos cinco preceitos éticos e da prática da
meditação, para colocar a mente em uma posição sólida, onde ela possa derrubar
seu apego aos preceitos e rituais. Sustentando tudo isso, precisaremos de um
saudável sentido de amor próprio, auto-responsabilidade e auto-disciplina para
dominar as práticas que levam ao insight que corta todo apego à idéia da
existência de um eu.
Assim, começamos o caminho para o fim do sofrimento, sem tentar derrubar
nossos apegos imediatamente, mas aprendendo a nos apegar mais estrategicamente.
Em relação à analogia da alimentação, nós não tentamos matar a mente de fome. Simplesmente
mudamos a sua dieta, fazendo com que ela substitua a comida sem qualidade pela
comida saudável, desenvolvendo qualidades interiores que a tornarão tão forte
que ela não precisará se alimentar nunca mais.
O Cânone em Pali lista essas qualidades como sendo cinco:
1. convicção
no princípio de kamma – que nossa felicidade depende das nossas próprias ações
2. energia
para abandonar qualidades inábeis e desenvolver qualidades hábeis no seu lugar
3. atenção
plena
4. concentração
5. sabedoria
De todas essas, a concentração – no nível de jhana, ou absorção intensa, é a força que a tradição Budista mais freqüentemente compara com comida boa e saudável. Um discurso do Anguttara Nikaya (AN VII.63) compara os quatro níveis de jhana às provisões usadas para abastecer uma fortaleza fronteiriça. Ajaan Lee, um dos mestres da tradição de florestas da Tailândia, compara os jhanas com as provisões necessárias para uma viagem por uma floresta isolada e desabitada. Ou como o Dhammapada (200) diz sobre o êxtase do jhana:
Quão felizes vivemos nós,
que não temos nada.
Que nos alimentamos do êxtase
como os devas Radiantes.
Quanto à sabedoria, quando a mente está fortalecida com a boa comida da concentração, ela pode começar a considerar as desvantagens de ter que se alimentar. Essa é a parte dos ensinamentos do Buda que – para muitos de nós – vai contra a nossa inclinação natural, porque alimentação, em todos os sentidos da palavra, é a maneira mais importante de nos relacionarmos e obtermos satisfação do mundo que nos rodeia. O nosso sentido mais acalentado de interconexão com o mundo – que algumas pessoas chamam de relacionar-se – é, no seu nível mais básico, comer uns aos outros. Nós nos alimentamos dos outros e eles se alimentam de nós. Algumas vezes nossos relacionamentos são mutuamente nutritivos, algumas vezes não; mas de qualquer forma é muito difícil imaginar qualquer relacionamento duradouro, onde algum tipo de alimentação física ou mental não esteja em jogo. Ao mesmo tempo, a alimentação é a atividade na qual experimentamos o sentido mais íntimo de nós mesmos. Nós nos definimos através de prazeres, pessoas, idéias e atividades para as quais sempre retornamos para nos alimentarmos.
Assim é difícil que imaginemos no mundo, qualquer possibilidade de prazer onde não estivéssemos comendo uns aos outros. Nossa resistência generalizada à idéia de não mais nos alimentarmos – um dos mais incomuns e radicais ensinamentos do Buda – vem em grande parte de uma falha de imaginação. Nós quase não podemos conceber o que ele está tentando nos dizer. Assim, ele tem que prescrever um remédio forte para estimular nossas mentes a enxergar novas perspectivas.
Aqui é onde os seus ensinamentos sobre dukkha, ou estresse, entram em ação. Quando a mente é forte e bem alimentada, ela pode começar a olhar objetivamente para o estresse envolvido em ter que se alimentar. Os ensinamentos sobre dukkha, como uma das três características comuns, focam nas desvantagens daquilo que a mente toma como alimento. Algumas vezes, ela se agarra a um total sofrimento. Ela se apega ao corpo mesmo quando alquebrado pela dor. Ela se apega às suas preferências e relacionamentos mesmo quando eles trazem angústia, dor e desespero. Algumas vezes, a mente se agarra a prazeres e alegrias, mas prazeres e alegrias se tornam cheios de estresse quando eles se deterioram e mudam. Tudo aquilo a que a mente se agarra, em qualquer situação, é condicionado devido a sua própria natureza, e existe sempre, pelo menos, um nível sutil de estresse inerente para manter esse condicionamento em constante movimento. Isso se aplica não somente às condições externas mais grosseiras, mas mesmo aos níveis mais sutis de concentração na mente.
Quando vemos o estresse como uma característica comum a todas as coisas às quais nos agarramos, isso ajuda a dissipar a sua sedução. Os prazeres começam a dar a impressão de vazios e falsos. Mesmo nossos sofrimentos – os quais quase sempre podemos encher de glamour com um orgulho perverso – começam a parecer banais quando reduzidos à sua característica de estresse. Isso ajuda a colocá-los no seu tamanho exato.
É claro, algumas pessoas se opõem à idéia de considerar dukkha como inerente à comida da mente, fundamentados em que essa consideração não faz justiça às muitas alegrias e satisfações da vida. O Buda, entretanto, nunca negou a existência do prazer. Ele simplesmente mostrou que se você focar na sedução da sua comida, você nunca será capaz de superar seus vícios alimentares. Seria como pedir a um alcoólatra que ponderasse sobre as sutilezas aromáticas do uísque e do vinho.
Dukkha é inerente não somente às coisas com as quais nos alimentamos, mas também ao ato de se alimentar em si. E este é o ponto central dos ensinamentos do Buda sobre dukkha como uma nobre verdade. Se temos que nos alimentar, nós somos escravos do nosso apetite. E podemos confiar em nós mesmos, quanto a comportarmo-nos de maneira honrada, quando as exigências desses desejos que escravizam não forem atendidas? Comer uns aos outros nem sempre é uma idéia agradável. Ao mesmo tempo, enquanto precisarmos nos alimentar seremos presas de todas as incertezas em relação às nossas fontes de alimento, à mercê de qualquer pessoa ou força com poder sobre elas. Se não podemos ficar sem ele, nós estamos acorrentados a ele. A mente não é livre para ir aonde não há comida. E, como o Buda garante, aqueles são exatamente os lugares – muito além do nosso horizonte mental comum – onde se encontra a maior felicidade.
O propósito dessas duas considerações – sobre o estresse inerente a ambos, o alimento da mente e como ela se alimenta – é de nos sensibilizar para limitações que de qualquer forma aceitamos, algumas vezes com tranqüilidade, mas sempre cegamente e sem pensar. Uma vez que finalmente compreendamos que ela não vale o preço que nos impõe, perdemos toda a paixão pelo nosso desejo de alimentação. E, ao contrário do corpo, a mente pode alcançar um nível de força em que não mais necessitará apegar-se ou alimentar-se, nem mesmo do caminho da prática. Quando ela se torna forte o suficiente na convicção, energia, atenção plena, concentração e sabedoria, ela poderá se abrir para uma dimensão – imortal – onde não existe nem alimentação e nem o ser alimentado. Isto põe um fim ao “processo alimentar” e não existe mais o sofrimento no que se refere à comida. Em outras palavras, uma vez que penetremos completamente o imortal, dukkha como uma das três características comuns não será mais um problema; dukkha como uma nobre verdade não mais existirá.
É quando você descobre algo inesperado: as montanhas que você vem tentando levantar são todas um subproduto da sua alimentação. Quando você parar de se alimentar, não haverá a formação de novas montanhas. Embora ainda possam existir algumas montanhas restantes de carmas passados ao seu redor, elas finalmente desaparecerão, mas nenhuma montanha nova aparecerá no lugar delas. Nesse meio tempo, o peso delas não será mais um problema. Uma vez que você, finalmente, pare de tentar levantá-las, não haverá nada que o detenha.
Veja também o SN XII.63 – Puttamansa Sutta
Revisado: 15 Abril 2005
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