“Espiritualidade” Versus “Religião”
Por
Huston Smith
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Estou preocupado com a
ligação entre “espiritualidade” e “religião” e a maneira como esses termos
estão sendo usados, porque tem se tornado cada vez mais comum que o termo
espiritualidade indiretamente desabone o termo religião. As pessoas costumavam
fazer uma distinção entre religião e instituições religiosas e essa é uma
distinção válida. Mas, aí apareceu a
espiritualidade e tudo que era espiritual passou a ser importante e bom, e tudo
que estava relacionado com religião passou a ser considerado mau. Religião se tornou igual a dogmatismo e moralismo. É claro, existem
problemas institucionais com as religiões. Não existe uma única instituição que
não tenha um lado ruim. Você prescindiria dos estudos devido aos problemas
institucionais das universidades? Eu nasci um Metodista e passei a minha vida
mergulhado no Cristianismo, não apenas conceitualmente, mas de forma
experiencial, tão profundamente quanto me foi possível. As instituições Cristãs
têm cometido todos os tipos de pecados.
Mas, você não pode rotular a espiritualidade com nenhum pecado porque ela não é
um objeto, é uma virtude interna, um estado interior. Por isso a religião ficou
muito prejudicada e nos meios acadêmicos, onde tenho vivido toda a minha vida,
ela é tratada de maneira muito dura.
Não existe nenhuma dúvida
na minha mente quanto ao fato do Budismo ser uma religião. E na verdade, o Budismo tem, eu creio,
provavelmente a melhor atuação no campo social entre todas as grandes
religiões. É claro, neste exato momento certos monges no Sri Lanka se tornaram
pequenos líderes militantes agressivos. Mas olhando para a história como um
todo, vemos relativamente poucos exemplos onde os ensinamentos budistas foram
usados para justificar uma ação violenta. Existem exceções, mas no geral, não
muitas.
Agora o Budismo está se
encontrando com a secularização. A América, hoje em dia, e a Europa Ocidental
também, são as sociedades mais secularizadas que a história já experienciou. E
resta-nos ver se uma sociedade assim tão secularizada pode durar. Penso que a
sociedade resistirá, mas gradualmente irá regredir da sua posição de
secularização. E aqui é onde a espiritualidade desempenha um papel muito
importante. Por exemplo, Steven Pinker, chefe do programa de Ciência Cognitiva
na MIT, e Richard Dawkins se associaram para dar grandes palestras, sucesso de
bilheteria, em Londres e Paris – e aconteceu que as pessoas estavam mesmo
vendendo os ingressos no câmbio negro! E o título era, “A Ciência está matando
o Espírito?” Até mesmo aquelas pessoas aceitaram a palavra “espírito”, porque ela agrega em si mesma
apenas significados positivos. Por essa razão pode ser usada para fins
positivos, porque a espiritualidade pode penetrar a cultura com sutileza, com
menos escrutínio e fricção do que qualquer nova religião. Mas não é necessário
ganhar terreno humilhando a religião.
Nos estudos de religião
como um todo, o Budismo é um caso especial porque o Buda mesmo não tinha um
deus pessoal. Parece bastante claro que Gotama sentiu que essa noção de um deus
pessoal tinha se tornado uma muleta no Hinduísmo. Então ele colocou esse assunto
de lado e isto deixou a sua marca. Mas exatamente esse aspecto é o que apela
para os interesses “espirituais”. As pessoas sentem que elas não têm que se
comprometer com um deus pessoal. Mas, certamente o Budismo é um caminho
rigoroso que exige muito dos seus praticantes. A renúncia, dentro de um
contexto monástico ou num contexto secular, está no coração dessa religião
exatamente como nas outras. Quando as pessoas escolhem a definição de Budismo
como sendo “espiritual” e não como “religião”, a opinião delas tende a
acompanhar uma atitude que diz, “Não me diga o que fazer”.
A
América não é somente a sociedade mais secular do mundo, é também a mais
individualista. Para muitos Budistas americanos a afirmação favorita do Buda é,
“Seja uma luz para você mesmo”. Agora, na realidade, você encontra essa mesma
coisa por todo o Cristianismo – “Procure e você encontrará”, e etc. Mas no Budismo, na ausência da figura de um
deus, isso pode se tornar uma licença para fazer aquilo que você quiser e ainda
assim chamar isso de Budismo. No entanto, o Budismo em si não apóia isso. Todas
as religiões, incluindo o Budismo, têm princípios estruturados e indicadores
comprovados para ajudar a guiar-nos através das nossas vidas. E se você se
compromete com o Budismo e não segue esses indicadores, bem, então você está por conta do Santo Ego, separando e
escolhendo coisas que o satisfaçam. Isso não é Budismo.
Uma
alternativa para isso é encontrar um mestre. Um mestre faz com que o seu
discípulo vá além de simplesmente escolher apenas aquilo que apele para o seu
próprio ego. É claro, nos últimos vinte anos temos visto abusos de poder por
parte de gurus. Este é o lado desvantajoso. O lado positivo é que nós
precisamos de exemplos. As crianças necessitam
de exemplos e na vida espiritual nós somos todos crianças. Mas como você sabe
quando é que você deve ficar por sua própria conta? Ou quando você se dá conta que: estou na presença de alguém
que está numa posição superior na vida e tenho algo que aprender com ela.
Existem pessoas que já foram mais adiante do que nós, e colocar a nossa vida
dentro do molde de tais pessoas pode ser muito construtivo. Mas quando é que
deveríamos colocar a ênfase num pé ou no outro? Não existe uma fórmula.
Em
breve estarei com Sua Santidade o Dalai Lama. Ele é o meu guru e isso significa
que não vou desafiá-lo. Mas estou preocupado com algo que ele disse
recentemente, “nós precisamos de uma religião de bondade. Bondade é a minha
religião”. Além disso, ele acrescentou que a religião cria diferenças e
divisões. Isso tudo é verdade, é claro, e também é verdade que ele ocupa uma
posição especial na história, fazendo com que as suas palavras ecoem e
repercutam nas mentes e corações das pessoas. Mas eu receio que essa concepção
favoreça a tendência do próprio ego, orientada para fazer sempre aquilo que se
tem vontade e também alimente o descrédito atribuído à religião.
Esses
são tempos muito interessantes, com um grande potencial, de muitas formas. É
possível que já tenhamos começado a trabalhar a nossa saída da nossa excessiva
secularidade. Parece que estamos percebendo que o materialismo, a secularidade,
o reducionismo e o consumismo são premissas inadequadas sobre as quais basear
nossas vidas – que eles esvaziam a maravilha e o mistério da nossa vida e a
nossa experiência e que são um beco sem saída. O Budismo vem contribuindo para
isso, carregando a força de uma religião muito antiga. A “espiritualidade” não
pode conseguir poder de tração dentro da história do mesmo modo que as
religiões – receptáculos espirituais, se você preferir – podem. Essa é a razão,
apesar de todos os seus pecados, das igrejas cristãs terem sido capazes de
desempenhar papéis cruciais, digamos, dentro do movimento pelos direitos
humanos ou de manterem as tropas dos Estados Unidos fora da Guatemala e El
Salvador.
Um
dos papéis importantes que o Budismo tem desempenhado no Ocidente é que o
Ocidente tomou os aspectos esotéricos ou místicos do Budismo de dentro dos
monastérios e os colocou disponíveis para os leigos. Isso ajudou a revitalizar
o interesse pelos aspectos místicos do Cristianismo e do Judaísmo. Em alguns
casos, isso favoreceu o retorno de práticas contemplativas que tinham caído no
esquecimento naquelas religiões. Todos os místicos falam a mesma linguagem.
Eles se entendem. O Budismo trouxe uma nova vida às religiões Abraâmicas e isso
tem sido uma contribuição admirável.
Nota: Este texto foi
publicado na revista Tricycle – The Buddhist Review (www.tricycle.com) na edição Outono
2001.
A tradução para o Português
foi feita mediante autorização expressa do editor.
Revisado: 9 Março 2002
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