Dois Caminhos para o Conhecimento
Por
Bhikkhu Bodhi
Somente para distribuição gratuita.
Este trabalho pode ser impresso para distribuição gratuita.
Este trabalho pode ser re-formatado e distribuído para uso em computadores e redes de computadores
contanto que nenhum custo seja cobrado pela distribuição ou uso.
De outra forma todos os direitos estão reservados.
Muitos dos
formidáveis problemas sociais e culturais que enfrentamos hoje estão enraizados
no cisma que tem dividido a civilização Ocidental entre ciência e religião,
onde a ciência reivindica o conhecimento invencível baseado na investigação
empírica do mundo natural, enquanto que a religião não é capaz de fazer muito
mais que pedir a fé em crenças sobrenaturais e a obediência a códigos de ética
que requerem contenção, auto-disciplina e sacrifício. Visto que a religião, da
forma como tradicionalmente é entendida, com freqüência se apóia em pouco mais
do que promessas levianas e ameaças pomposas, os seus apelos para conquistar
nossa aliança raramente são aprovados, enquanto que os ideais éticos que são
advogados dificilmente têm alguma chance contra a injunção constante – forçada
sobre nós pela TV, rádio e demais tipos de mídia – de desfrutar a vida até o
limite, enquanto pudermos. Como resultado, uma vasta porção da humanidade hoje
se alienou da religião como um guia significativo para a vida, deixada sem
outra alternativa que mergulhar de cabeça na religião secular do consumismo e
hedonismo. Freqüentemente, aqueles que estão no campo religioso, percebendo a
ameaça colocada pela secularidade à sua própria segurança, sentem-se empurrados
para um fundamentalismo agressivo numa tentativa desesperada de salvar as suas
lealdades tradicionais.
A busca
para estabelecer uma base sólida para a conduta no mundo de hoje tem se tornado
particularmente difícil porque uma das conseqüências do domínio da visão
científica do mundo tem sido o banimento dos valores éticos da esfera do real.
Embora muitos cientistas, nas suas vidas pessoais, sejam advogados decididos de
ideais como a paz mundial, justiça política e maior igualdade econômica, a
visão do mundo promulgada pela ciência moderna concede aos valores éticos
nenhum fundamento objetivo no grande esquema das coisas. Sob essa perspectiva,
a raiz e base que os valores éticos possuem é puramente subjetiva, e assim eles
trazem consigo todas as qualidades que a noção de subjetividade sugere: sendo
pessoais, particulares, relativos e até mesmo arbitrários. O efeito geral dessa
cisão, apesar das boas intenções de muitos cientistas responsáveis, tem sido de
acender a luz verde para estilos de vida fundamentados na busca da gratificação
pessoal e a sede pelo poder direcionada para a exploração dos outros.
Em
contraste à clássica antítese Ocidental entre religião e ciência, o Budismo
comparte com a ciência do mesmo compromisso de dar a conhecer a verdade sobre o
mundo. Ambos, o Budismo e a ciência fazem uma clara distinção entre a forma
como as coisas aparentam ser e a forma como elas na verdade são e ambos propõem
abrir as nossas mentes para o insight sobre a real natureza das coisas,
normalmente escondida por trás de falsas idéias baseadas na percepção sensorial
e no “bom senso.” No entanto, apesar dessa afinidade, também é necessário
reconhecer as grandes diferenças com relação ao objetivo e orientação que
separam o Budismo da ciência. Embora ambos possam compartir de algumas
concepções sobre a natureza da realidade, a ciência é na essência um projeto
desenhado para nos proporcionar conhecimento objetivo e factual, com informação
que pertence ao domínio público, enquanto que o Budismo é um caminho espiritual
que tem a intenção de promover uma transformação interior e a realização do bem
máximo denominado iluminação, libertação ou Nibbana. No Budismo, a busca pelo
conhecimento é importante não como um fim em si mesmo, mas porque a principal
causa do nosso sofrimento é a ignorância, a não compreensão das coisas como
elas na verdade são, portanto o antídoto necessário para nos curar é o
conhecimento ou insight.
E além
disso, o conhecimento a ser adquirido através da prática do Dhamma difere de
forma significativa daquele buscado pela ciência em vários aspectos
importantes. E o mais importante de todos, o conhecimento que se busca não é
simplesmente a aquisição de informações objetivas sobre a constituição e
operação do mundo físico, mas o insight pessoal profundo da verdadeira natureza
da existência do indivíduo. O objetivo não é entender a realidade a partir do
exterior, mas do interior, sob a perspectiva da experiência de vida da própria
pessoa. A pessoa não busca conhecimento factual, mas insight ou sabedoria, um
conhecimento pessoal, inevitavelmente subjetivo, cujo valor se encontra no seu
impacto transformativo na vida da pessoa. A preocupação com o mundo externo,
como objeto de conhecimento, surge apenas à medida que o mundo exterior está
implicado na experiência de forma inextrincável. O Buda disse: “É nesse corpo
com a sua percepção e pensamento que eu declaro o mundo, a origem do mundo, a
cessação do mundo e o caminho para a cessação do mundo.”
Como o
Budismo toma a experiência pessoal como ponto de partida, sem ter como meta o
uso da experiência como trampolim para um tipo de conhecimento impessoal e
objetivo, ele inclui dentro do seu domínio a gama completa de qualidades
reveladas através da experiência pessoal. Isso significa que o Budismo
considera os valores éticos como muito importantes. Mas, além disso, os valores
éticos para o Budismo não são meras projeções de julgamentos subjetivos que
formulamos de acordo com os caprichos pessoais, necessidades sociais ou
condicionamento cultural; ao contrário, eles estão inseridos na textura da
realidade tão firmemente quanto as leis do movimento e da termodinâmica. Por
conseguinte, os valores éticos podem ser avaliados: classificados em termos de
verdadeiros ou falsos, posicionados como válidos ou inválidos e parte da nossa
tarefa de dar significado às nossas vidas é descobrir o verdadeiro esquema dos
valores éticos. Para determinar a verdadeira classificação dos valores éticos
precisamos voltar a nossa atenção para o interior e usar um critério subjetivo
de investigação; mas aquilo que encontramos, longe de ser particular ou
arbitrário, é parte integral da ordem objetiva, permeada com a mesma
autenticidade da lei que governa os movimentos dos planetas e das estrelas.
A afirmação
de uma realidade objetiva dos valores éticos implica outra distinção
significativa entre o Budismo e a ciência. Para que o conhecimento libertador
da iluminação surja, o investigador precisa passar por uma profunda
transformação pessoal guiada pela percepção dos valores éticos genuínos.
Enquanto a ciência natural pode ser tomada como um disciplina puramente
intelectual, a busca Budista na sua totalidade é uma disciplina existencial que apenas pode ser
implementada regulando a própria conduta, purificando a própria mente e
refinando a capacidade de atenção sobre os próprios processos corporais e
mentais. Esse treinamento requer a obediência aos preceitos éticos durante todo
o caminho, portanto os princípios éticos suportam e permeiam todo o treinamento
desde o seu início na ação correta, até a sua culminação na libertação mais
elevada da mente.
O que é
particularmente digno de nota é que o impulso ético no treinamento Budista e o
seu impulso cognitivo convergem para o mesmo ponto, a realização da verdade de anatta (não-eu). É exatamente neste
ponto que a ciência contemporânea se aproxima do Budismo na sua descoberta do
processo da realidade, implicando a ausência de uma essência última escondida
por trás da seqüência dos eventos. Mas essa correspondência mais uma vez aponta
para uma diferença fundamental. No Budismo a natureza impermanente e sem
substância da realidade não é simplesmente uma verdade compreendida através do
conhecimento objetivo. É acima de tudo uma verdade existencial, um princípio
transformativo que oferece a chave para o entendimento correto e a correta
libertação. Para usar essa chave para abrir a porta para a libertação
espiritual, seu único propósito, precisamos governar nossa conduta sob a
premissa de que a idéia de um eu substancial é uma delusão. Não é suficiente
apenas aceitar essa idéia intelectualmente e transformá-la num brinquedo para o
pensamento. O princípio precisa ser penetrado através do treinamento para
descobrir o não-eu no seu esconderijo mais sutil, os recônditos mais profundos
da nossa própria mente.
Existe
esperança de que os pensadores Budistas e os cientistas abertos a novas idéias,
ao compartilhar os insights e reflexões, possam nos mostrar uma maneira efetiva de sanar a fissura entre
o conhecimento objetivo e a sabedoria espiritual e dessa forma promover a
reconciliação entre a ciência e a espiritualidade. Assim, a prática espiritual
irá se tornar parte integrante da disciplina que visa o conhecimento, e a
prática espiritual e o conhecimento combinados se tornarão as ferramentas para
atingir o bem maior, a iluminação e a libertação espiritual. Essa sempre foi a
posição do Budismo, tal como evidenciado pelas próprias escrituras mais
antigas. Devemos lembrar que o Buda, o Iluminado, não é apenas, como o
cientista, um lokavidu, “ um
conhecedor do mundo” mas também e acima de tudo, um vijjacaranasampanno, “perfeito em ambos, conhecimento e
conduta.”
Revisado: 31 Agosto 2002
Copyright © 2000 - 2021, Acesso ao Insight - Michael Beisert: editor, Flavio Maia: designer.