Origem Dependente

Por

Christina Feldman

Somente para distribuição gratuita.
Este trabalho pode ser impresso para distribuição gratuita.
Este trabalho pode ser re-formatado e distribuído para uso em computadores e redes de computadores
contanto que nenhum custo seja cobrado pela distribuição ou uso.
De outra forma todos os direitos estão reservados.

 


 

Nos ensinamentos do Buda, a segunda nobre verdade não é uma teoria sobre aquilo que acontece com as outras pessoas, mas descreve um processo que se repete continuamente nas nossas próprias vidas – todos os dias e incontáveis vezes ao longo de cada dia. Esse processo em Pali é chamado de paticca-samuppada, traduzido como 'origem dependente' ou 'origem co-dependente' ou 'interdependência causal'.

Às vezes se costuma dizer que o processo de origem dependente é o núcleo ou a essência de todos os ensinamentos Budistas. Aquilo que é descrito no processo é a forma como o sofrimento surge nas nossas vidas e a forma como ele pode ter fim. Essa segunda parte é na verdade bem importante.

Diz-se que paticca-samuppada é o núcleo do entendimento correto. É o entendimento que é também o início do caminho óctuplo ou o entendimento que dá origem a uma vida de sabedoria e liberdade. O Buda disse que quando um nobre discípulo vê de forma completa o surgimento e a cessação do mundo ele, ou ela, está dotado do entendimento perfeito, da visão perfeita - ele conquistou o verdadeiro dhamma, possui o conhecimento e a habilidade, entrou na correnteza do dhamma, é um nobre discípulo pleno com o conhecimento purificado - alguém que está no limiar do imortal. Portanto, esse é o nosso desafio.

Aquilo que o paticca-samuppada descreve é na verdade uma visão da vida ou o entendimento através do qual podemos ver a forma pela qual tudo está inter-conectado - que não existe nada separado, nada que seja independente. Tudo tem efeito sobre tudo. Nós somos parte desse sistema. Nós somos parte desse processo de origem dependente - relações causais afetadas por tudo aquilo que acontece à nossa volta e como conseqüência afetando a qualidade do mundo em que todos vivemos, internamente e externamente.

Também é importante compreender que a liberdade não existe separada desse processo. Não é uma questão de transcender esse processo para encontrar alguma outra dimensão; a liberdade é encontrada nesse mesmo processo do qual somos parte. E parte desse processo de compreender o que significa ser livre depende de entender a interconexão e de usar esse mesmo processo para o Despertar.

Sob a perspectiva da doutrina, existem duas formas através das quais o processo de paticca-samuppada pode ser abordado. Por um lado se considera que é um processo que ocorre ao longo de três vidas e essa abordagem conduz aos aspectos de renascimento e kamma. Minha abordagem hoje é a segunda opção, que penso ser realmente crucial e presente, que encara paticca-samuppada como uma forma de entender o que acontece no nosso próprio mundo, internamente e externamente numa perspectiva de momento a momento. Trata-se daquilo que está acontecendo nos nossos corações, do que está acontecendo na nossa consciência e como é na verdade criado a cada momento o mundo que experimentamos e vivemos.

Para mim, a importância dessa descrição toda é que se compreendermos a forma como o nosso mundo é criado, poderemos então nos tornar um participante consciente nessa criação. É a descrição de um processo que ocorre sucessivamente, rapidamente, dentro da nossa consciência. A esta hora do dia, vocês provavelmente já passaram por ciclos incontáveis de origem dependente. Talvez vocês tenham tido um momento de desespero devido ao que lhes foi servido como café da manhã ou algo que tenha ocorrido no percurso até aqui, uma tempestade mental por algo que tenha acontecido ontem, algum tipo de expectativa por aquilo que possa acontecer hoje - momentos incontáveis nos quais vocês eexperimentaram oo surgimento de um mundo interior: eu gosto disso; eu não gosto disso; o mundo é assim; é assim como aconteceu; eu sinto isso; eu penso isso.

Já bem cedo, pela manhã, poderíamos identificar ciclos incontáveis desse processo de paticca-samuppada - quando estivemos exaltados, tristes, auto-conscientes, temerosos - estivemos girando a roda. E, é importante entender isto como uma roda, como um processo. Não se trata de algo estático ou fixo, não é algo que permanece imutável. Vocês precisam visualizar isto como algo vivo e em movimento, vejamos como isso acontece.

O princípio básico da origem dependente é a própria simplicidade. O Buda o descreveu dizendo:

Quando existe isso, aquilo existe,

Com o surgimento disso, aquilo surge.

Quando não existe isso, aquilo também não existe.

Com a cessação disto, aquilo cessa.

Quando todos os ciclos de sentimentos, pensamentos, sensações corporais, mente e corpo, ação e movimento estão ocorrendo fundamentados na ignorância - a isto se denomina samsara. Aquela sensação de perambular confuso ou cego de uma experiência para outra, de um estado de reação para outro, de um estado de contração para outro, sem saber o que está acontecendo, isso é samsara..

Também ajuda, eu creio, ver que esse processo de origem dependente ocorre não somente dentro da nossa consciência individual, mas também em uma escala muito maior e em um nível mais coletivo - social, político e cultural. Através de opiniões compartidas, idéias compartidas, percepções ou reações compartidas, grupos ou comunidades de pessoas podem girar a mesma roda por longos períodos de tempo. Exemplos de girar a roda coletivamente são o racismo e o sexismo ou a hierarquia entre os seres humanos e a natureza, sistemas políticos em conflito, guerras - todas as coisas em relação às quais comunidades ou grupos de pessoas compartem as mesmas delusões. Portanto a compreensão da origem dependente pode ser transformativa não somente no nível individual, mas é a compreensão da interconexão que pode também ser verdadeiramente transformadora num nível global ou universal. Ela auxilia a dissipar a delusão e auxilia a dissipar a noção de contração e de separação.

Na sua apresentação clássica, o processo de origem dependente é composto de doze elos. É importante compreender que esta não é uma apresentação linear, progressiva ou sequencial. É um processo que está sempre em movimento não sendo estático em nada. Também não é determinista. Também não creio que um elo determine o surgimento do seguinte. Mas, particularmente, a presença de certos fatores ou de alguns desses elos juntos proporcionam as condições através das quais os demais elos possam se manifestar, e isto irá se tornar mais claro quando usarmos algumas analogias para descrever como essa interação funciona.

De certa forma é parecido com uma nevasca - a conjunção de uma certa temperatura, um certo nível de precipitação, uma certa quantidade de vento, criam uma tempestade de neve. Ou é como escrever um livro: o escritor precisa de uma idéia, de uma caneta, papel e da habilidade para escrever. Não é necessariamente certo que primeiro preciso disto e depois preciso daquilo em uma ordem seqüencial mas, que de forma mais exata, a conjunção de certas causas e condições favorecem que esse fenômeno ou experiência em particular possa nascer.

Também será benéfico considerar alguns dos efeitos da compreensão de paticca-samuppada. Um dos efeitos é que nos auxilia a compreender que nem o nosso mundo interno, nem o nosso mundo externo são uma série de acidentes sem propósito. As coisas não acontecem simplesmente. Existe uma combinação de causas e condições que são necessárias para que as coisas aconteçam. Isso é realmente importante sob a perspectiva da nossa experiência interior. Não é incomum ter a experiência de chegar em algum lugar sem saber como é que chegamos até ali. E de se sentir impotente devido à confusão presente naquela situação. Compreendendo como as coisas se juntam, como elas interagem, remove essa noção de impotência ou desamparo ou a noção de ser uma vítima da vida. Porque se compreendermos como as coisas interagem, poderemos também começar a entender como sair desse processo, como encontrar uma outra forma de ser e compreender que a vida não é um caos aleatório.

Um outro efeito de compreender causas e condições é de aceitar a possibilidade de mudança. E com essa aceitação vem uma outra compreensão - de que com sabedoria temos a capacidade para criar condições benéficas e úteis para resultados benéficos e úteis. E esse é o caminho - a compreensão de que temos a capacidade de fazer escolhas nas nossas vidas que conduzem à felicidade, que conduzem à liberdade e ao bem estar, ao invés de sentir que somos empurrados pelo poder da confusão ou pelo poder do nosso entendimento incorreto. Essa compreensão ajuda a aliviar a sensação de separação e isolamento e reduz a delusão.

Com freqüência, o ponto conveniente para começar, de forma a obter alguma familiaridade com o processo de origem dependente, é com o primeiro elo da ignorância. Isso não necessariamente quer dizer que a ignorância é a primeira causa de tudo mas que é um ponto conveniente para começar.

Com a ignorância como condição causal, surgem as formações ou impulsos volitivos. Com as formações como condição causal, ocorre o surgimento da consciência. Com a consciência como condição, ocorre o surgimento da mentalidade-materialidade (nome e forma) (nama-rupa). Com a mentalidade-materialidade (nome e forma) como condição, ocorre o surgimento das seis portas dos meios dos sentidos, ou bases internas, (nos ensinamentos Budistas a mente também é uma das portas dos meios dos sentidos bem como a visão, audição, olfato, paladar e sensação táctil). Com as seis portas dos meios dos sentidos como condição, ocorre o surgimento do contato. Com o contato como condição, ocorre o surgimento da sensação. Com a sensação como condição, ocorre o surgimento do desejo. Com o desejo como condição, ocorre o surgimento do apego. Com o apego como condição, ocorre o surgimento do nascimento. E com o nascimento como condição, ocorre o surgimento do envelhecimento e morte. Isso descreve os elos.

Esse processo, quando revertido, também é descrito como o processo de Libertação. Com o abandono da ignorância, ocorre a cessação das formações cármicas. Com a cessação das formações cármicas, ocorre a cessação da consciência e assim por diante.

Ignorância (avijja)

A ignorância é usada nos ensinamentos Budistas de uma forma bastante diferente daquela usada na nossa cultura. Não é um insulto ou uma ausência de conhecimento - não quer dizer que sejamos estúpidos. No entanto, a ignorância pode estar profundamente enraizada na nossa consciência. Ela pode ser invisível e no entanto pode estar exercendo a sua influência em todas as formas como pensamos, percebemos e respondemos. A ignorância com freqüência é descrita como uma espécie de cegueira, de não ter consciência daquilo que nos move momento a momento nas nossas vidas. Às vezes é descrita como perceber o insatisfatório como satisfatório ou crer que o impermanente é permanente - essa não é uma experiência incomum. A ignorância em certas ocasiões toma aquilo que não é bonito como sendo bonito, uma causa para o apego. Às vezes é definida como crer na idéia do eu como sendo uma entidade duradoura e sólida, sendo que tal coisa não pode ser encontrada. Ou não ver as coisas como elas realmente são, mas vendo a vida, nós mesmos, outras pessoas, através de um véu de crenças, opiniões, gostos, desgostos, projeções, apegos, etc., etc. A ignorância matiza o tipo de linguagem, pensamentos ou ações que praticamos.

Formações (sankhara)

A ignorância é a condição causal ou clima que favorece o surgimento de certos tipos de sankharas - impulsos volitivos ou formações. Em um sentido mais amplo nós todos somos formações; somos todos sankharas. Tudo que nasce e é criado a partir de condições é uma formação. A origem dependente é um pouco mais específica: fala de ações intencionais como formações do corpo, linguagem intencional como formações do corpo e mente e pensamentos ou estados mentais como formações mentais. Como tal, é a descrição da organização ou desenho do nosso processo de pensamento de acordo com os hábitos acumulados, preferências e opiniões. Os sankharas adicionam combustível ao movimento da roda. Dentro de um determinado ciclo eles interagem e se multiplicam. Também existe uma constante interação entre o interno e o externo, através do qual todo o ciclo é perpetuado. Algumas formações surgem espontaneamente no momento e algumas são formas de ver ou formas de reagir que foram acumuladas ao longo de toda nossa vida. Devido ao seu uso repetitivo, esses sankharas se tornam de certa forma trancados ou investidos na nossa estrutura de personalidade e permanecem próximos à superfície como um jeito automático ou habitual de resposta. No entanto é importante entender que cada sankhara é na verdade novo a cada momento. Eles surgem através do contato, através de certos tipos de estímulo. Tendemos a pensar neles como habituais ou sempre presentes devido à forma como nos agarramos a eles como se fossem algo sólido. Mas no nosso encontro com eles no momento presente, eles não nos são apresentados como história ou como algo que ali está para sempre.

Consciência (viññana)

As formações condicionam o surgimento da consciência. O termo consciência é usado no sentido de tomar conhecimento de todas as sensações que entram através das portas dos meios dos sentidos. Portanto existe a consciência da visão, da audição, do olfato, do paladar, do toque e do pensamento. A cada momento, uma ou outra dessas consciências das portas dos meios dos sentidos domina a nossa experiência. A consciência também descreve o clima básico da mente em um momento em particular - a forma como ela está configurada ou matizada. Portantto, um determinado momento em particular pode ser caracterizado por exemplo pela aversão, embotamento ou cobiça, embora sem interesse ou intenção alguns desses matizes da consciência poderão não ser notados. A consciência também é interativa: ela não somente é configurada pelas formações e pela ignorância como também configura tudo que ocorre ao nosso redor – independentemente de lhe darmos atenção ou não.

Mentalidade-materialidade (nome e forma) (nama-rupa)

A consciência dá origem a nama-rupa, que com freqüência é traduzido como mentalidade-materialidade (nome e forma), apesar disso ser um pouco simplista demais. Rupa, ou materialidade (forma), descreve não somente o nosso corpo mas todos os demais corpos e todas as formas de materialidade (forma). Nama, ou mentalidade (nome), descreve as sensações, as percepções, as intenções, o contato e o tipo de atenção que damos àquilo que aparece no nosso campo de atenção. Portanto nama descreve o movimento completo da mente com todos os seus componentes em relação à materialidade (forma). É assim como funciona: existe o surgimento de rupa e em seguida nama cria conceitos ou atitudes a seu respeito. O tipo de relacionamento que temos com qualquer forma material, incluindo o nosso próprio corpo, é moldado por aquilo que está ocorrendo na nossa mente, quer estejamos conscientes disso ou não. Portanto o estado da mente e do nosso corpo, esse nama-rupa, está sempre mudando, sempre se movendo, nunca permanecendo o mesmo. Consciência e a mentalidade-materialidade (nome e forma) são sempre interdependentes, com a consciência liderando a mentalidade-materialidade (nome e forma) a que funcione de um certo modo. Se a consciência surgiu matizada pela raiva ou pela cobiça, pela depressão, pela ansiedade - ou o quer que seja - ela provê as condições para que a mentalidade-materialidade (nome e forma) se organize de uma forma especial.

Todos os eventos que ocorreram até este momento nesses elos de ignorância, formações cármicas, consciência e a mentalidade-materialidade (nome e forma) - são na verdade os passos mais importantes na geração de kamma. Esses impulsos volitivos - aquilo que está ocorrendo na mentalidade-materialidade (nome e forma) - são na verdade a geração de kamma.

Seis portas dos meios dos sentidos ou bases internas (salayatana)

Passemos do corpo e mente para as seis portas dos meios dos sentidos ou seis esferas dos sentidos pois esse é o organismo psíquico-físico que nos proporciona a capacidade de ver, ouvir, cheirar, saborear, tocar e pensar. Um dos entendimentos mais profundos que podemos ter é reconhecer que a mente é uma das esferas dos sentidos. Os pensamentos, imagens e percepções que surgem e desaparecem na mente não são fundamentalmente distintos dos sons ou sensações corporais que vêm e vão na esfera dos sentidos. Podemos às vezes ter a impressão de que a mente é constante ou que está sempre "a serviço", mas uma exploração um pouco mais profunda do que acontece dentro da mente irá na verdade dispersar essa percepção.

Contato (phassa)

Quando as portas dos meios dos sentidos estão funcionando, surge o contato. Contato é o encontro entre a porta do sentido e a informação sensual - a campainha toca, surge a audição. Você cheira a comida cozinhando no fogão, o cheiro surge através da porta do sentido do nariz. O surgimento sempre envolve a conjunção da porta do sentido, o objeto do sentido e a consciência - os três elementos juntos constituem o contato. O Buda certa vez disse que com esse contato surge o mundo e com a cessação do contato ocorre a cessação do mundo. Essa afirmação confirma até que ponto criamos o nosso mundo de experiências destacando seletivamente os dados dos sentidos. Cada momento de contato envolve isolar uma impressão do amplo fluxo de impressões que se nos apresentam a cada momento, enquanto estamos aqui sentados. O contato ocorre quando algo salta do fundo e se coloca à nossa frente. Quando lhe damos atenção existe o encontro entre o objeto, a consciência e a porta do sentido. Isso é contato.

Sensação (vedana)

Contato é o fundamento ou condição para o surgimento da sensação. Ao falar de sensação não estamos falando de emoções mais complexas tal como a raiva ou o ciúme ou medo ou ansiedade, mas do nível fundamental do impacto da sensação que é a base não somente das emoções mas de todos os estados mentais e reações. Estamos falando da sensação agradável que surge em conexão com aquilo que vem através de qualquer uma das portas dos meios dos sentidos; ou da sensação desagradável, ou daquelas sensações que não são nem agradáveis nem desagradáveis. Isso não quer dizer que elas sejam "neutras", no sentido de algum tipo de nada. Alguma sensação está presente, mas ela não é suficientemente forte para evocar uma resposta a uma sensação agradável ou desagradável. Na verdade as impressões e sensações que não são nem agradáveis nem desagradáveis são alguns dos dados mais interessantes recebidos pelo nosso sistema.

É importante reconhecer que os elos de contato, portas dos meios dos sentidos e sensação que estivemos descrevendo não são nem benéficos nem prejudiciais em si e por si mesmos; mas eles são os catalisadores do que ocorre a seguir. As portas dos meios dos sentidos, as sensações e o contato são os precursores de como reagimos ou respondemos e como começamos a tecer uma história pessoal dos eventos e impressões que todos nós experimentamos todo o tempo. Dessa forma, o contato, a sensação e as portas dos meios dos sentidos são pontos bem importantes que merecem a nossa atenção.

Desejo (tanha)

De onde vem o desejo? Da nossa relação com a sensação; a sensação é a condição para o desejo. Esse desejo às vezes é interpretado como "sede insaciável", ou um tipo de apetite que nunca é satisfeito. O desejo tem início com o movimento para a busca e manutenção dos contatos com os objetos sensuais que causam prazer e para evitar ou dar um fim àqueles que são desagradáveis. É o desejo de ter ou obter, o desejo de ser ou se tornar alguém ou algo e o desejo de eliminar ou dar um fim em algo.

As sensações ou impressões agradáveis são seqüestradas pela tendência ao desejo subjacente; e as sensações desagradáveis são seqüestradas pela aversão. E quando uma sensação é sentida nem como agradável, nem como desagradável ela também é seqüestrada, neste caso pela tendência deludida de dispensá-la da nossa consciência dizendo que ela não é importante. A nossa noção de eu encontra muita dificuldade em se identificar com uma impressão ou sensação que seja nem agradável nem desagradável.

É no ponto em que o desejo surge, como resposta a uma sensação agradável ou desagradável, que as nossas respostas se tornam bastante complexas e enfrentamos um conflito intenso. Quando desejamos algo, nós, de certa forma, delegamos autoridade para um objeto, para uma experiência ou para uma pessoa e ao mesmo tempo estamos nos privando daquela autoridade. Como resultado, a nossa sensação de bem estar, a nossa sensação de contentamento ou liberdade passa a depender daquilo que obtivermos ou não obtivermos. Vocês todos conhecem esse tipo de apetite ansioso - nada é o bastante; apenas uma coisa maais é necessáriaa; uma experiência mais, um estado mental mais, um objeto mais, uma emoção mais e então serei feliz.

O que nem sempre compreendemos quando estamos absorvidos pela ignorância é que a forma como tais esperanças são projetadas, exteriorizadas ou transformadas em objetos é na verdade algo que sempre nos deixa com uma sensação de frustração. Estamos lidando aqui com uma sede extremamente básica e permitimos que o nosso mundo seja organizado de acordo com esse desejo ao projetarmos em outros o poder para gerar o prazer ou o desprazer. Porém, a coisa importante a ser lembrada é que o desejo também é um tipo de experiência momento a momento; ele surge e desaparece.

Apego (upàdàna)

Desejo e apego (também interpretado como agarrar-se), estão muito próximos. O desejo possui um certo momento, uma certa direção em um só sentido e quando se intensifica bastante se transforma em apego. Agora, uma maneira do desejo se tornar apego é quando posições muito rígidas são assumidas; as coisas se tornam boas ou ruins; elas se tornam dignas ou não dignas; elas possuem valor ou nenhum valor. E o mundo passa a ser organizado em amigos e inimigos, entre oponentes e aliados de acordo com aquilo a que nos apegamos ou aquilo a que nos agarramos ou seguramos. Essa rigidez reforça e solidifica os valores que projetamos nas nossas experiências ou objetos. Mas ela também reforça crenças e opiniões e essa faculdade do apego se agarra à idéia de um eu. "Eu sou assim." "Eu preciso disto." "Eu preciso me livrar disso" e assim por diante. E, com freqüência, muitas coisas no mundo são avaliadas de acordo com o seu potencial percebido de satisfazer os nossos desejos. Isso tudo faz com que estejamos sempre muito ocupados. Pense em situações em que você realmente deseja algo, quanta atividade começa a ser gerada em termos de pensar e esboçar, planejar e traçar a estratégia: ou seja, o caminho mais rápido de ir daqui até ali, o método mais eficaz para que isto aconteça.

Tradicionalmente, o apego é subdividido em quatro formas através das quais podemos nos causar sofrimento. Existe o apego à sensualidade ou objetos sensuais. O outro lado do apego a objetos sensuais é o apego a idéias, teorias, opiniões, crenças e filosofias - elas se tornam parte de nós. Uma outra forma de apego é fixar-se em certas regras (preceitos e rituais) - a crença de que se eu fizer isto, obtenho aquilo. Ou alguém diz, "este é o meu caminho. Isto me conduzirá daqui até lá." A última forma de apego sobre a qual o Buda falou foi o apego à noção do "eu sou" - o desejo de ser alguém e o desejo de não ser alguém, ambos estão na dependência do apego à idéia e ao ideal de um eu. Essa noção de um eu é talvez a delusão mais importante nas nossas vidas.

Vir a ser (bhava)

O apego é seguido pelo ser/existir ou surgimento - o processo de fixar ou posicionar a noção de um eu num estado ou experiência em particular. Todas as vezes em que pensamos tomando o eu como referência, "Eu sou," "Eu estou com raiva," "Eu estou amando," "Eu tenho desejo," "Eu sei," "Eu sou esse tipo de pessoa" e assim por diante, todo um complexo comportamental é gerado para atender o desejo e o apego. Eu vejo algo ali que projetei como "isso realmente me fará muito feliz se puder consegui-lo" e disponho meu comportamento, minhas ações e a minha atenção de forma a poder me unir com aquilo. Esse é o processo de ser/existir - ser alguém ou algo distinto daquilo que realmente é.

Nascimento (jàti)

Nascimento, o próximo elo na cadeia de origem dependente, é o momento da chegada. Nós pensamos "Creio que consegui!" "Eu a obtive (a união com a imagem ou papel ou identidade ou sensação ou objeto)," "Agora eu sou isso" - o emergir de uma identidade, a sensaçãão de um eu que se apóia sobre a identificação com uma experiência ou modo de conduta, com aquele que faz, aquele que pensa, aquele que vê, aquele que sabe, aquele que experimenta, aquele que sofre - isso é o nascimento. E existe uma sensação resultante desse nascimento, daquele que desfruta, daquele que sofre, daquele que se ocupa, daquele que tem toda a responsabilidade por esse nascimento.

Envelhecimento e Morte (jarà-marana)

O nascimento é seguido pela morte na qual existe a noção de perda, mudança, a extinção daquela experiência. "Eu era feliz," "Eu era bem sucedido," "Eu estava satisfeito" e assim por diante. A extinção daquela experiência, a sensação de ser privado ou separado daquela identidade, "Eu era…" é o momento da morte. Nesse momento da morte sentimos a perda de uma boa experiência de meditação, uma boa experiência emocional. Dizemos que se foi. E associado a essa sensação está a dor e a angústia, o desespero pela nossa perda.

Esses fatores distintos interagem para criar certos tipos de experiência nas nossas vidas. O que é importante lembrar é que nada disso é predeterminado. Da mesma forma como as condições climáticas para uma nevasca, a presença de alguns desses elos irá permitir que outras experiências ocorram. Não que elas devam ocorrer ou que definitivamente irão ocorrer, mas eles favorecem que certas experiências ocorram. Isso pode soar como uma má notícia no início, mas as boas notícias vêm mais tarde.

A segunda nobre verdade da origem dependente descreve um processo que ocorre a cada momento nas nossas vidas. Mas claramente existe uma diferença entre um processo e um caminho, e essa é uma distinção absolutamente crítica. As pessoas não querem seguir vivendo apenas como espectadoras, observando a repetição indefinida do mesmo processo - assistindo aos seus próprios desastres.A atenção plena é na verdade mais do que simplesmente ver a ocorrência de um processo. Ao optar por ser plenamente atento, realizamos um salto que na verdade significa desenvolver um caminho nas nossas vidas, de outra forma a mera visão do processo se torna circular e continuaremos dando voltas. O caminho é o que nos conduz a um processo distinto.

Agora, a terceira nobre verdade (a cessação do sofrimento) não é um julgamento de valor em si mesma; é simplesmente a descrição da forma segundo a qual é possível abandonar a sensação de estar aprisionado a essa roda do samsara ou aos elos da origem dependente. É importante lembrar que não precisa ser um elo em particular, ou mesmo um lugar especial onde poderemos escapar desse labirinto. Na verdade, podemos escapar desse ciclo em qualquer um dos elos.

O conhecido mestre de meditação tailandês Buddhadasa Bhikkhu descreve o caminho que extingue o sofrimento como a "roda radiante". Também é chamado de a roda do entendimento ou a roda do despertar, na qual o combustível da cobiça, raiva e delusão, que nos dá a sensação de estarmos aprisionados ao ciclo de samsara, é substituído pelo combustível da reflexão sábia, virtude e confiança.

Uma descrição da roda alternativa é que a reflexão sábia, virtude e confiança conduzem à satisfação do coração e da mente, a ausência do estado de contração e proliferação. A satisfação em si mesma é uma condição para o êxtase, um 'apaixonar-se' pela atenção plena. O êxtase é uma condição para a tranqüilidade e a tranqüilidade, uma condição para a felicidade. A felicidade é uma condição para a concentração; a concentração, uma condição para o insight; o insight é uma condição para o desencantamento ou desapego e o desapego, uma condição para a equanimidade, a capacidade de separar a noção de um eu das experiências, de forma que uma experiência seja apenas uma experiência, ao invés de ser matizada por um "Eu sou" proveniente de um ego. E a equanimidade é a condição para a libertação e o fim do sofrimento.

 


 

Nota:

Veja também o Sammaditthi Sutta – MN 9; o Nidana Sutta – DN 15; e os suttas do Samyutta Nikaya - XII. Nidana-samyutta

Este texto é um extrato de um curso oferecido por Christina Feldman no Barre Center for Buddhist Studies em Outubro de 1998.

 

 

Revisado: 4 Setembro 2004

Copyright © 2000 - 2021, Acesso ao Insight - Michael Beisert: editor, Flavio Maia: designer.