A Perspectiva da Floresta

Por

Ajaan Amaro

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Freqüentemente quando estou em contato com os ensinamentos Dzogchen, sinto uma estranha sensação de ouvir os ecos e ver as imagens dos meus próprios mestres, Ajaan Chah e Ajaan Sumedho. Não só pela maneira como esses ensinamentos descrevem princípios com os quais estou familiarizado, mas até pelo uso das mesmas analogias e frases. Quando essa semelhança surgiu na minha cabeça pela primeira vez, eu me dei conta de que estava praticando de  um modo parecido ao Dzogchen durante pelo menos a última metade da minha vida monástica, desde aproximadamente 1987. Se tivesse sobrancelhas, eu as teria erguido um pouco.

Mas talvez a convergência não deveria ser tão surpreendente. Afinal, nós todos temos o mesmo mestre: o Dharma provém do Buda e está enraizado na nossa própria natureza. Pode haver 84.000 distintas portas para o Dharma, mas em essência há um Dharma.

Há vários ensinamentos Tibetanos que ao longo do tempo passei a apreciar, mas em especial aqueles que descrevem a fina anatomia e nuances de rigpa, interpretado como conhecimento. [1] A Tradição das Florestas da Tailândia, a linhagem na qual eu mais treinei, depende muito mais da eloqüência e inspiração de mestres incomuns que  improvisam temas do Dharma que lhes ocorrem naquele momento. Isso mantém os ensinamentos vivos e frescos, mas também significa que pode haver muita inconsistência na maneira como as coisas são expressas. Por isso, aprendi muito com a natureza bem estruturada e sistematizada dos ensinamentos Dzogchen.

Os ensinamentos de Ajaan Chah cobriam um âmbito bastante amplo, ele era particularmente notável pela maneira aberta, hábil e livre com que falava sobre a esfera da verdade última. E era assim com qualquer um que ele sentisse ser capaz de compreender, quer fosse leigo ou monástico. O seu jeito de falar sobre esse domínio e sobre a consciência que compreende isso –  sua compreensão do conhecimento (rigpa, vijja), reflete muitas similaridades com o Dzogchen, portanto pensei que poderia ajudar se descrevesse isso, bem como alguns dos métodos ensinados por Ajaan Sumedho, o discípulo sênior ocidental de Ajaan Chah. Tentarei também proporcionar outros ângulos ou pontos de vista da tradição Theravada que têm alguma influência na nossa compreensão e prática nessa área.

Quanto mais rápido você se apressa, mais devagar avança

É fácil ficar muito ocupado com a vida espiritual, até mesmo compelido e obcecado. Durante os primeiros 10 anos da minha vida monástica eu me tornei um monge até um certo ponto fanático. Isso pode parecer um paradoxo, mas não é de forma nenhuma  impossível. Eu tentava fazer tudo 120 por cento. Eu me levantava super cedo pela manhã e fazia todo o tipo de práticas ascéticas, todos os tipos de pujas e coisas do gênero. Eu nem sequer me deitava; eu não me deitei para dormir durante cerca de três anos. Por fim me dei conta que tinha coisas em demasia acontecendo e não havia nenhum senso de espaçamento interno ao longo do dia.

Eu estava extremamente ocupado com a meditação. Durante aquela época a minha vida estava apinhada. Eu estava sempre meio irritado e exigente. Eu não podia nem mesmo comer ou atravessar o pátio sem que aquilo fosse um evento. Por fim tive de perguntar a mim mesmo: “Porque é que  estou fazendo isso? Esta vida, presume-se, é para ser vivida em paz, para o conhecimento, para a libertação, e os meus dias estão todos entupidos.”

Eu deveria ter aberto os olhos muito antes. Eu costumava sentar no chão duro, o uso de um zafu era um sinal de fraqueza aos meus olhos. Bom, uma das monjas ficou tão farta de me ver adormecer durante todas as sessões que veio até mim e perguntou, “Posso lhe oferecer uma almofada, Ajaan?”

“Muito obrigado; eu não preciso.”

Ela respondeu, “Eu acho que você precisa.”

Finalmente, fui até Ajaan Sumedho e disse, “Eu decidi abrir mão das minhas práticas ascéticas. Vou simplesmente seguir a rotina usual e fazer tudo de modo absolutamente normal.” Foi a primeira vez que o vi ficar excitado. “Por fim!” foi a resposta dele. Eu pensei que ele fosse dizer, “Ah bom, se você assim decidiu.” Ele estava na expectativa de que eu compreendesse que não era a quantidade de coisas que eu fazia ou as horas colocadas na meditação,  sentado na almofada, a quantidade de mantras recitados ou se eu mantinha as regras de modo estrito. Era mais no sentido de incorporar o espírito do não-devir, do não-lutar com todas as forças em tudo que eu fizesse. Então, reconheci que a importância do não-lutar era algo que Ajaan Sumedho estava ensinando fazia muitos anos; eu simplesmente não estava ouvindo.

Ajaan Sumedho encorajava o estar consciente daquilo que chamamos a “tendência para o devir”. Em pali a palavra é “bhava”, e na tradição Tibetana a palavra é usada da mesma forma. Ela descreve o desejo de se tornar algo. Você faz isto para obter aquilo. É aquele jeito de estar sempre ocupado e fazendo algo – apoderando-se do método, das práticas, das regras e da mecânica de modo a chegar em algum lugar. Esse hábito é a causa de muitos dos nossos problemas. 

Para que as sementes cresçam precisamos de solo, adubo, água e luz do sol. Mas se o saco de sementes ficar no galpão, nos falta o elemento essencial. Quando carregamos o adubo e a água de um lado para o outro, sentimos com se estivéssemos fazendo alguma coisa. “Agora estou de fato trabalhando duro na minha prática!” Enquanto isso, o mestre está ali em pé ao lado do saco de sementes para nos recordar [gesticula como se estivesse apontando para um saco no canto].

Ajaan Sumedho falava repetidamente sobre estar iluminado ao invés de se tornar iluminado. Desperte agora; esteja desperto para o momento presente. Não se trata de fazer algo agora para se iluminar no futuro. Esse tipo de pensamento está atado ao eu e ao tempo e não produz frutos. Os ensinamentos Dzogchen são iguais. Não se trata de encontrar rigpa como um objeto ou de fazer algo agora para obter rigpa no futuro; trata-se  na verdade de ser rigpa agora. Assim que começamos a fazer algo com isso ou dizer, “Ei, olha, eu consegui” ou “Como posso ficar com isso?” a mente se agarra a esse pensamento e abandona rigpa – a menos que o pensamento seja observado como só mais uma formação transparente dentro do espaço de rigpa.

O próprio Ajaan Sumedho nem sempre tinha muita clareza com relação a esse ponto. Freqüentemente ele contava a história sobre as suas próprias obsessões de ser “um meditador”. O método de ensino de Ajaan Chah colocava bastante ênfase na prática de meditação formal. Mas ele também era extremamente perspicaz em não fazer da meditação formal algo distinto do resto da vida. Ele falava sobre manter a continuidade da prática quer alguém estivesse caminhando, em pé, sentado ou deitado. O mesmo se aplicava para comer, usar o banheiro e trabalhar. O ponto era sempre manter continuamente a plena consciência. [2] Ele costumava dizer, “Se a sua paz repousa na almofada de meditação, quando você se levanta da almofada você deixa a sua paz para trás.”

Certa vez deram para Ajaan Chah um pedaço de terra florestado no topo de uma montanha na sua província natal. O generoso patrocinador que fez a doação disse, “Se você encontrar um jeito de construir uma estrada até o topo da montanha, eu construirei um monastério lá para você.” Sempre disposto a enfrentar um desafio desse tipo, Ajaan Chah passou uma ou duas semanas na montanha e encontrou um caminho até o topo. Ele então movimentou toda a comunidade monástica para construir a estrada. 

Ajaan Sumedho era um monge recém-chegado. Ele havia chegado fazia um ou dois anos e era um sério meditador. Ele não estava muito interessado em deixar a vida estabelecida no monastério principal, Wat Nong Pah Pong, mas ele se uniu ao grupo e lá estava quebrando pedras debaixo de sol, empurrando carrinhos de mão com entulhos de um lado para o outro e trabalhando duro com o restante da comunidade. Depois de dois ou três dias, ele estava acalorado, suado e mal humorado. Ao final do dia, depois de um turno de 12 horas de trabalho, todos sentavam para meditar e ficavam cambaleando. Ajaan Sumedho pensou, “Isso é inútil. Estou perdendo meu tempo. Minha meditação está completamente desintegrada. Isso não ajuda a vida santa de forma nenhuma.”

Ele cuidadosamente explicou a sua preocupação para Ajaan Chah: “Eu estou percebendo que todo o trabalho que estamos fazendo é prejudicial para a minha meditação. Eu  realmente penso que seria muito melhor para mim se eu não participasse disso. Eu preciso fazer mais meditação sentado e andando, mais prática formal. Isso me ajudaria muito e acredito que seria o melhor.”

Ajaan Chah disse, “O.K., Sumedho. Sim, você pode fazer isso. Mas é melhor eu informar a Sangha para que todos saibam o que está acontecendo.” Ele era capaz de ser realmente malandro dessa maneira.

Na reunião da Sangha ele disse, “Eu gostaria de fazer um comunicado para todos. Eu sei que agora todos viemos até aqui para construir essa estrada. E também sei que todos estamos trabalhando duro quebrando pedras e carregando entulho. Eu sei que esse trabalho é importante para nós, mas a tarefa da meditação também é muito importante.  Tan Sumedho me perguntou se ele poderia praticar meditação enquanto nós construímos a estrada e eu lhe disse que não há absolutamente nenhum problema nisso. Eu não quero que vocês tenham pensamentos de crítica em relação a ele. Da minha parte está perfeitamente correto. Ele pode ficar sozinho e meditar e nós continuaremos construindo a estrada.”

Ajaan Chah estava lá desde o amanhecer até o anoitecer. Quando ele não estava trabalhando na estrada ele estava recebendo visitantes e ensinando o Dharma. Portanto, ele estava realmente se empenhando. Enquanto isso, Ajaan Sumedho permanecia só e meditava. Ele se sentiu muito mal no primeiro dia e ainda pior no segundo. No terceiro dia, ele não foi capaz de agüentar mais. Ele se sentia torturado e finalmente abandonou o seu isolamento. Ele se reincorporou aos monges, quebrou pedras, carregou entulho e realmente se entregou ao trabalho. 

Ajaan Chah olhou para o jovem monge entusiasmado com um largo sorriso nos lábios e perguntou: “Você está gostando do trabalho, Sumedho?”

“Sim, Luang Por.”

“Não é estranho que a sua mente esteja mais satisfeita agora no calor e na poeira do que quando você estava meditando sozinho?”

“Sim, Luang Por.”

A lição? Ajaan Sumedho havia criado uma falsa divisão entre o que é e o que não é meditação, quando na verdade não existe diferença de maneira nenhuma. Quando nós nos entregamos de coração a qualquer coisa que fazemos, a qualquer coisa que experimentamos ou ao que estiver acontecendo à nossa volta, sem agendas ou preferências pessoais assumindo o controle, o espaço de  rigpa, o espaço da plena consciência, é exatamente a mesma coisa.

O Buda é Plena Consciência

Os ensinamentos de Ajaan Chah também são similares ao Dzogchen com respeito à natureza do Buda. Quando você compreende a essência desta, a plena consciência deixa de ser uma coisa. No entanto, ela é um atributo da natureza fundamental da mente. Ajaan Chah se referia a essa plena consciência, essa natureza conhecedora da mente, como o Buda: “Esse é o verdadeiro Buda, aquele que sabe (poo roo).” A maneira habitual de falar sobre a consciência, tanto no caso de Ajaan Chah bem como no de outros mestres da tradição das florestas, era empregando o termo “Buda” dessa forma – a qualidade desperta, plenamente consciente da nossa mente. Isso é o Buda.

Ele dizia coisas como, “O Buda que realizou o parinibbāna 2.500 anos atrás não é o Buda refúgio.” Algumas vezes ele gostava de chocar as pessoas, quando ele sentia necessidade de trazer a atenção delas para os ensinamentos. Elas pensavam que estavam frente a frente com um herege quando ele dizia algo desse tipo, “Como pode aquele Buda ser um refúgio? Ele se foi. Foi-se, realmente se foi. Isso não é um refúgio. Um refúgio é um lugar seguro. Então, como pode esse ser eminente que viveu faz 2.500 anos proporcionar segurança? Pensar nele pode fazer com que nos sintamos bem, mas essa sensação também é instável. É uma sensação inspiradora, mas pode ser facilmente perturbada.”

Quando há  repouso naquilo que sabe, então nada pode tocar o coração. Esse repouso naquilo que sabe é que faz do Buda um refúgio. Essa natureza conhecedora da mente é invulnerável, inviolável. O que acontece com o corpo, emoções e percepções é secundário porque o que sabe está além do mundo dos fenômenos. Portanto, esse é o refúgio verdadeiro. Quer experimentemos prazer ou dor, êxito ou fracasso, elogio ou crítica, essa natureza conhecedora da mente é absolutamente serena. Ela é imperturbável e incorruptível. Como um espelho que não é embelezado ou maculado pelas imagens que reflete, a natureza conhecedora da mente não pode ser tocada por nenhuma percepção sensual, nenhum pensamento, nenhuma emoção, nenhum humor, nenhuma sensação. É de ordem transcendente. Os ensinamentos Dzogchen falam a mesma coisa: “Não há sequer o equivalente à ponta de um fio de cabelo de envolvimento dos objetos mentais na plena consciência, na natureza da mente em si.” É por isso que a plena consciência é um refúgio; a plena consciência é o próprio núcleo da nossa natureza.

Alguém viu os meus olhos?

Outro paralelo entre os ensinamentos do Dzogchen e de Ajaan Chah vem sob a forma de um alerta: não busque pelo incondicionado, ou rigpa, com a mente condicionada. Os versos do Terceiro Patriarca do Zen dizem, “Procurar a Mente com a mente discriminatória é o maior de todos os erros.” Ajaan Chah expressava a futilidade e o absurdo dessa tendência dando como exemplo andar a cavalo e procurar o cavalo ao mesmo tempo. Nós estamos cavalgando e perguntando, “Alguém viu meu cavalo? Alguém viu meu cavalo?” Todos nos olham como se estivéssemos loucos. Então, cavalgamos até o próximo vilarejo e perguntamos a mesma coisa: “Alguém viu meu cavalo?”

Ajaan Sumedho emprega um exemplo semelhante. Ao invés de procurar um cavalo, ele usa a imagem de procurar os próprios olhos. O próprio órgão com o qual vemos é que realiza o ato de ver, no entanto seguimos na busca: “Alguém viu os meus olhos? Eu não consigo ver os meus olhos em nenhum lugar. Eles devem estar por aqui em algum lugar mas eu não consigo encontrá-los.”

Não podemos ver os nossos olhos, mas conseguimos enxergar. Isso significa que a consciência não pode ser um objeto. Mas que pode haver consciência. Ajaan Chah e outros mestres da Tradição das Florestas empregavam a expressão, “ser o conhecer.” É como ser rigpa. Nesse estado, a mente sabe a sua própria natureza, Dharma conhecendo a sua própria natureza. Isso é tudo. Assim que tentamos fazer disso um objeto, então a estrutura dualista foi criada, um sujeito aqui olhando para um objeto ali. E só existe solução quando abrimos mão dessa dualidade e abandonamos essa “procura”. Aí, a mente simplesmente permanece naquilo que sabe. Mas o hábito é pensar, “Eu não estou me empenhando o suficiente na busca. Ainda não os encontrei. Meus olhos devem estar aqui em algum lugar. Afinal de contas posso enxergar. Preciso me esforçar mais para encontrá-los.”

Você alguma vez já esteve numa entrevista num retiro, na qual depois de descrever a sua prática de meditação o professor olha para você e diz, “É necessário mais esforço”? Você pensa, “Mas eu estou dançando o mais rápido que posso!” Necessitamos nos esforçar, mas precisamos fazer isso de modo hábil. O tipo de esforço que precisamos desenvolver é aquele que envolve ter mais clareza, porém fazendo menos. Essa qualidade de relaxamento é vista como crucial, não somente nos ensinamentos Dzogchen, mas também na prática monástica Theravada.

É irônico que esse relaxamento seja construído obrigatoriamente sobre uma ampla gama de práticas preparatórias. Como parte do treinamento ngondro Tibetano o praticante realiza 100.000 prostrações, 100.000 visualizações, 100.000 mantras e depois, anos de estudos, mantendo as virtudes (sīla), e assim por diante. Assim também na tradição Theravada, nós temos sīla: as práticas de virtude para os leigos e para as comunidades monásticas, bem como o refinamento do treinamento na disciplina do Vinaya. Nós realizamos muitas práticas devocionais e cânticos, e muito treinamento nas técnicas de meditação, como a atenção plena na respiração, a atenção plena no corpo e assim por diante. Depois há a prática de viver numa comunidade. (Um dos monges seniores da minha Sangha certa vez se referiu ao treinamento comunitário monástico como sendo a prática das 100.000 frustrações – nós não estamos qualificados até que tenhamos alcançado a centésima milésima!) Portanto, há um trabalho preparatório enorme, que é necessário para fazer com que esse relaxamento seja eficaz.

Eu gosto de pensar nesse relaxamento como um tipo de quinta marcha. Nós usamos a quinta marcha mantendo a mesma velocidade, mas com menos rotações. Até eu contar para Ajaan Sumedho que havia desistido das minhas práticas ascéticas, eu estava em quarta marcha, numa corrida. Havia sempre uma pressão, uma atitude de ir até o limite. Quando reduzi um grau e não estava mais tão fanático com relação às regras e em fazer tudo perfeitamente o tempo todo, esse pequeno elemento de relaxamento permitiu que tudo se completasse; simplesmente porque me desapeguei do estresse, parei de exercer pressão. A ironia é que eu ainda estava completando 99.9 por cento das minhas tarefas e práticas espirituais. Só que eu as realizava sem ficar obcecado. Podemos relaxar sem desligar e consequentemente desfrutar dos frutos do nosso trabalho. Isso é o que queremos dizer com soltar-se do devir e aprender a ser. Se estivermos demasiado tensos e ansiosos em chegar ao outro lado, estaremos fadados a cair da corda bamba.

Realizando a Cessação

Outro importante aspecto do conhecimento, (rigpa, vijja), é a sua ressonância com a experiência da cessação, nirodha. A experiência de rigpa é idêntica à experiência de dukkha-nirodha, a cessação do sofrimento.

Soa interessante, não é mesmo? Nós praticamos para dar um fim ao sofrimento e, no entanto, ficamos tão apegados ao trabalho com as coisas da mente que quando dukkha cessa e o coração fica espaçoso e vazio, podemos nos sentir perdidos. Não sabemos como não interferir com essa experiência: “Ah! – Uau! – tudo é tão aberto, límpido, espaçoso … e agora, o que é que eu faço?” O nosso condicionamento diz, “Supostamente devo fazer alguma coisa. Isso não é o que significa estar progredindo no caminho.” Nós não sabemos como estar despertos e, além disso, não interferir nessa experiência espaçosa.

Quando esse espaço surge na mente, podemos ficar confusos ou facilmente não perceber isso. É como se cada um de nós fosse um ladrão que arrombou uma casa, olha em volta e decide, “Bom, não há muito que levar daqui, então vou continuar procurando noutro lugar.” Nós não compreendemos que quando há o desapego, dukkha cessa. Ao invés disso, ignoramos aquela qualidade serena, aberta, límpida e continuamos em busca da próxima coisa e depois da seguinte e assim por diante. Como diz a expressão, nós não “saboreamos o néctar,” o suco de rigpa. Nós só zunimos pelo bar dos sucos. Parece que aqui não há nada. Tudo parece demasiado entediante: nenhuma cobiça ou medo, ou outros assuntos que tratar. Assim, nos mantemos ocupados com atitudes do tipo: “Eu estou sendo irresponsável; eu deveria ter um objeto no qual me concentrar ou pelo menos eu deveria estar contemplando a impermanência; eu não estou cuidando dos meus problemas. Rápido, tenho de encontrar algo desafiante para resolver.” Apesar das nossas melhores intenções, deixamos de saborear o suco que se encontra exatamente ali.

Quando o apego cessa, a verdade última aparece. É assim, muito simples. 

Ananda e um outro monge estavam discutindo sobre a natureza do estado imortal e decidiram consultar o Buda. Eles queriam saber: “Qual é a natureza do imortal?” Eles se prepararam para uma longa e extensa explicação. Mas a resposta do Buda foi breve e sucinta. Ele respondeu, “A cessação do apego é o imortal.” É isso aí. Com relação a esse ponto, os ensinamentos Dzogchen e Theravada são idênticos. Quando o apego cessa, há rigpa, há o imortal, o fim do sofrimento, dukkha-nirodha.

O primeiro ensinamento do Buda sobre as Quatro Nobres Verdades fala diretamente sobre isso. Para cada uma das quatro verdades, há um modo através do qual elas devem ser tratadas. A Primeira Nobre Verdade – dukkha, insatisfação – “deve ser completamente compreendida.” Precisamos reconhecer: “Isso é dukkha. Isso não é rigpa. Isso é marigpa, (avijjā), falta de plena consciência, ignorância, e é insatisfatório.”

A Segunda Nobre Verdade, a causa de dukkha, é o desejo egoísta, a cobiça. Isto “deve ser abandonado.”

A Quarta Nobre Verdade, o Nobre Caminho Óctuplo, “deve ser desenvolvido.”

Mas o que é interessante, especialmente neste contexto, é que a Terceira Nobre Verdade, dukkha-nirodha, o fim de  dukkha, “deve ser compreendido completamente.” Isso significa que, quando dukkha cessa, se tome atenção a isso. Observe: “Ah! Tudo está O.K.” Aí é quando engatamos a quinta marcha – quando podemos simplesmente ser, sem devir.

“Ah” – o sabor do néctar de rigpa – “Ah, está perfeito.”

A realização consciente do fim de dukkha, da vacuidade e do espaço na mente são considerados elementos cruciais da prática correta na tradição Theravada. Compreender nirodha é de certo modo o aspecto mais importante ao trabalhar com as Quatro Nobres Verdades. Parece secundária, é a menos tangível de todas, mas é aquela que contém a jóia, a semente da iluminação.

Embora a experiência de dukkha-nirodha não seja uma coisa, isso não quer dizer que não haja nada ou nenhuma qualidade. Na verdade é a experiência da verdade última. Se não estivermos apressados em busca do próximo contato e estivermos atentos ao fim de dukkha, nos abrimos para a pureza, luminosidade e paz. Permitindo que o nosso coração desfrute plenamente daquilo que está presente, todas as assim chamadas experiências comuns florescem e se abrem belamente adornadas como uma orquídea dourada, tornando-se cada vez mais límpidas e luminosas.

Não é Feito Disso

Todos os praticantes Budistas, independentemente da sua tradição, estão familiarizados com as três características da existência - anicca, dukkha, anattā (impermanência, insatisfação e não-eu). Elas representam o “primeiro capítulo, a primeira página” do Budismo. Mas no Theravada também se fala das outras três características da existência, num nível mais refinado: suññata, Tathatā, atammayatā. Suññatā é vacuidade. O termo surge ao dizermos “não” para o mundo fenomenológico: “Eu não vou acreditar nisso. Isso não é completamente real.” Tathatā significa “assim”. É uma qualidade muito semelhante à suññatā, mas surge ao dizermos “sim” para o mundo. Não há nada, no entanto há algo. A qualidade de “assim” é igual à textura da realidade última. Suññatā e tathatā – vacuidade e assim  – os ensinamentos falam desse modo.

A terceira qualidade, atammayatā, não é muito bem conhecida. No Theravada, atammayatā tem sido mencionada como o conceito último. Literalmente, significa “não é feito disso.” Mas atammayatā pode ser interpretado de várias e diferentes maneiras, proporcionando uma variedade de graduações sutis de significado. Bhikkhu Bodhi e Bhikkhu Ñanamoli (na sua tradução do Majjhima Nikaya) interpretam como “não identificação” [3] – tomando como base  o lado do “sujeito” da equação. Outros tradutores interpretam como “não fabricar” ou “não idear”, dessa forma apontando mais para o elemento “objeto” da equação. De qualquer modo, a referência é feita em primeiro lugar à qualidade da consciência anterior à dualidade sujeito-objeto ou sem esta. 

A antiga origem Hindu desse termo parece se basear numa teoria da percepção sensual na qual a mão que agarra proporciona a analogia principal: a mão assume a forma daquilo que ela apreende. O processo da visão, por exemplo, é explicado como o olho enviando uma espécie de energia, que depois assume a forma daquilo que é visto e retorna com aquilo. De modo semelhante com o pensamento: a energia mental se molda ao seu objeto, (isto é, um pensamento), e depois retorna para o sujeito. Essa idéia está encapsulada no termo “tan-mayatā,” “consistindo disso.” A energia mental daquele que experiencia (sujeito), assume a mesma natureza da coisa (objeto), percebida.

A qualidade oposta, atammayatā, se refere a um estado no qual a energia da mente não “sai” na direção do objeto e o ocupa. E não faz nem uma “coisa” objetiva, nem um “observador” subjetivo que a percebe. Por conseguinte, a não identificação se refere ao aspecto subjetivo e a não fabricação se refere ao aspecto objetivo.

A maneira como em geral a vacuidade é discutida nos círculos Dzogchen  deixa bem claro que essa é uma característica da realidade última. Mas em outros usos de vacuidade ou “assim”, (tathatā), ainda pode haver a noção de um agente, (um sujeito), que está olhando para aquilo e esse aquilo é vazio. Ou esse aquilo é assim, dessa forma. Atammayatā é a compreensão de que, na verdade, não pode haver nada além da realidade última. Não há o aquilo. Com o soltar, com o completo abandono daquilo, todo o mundo relativo do sujeito-objeto, até mesmo no seu nível mais sutil, é rompido e dissolvido.

Eu, particularmente, gosto da palavra “atammayatā” devido à mensagem que ela transmite. Entre as suas várias qualidades, esse conceito lida profundamente  com a noção persistente da especulação incessante, “O que é aquilo ali?” Há aquele indício de que algo ali pode ser um pouco mais interessante do que o que está aqui. Até mesmo a noção mais sutil de ignorar isto para obter aquilo, não estar satisfeito com isto e querer se tornar aquilo, é um erro. Atammayatā é aquela qualidade em nós que sabe, “Não existe aquilo. Só isto existe.” Daí, até mesmo o aspecto “isto” se torna irrelevante. Atammayatā ajuda o coração a romper os hábitos mais sutis de inquietação, bem como acalmar as repercussões da raiz dualista, sujeito e objeto. Esse abandono leva o coração a uma compreensão: há apenas a completitude do Dharma, o espaço pleno e o aprazimento. As aparentes dualidades disso e daquilo, sujeito e objeto são vistas em essência como carentes de sentido.

Uma das maneiras que podemos empregar isso num nível prático é com uma técnica freqüentemente sugerida por Ajaan Sumedho. Pensando que a mente está no corpo, nós dizemos, “minha mente” (aponta para a cabeça) ou “minha mente” (aponta para o peito). Certo? “Está tudo na minha mente.” Na verdade entendemos tudo errado. O corpo está na nossa mente ao invés da mente no corpo, certo?

O que sabemos sobre o nosso corpo? Podemos vê-lo, Podemos ouvi-lo. Podemos cheirá-lo. Podemos tocá-lo. Onde ocorre a visão? Na mente. Onde experimentamos o toque? Na mente. Onde experimentamos o olfato? Na mente.

Tudo que sabemos do corpo, agora e no passado, foi conhecido através da intervenção da nossa mente. Nós nunca aprendemos nada sobre o nosso corpo, a não ser através da mente. Portanto, durante toda a nossa vida, desde a infância, tudo que sempre aprendemos sobre o nosso corpo e o mundo ocorreu na nossa mente. Então, onde se encontra o nosso corpo? Não quer dizer que não exista um mundo físico, mas o que podemos dizer é que a experiência do corpo e a experiência do mundo ocorrem dentro na nossa mente. Não ocorre em nenhum outro lugar. Tudo acontece aqui. E nesse “aqui”, a externalidade do mundo, a sua separação cessa. A palavra “cessação,” (nirodha), também pode ser empregada nesse caso. Junto com o seu uso mais conhecido, a palavra também significa “refrear, parar”, portanto, isso significa que a separação cessou. Quando compreendemos que contemos o mundo todo dentro de nós, a sua qualidade de coisa, de objeto, foi refreada. Somos mais capazes de reconhecer a sua verdadeira natureza. 

Essa mudança de visão é uma pequena ferramenta de meditação bastante interessante que podemos usar a qualquer momento, como por exemplo, na meditação andando. É um dispositivo útil porque nos conduz para a verdade das coisas. Sempre que a empregamos, o mundo é virado de dentro para fora, porque então somos capazes de ver que este corpo é deveras apenas um conjunto de percepções. Isso não nega o nosso livre funcionamento, mas coloca tudo num novo contexto. “Tudo acontece dentro do espaço de rigpa, dentro do espaço da mente que sabe.” Ao encarar as coisas dessa forma, de repente percebemos o nosso corpo, a mente e o mundo chegando a uma solução, uma estranha compreensão da perfeição. Tudo acontece aqui. Esse método pode parecer um pouco obscuro, mas algumas vezes as ferramentas mais abstrusas e sutis podem produzir as mudanças mais radicais no conhecimento.

Reflexão Investigativa

Reflexão Investigativa era um dos métodos que Ajaan Chah empregava para manter o conhecimento, ou devemos dizer, manter o Conhecimento Correto. Ela envolve o uso deliberado do pensamento para investigar os ensinamentos, bem  como os apegos específicos, medos e esperanças e especialmente o próprio sentimento de identificação. Ele falava sobre isso quase  como se tivesse dialogando consigo mesmo.

Com freqüência o pensamento é retratado como o grande vilão nos círculos de meditação: “Pois é, a minha mente … Se pelo menos eu conseguisse parar de pensar, eu seria feliz.” Mas na verdade, a mente pensante pode ser um dos auxiliares mais maravilhosos quando é usada da forma correta, particularmente quando se investiga o sentimento de individualidade. É uma oportunidade perdida quando deixamos de empregar o pensamento conceitual desse modo. Quando você estiver experimentando, vendo ou fazendo algo, faça uma pergunta do tipo: “O que é que está consciente dessa sensação? Quem é o dono deste momento? O que é aquilo que percebe rigpa?”

O uso deliberado do pensamento ou reflexão investigativa pode revelar um conjunto de suposições inconscientes, hábitos e obsessões que colocamos em movimento. Isso pode ser de muita ajuda e pode produzir grandes realizações interiores (insight). Nós estabelecemos a atenção plena estável e aberta e depois perguntamos: “O que é que percebe isso? O que está consciente deste momento? Quem sente dor? Quem está tendo essa fantasia? Quem está curioso sobre o jantar?” Nesse momento um espaço se abre. Milarepa certa vez disse algo nesse sentido, “Quando o fluxo do pensamento discursivo é interrompido, a porta para a libertação se abre.” É exatamente o mesmo quando fazemos esse tipo de perguntas, é como um estilete aplicado no nó emaranhado da identificação, desatando os seus fios. Isso quebra o hábito, o padrão dos pensamentos discursivos. Quando perguntamos “quem” ou “o quê”, por um instante a mente pensante tropeça. Ela fica desajeitada. Nesse espaço, antes que ela possa construir uma resposta ou uma identidade, há a paz e a liberdade atemporais. Através desse estado pacífico surge a qualidade inata da mente, a essência da mente. É só através da frustração dos nossos julgamentos habituais, as realidades parciais das quais nós inconscientemente determinamos a existência, que somos forçados a afrouxar o apego e abandonar a nossa maneira equivocada de pensar.

Medo da Liberdade

O Buda disse que o desapego da noção do “eu” é a felicidade suprema (por exemplo no Udana II.1 e IV.1). Mas ao longo dos anos nós nos tornamos fãs desse personagem, não é mesmo? Ajaan Chah certa vez disse, “É como ter um amigo querido com que você  tem travado conhecimento durante toda a sua vida. Vocês têm sido inseparáveis. Então, vem o Buda e diz que você e o seu amigo têm que se separar.” Isso parte o coração. O ego fica despojado. Há um sentimento de diminuição e perda. Depois vem aquela sensação desconfortante de desespero.

Para a noção do “eu”, ser/existir se define sempre como ser alguma coisa. Mas a prática e os ensinamentos claramente enfatizam o ser indefinido, a plena consciência: sem limites, incolor, infinita, onipresente – dê o nome que você quiser. Parece a morte para o ego quando ‘ser’ fica indefinido dessa forma. E a morte é a pior coisa. Os hábitos baseados no ego reagem com fúria e buscam algo para preencher o espaço vazio. Qualquer coisa serve: “Rápido, me dê um problema, uma prática de meditação (isso é correto!). Ou que tal algum tipo de memória, uma esperança, uma tarefa que não foi completada, alguma coisa em relação à qual possa sentir aflição ou culpa, qualquer coisa!”

Eu experimentei isso várias vezes. Nessa qualidade espaçosa, é como se houvesse um cão faminto na porta tentando desesperadamente entrar: “Por favor, deixe-me entrar, deixe-me entrar.” O cão faminto quer saber: “Quando é que esse sujeito vai me dar atenção? Ele já está ali sentado faz horas como se fosse algum maldito Buda. Será que ele não percebe que estou faminto aqui fora? Ele não percebe que está frio e úmido? Ele não se importa comigo?”

“Todos os sankharas são impermanentes. Todos os Dharmas são assim e vazios. Não há nada mais… “ [faz ruídos como um cão faminto infeliz]

Essas experiências proporcionaram alguns dos momentos mais reveladores na minha própria prática e exploração espiritual. Elas contêm uma fome tão fanática de ser/existir. Qualquer coisa serve, qualquer coisa, só para ser alguma coisa: um fracassado, um bem sucedido, um messias, uma praga no mundo, um assassino de massas. “Permita que eu seja algo, por favor, Deus, Buda ou quem quer que seja.”

Em vista do que o Buda responde, “Não.”

É necessário uma quantidade enorme de recursos e força interior incríveis para ser capaz de dizer “não” desse modo. As súplicas patéticas do ego se tornam fenomenalmente  intensas e viscerais. O corpo pode sacudir e as nossas pernas começam a se contorcer para saírem correndo. “Deixe-me sair desse lugar!” Pode até  acontecer que os pés comecem a se mexer em direção à porta, tão forte é o anseio.

Nesse ponto, estaremos focando a luz da sabedoria exatamente na raiz da existência dualista. Essa é uma raiz forte. É necessário muito trabalho para chegar até essa raiz e cortá-la. Então podemos esperar muita fricção e dificuldades ao nos envolvermos com esse tipo de tarefa.

A ansiedade intensa surge. Não se intimide com isso. Deixe o anseio de lado. É normal experimentar angústia e fortes sentimentos de pesar. Há um pequeno ser que acaba de morrer. O coração sente uma sensação de perda. Permaneça com isso e permita que passe. A sensação de que “algo será perdido se eu não seguir esse anseio” é a mensagem enganosa do desejo. Quer seja uma centelha sutil de inquietação ou uma grande declaração – “Eu morrerei com o coração partido se não seguir isso!” – compreenda que tudo isso não passa de uma de uma sedução enganosa do desejo.

Há um verso maravilhoso num poema de Rumi que diz, “Quando é que na sua vida você se tornou menos por morrer?” Permita que a erupção do ego nasça e deixe que ela morra. Depois, olhe! Veja! Não só o coração não foi diminuído, como na verdade ele está mais luminoso, amplo e jubiloso como nunca esteve antes. Há espaço, satisfação e uma tranqüilidade que não podem ser alcançadas através do apego ou da identificação com qualquer atributo da vida.

Não importa quão genuínos os problemas aparentem ser, as responsabilidades, as paixões, as experiências, nós não temos de ser nada disso. Não há nenhuma identidade que nós precisemos ter. Absolutamente nada deve ser apegado.

 


 

Notas:

[1] (Nota do tradutor): Rigpa tem o mesmo significado que vijja em Pali. Vijja é o oposto de avijjā, ignorância, portanto vijjā ou rigpa pode ser interpretado como conhecimento, perspectiva. [Retorna]

[2] (Nota do tradutor): Sampajañña ou plena consciência, de acordo com o MN10.8. [Retorna]

[3] (Nota do tradutor): Veja o MN 113.21. [Retorna]

Traduzido do livro “Small Boat, Great Mountain” publicado em 2003 pelo Abhayagiri Buddhist Monastery. Traduzido mediante expressa concordância do autor. A tradução para o Português foi revisada pelo Samanera Dhammiko ao qual agradecemos pela colaboração.

 

 

Revisado: 1 Maio 2008

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