Uma Nota sobre a Liberalidade

Por

Bhikkhu Bodhi

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A repentina entrada em circulação generalizada de um termo bem conhecido com uma nova conotação, com freqüência tem um significado que vai além da mera curiosidade filológica. Visto que a linguagem é moldada pelo pensamento em um nível anterior e mais básico do que aquele de um modelo deliberado, tais mudanças nos usos lingüísticos podem muito bem sinalizar mudanças mais profundas que ocorrem no composto mental daqueles que fazem uso do termo. Elas podem ser vistas como indicadores barométricos de transformações na esfera da consciência - nos nossos padrões de pensamento, nas nossas atitudes, nos nossos objetivos.

Se existe um termo que poderia ser escolhido para caracterizar o clima intelectual e moral dos dias de hoje, esse termo seria "liberalidade". Essa palavra aparentemente incolor veio para marcar a conclusão do embate centenário contra o peso opressivo das tradições estabelecidas em tantas áreas diversas do interesse humano. As suas seis sílabas são um hino de vitória, para o triunfo do método empírico sobre o dogma formulado como a chave para o conhecimento, para a primazia da consciência individual sobre a moralidade prescrita no domínio da ética e nas nossas vidas particulares, para a substituição do reino do superego por uma liberdade recém-descoberta para explorar os canais subterrâneos do impulso e desejo em qualquer direção que eles possam levar.

Talvez, o mais importante é que a noção de liberalidade também aponte para uma atitude particular em relação à experiência, uma atitude que silenciosamente tem permeado a nossa cultura de forma tão completa que agora até parece uma característica inata do temperamento humano. De forma sucinta essa atitude pode ser descrita como a afirmativa suave e afável da experiência na sua totalidade, combinada com uma receptividade flexível a todas as suas possíveis formas. Essa atitude, devemos enfatizar, só raramente se solidifica em uma convicção consciente; normalmente ela está presente no fundo da mente como uma intuição não verbalizada, uma orientação em relação ao mundo, fluída e passível de mudanças. Tendo, historicamente, as suas raízes no declínio generalizado dos sistemas de crenças, centrados em um objetivo transcendente para a vida humana e em uma escala objetiva de valores, a filosofia da liberalidade toma toda verdade como sendo relativa, todos os valores como pessoais e subjetivos. Assim, ela defende que a nossa tarefa na vida é estarmos abertos, tanto quanto possível, para as revelações do milagre da existência e de celebrar as suas infinitas possibilidades.

A disseminação dessa atitude através da cultura em geral também deixou a sua marca nas atuais interpretações do Budismo. Nós, então, notamos que para muitos dos professores Budistas contemporâneos o Dhamma é essencialmente um método para obter a consumação de tudo aquilo que a noção de liberalidade implica. Sob essa perspectiva o Budismo não é uma doutrina com um distinto conjunto de princípios, não é uma disciplina que nos guia para um objetivo supramundano, mas um instrumento para a abertura para o aqui e agora. A deficiência mais fundamental que forma a base do sofrimento humano, acredita-se, é a nossa tendência de nos isolarmos das experiências, de nos fecharmos dentro dos nossos conceitos e julgamentos em um compartimento limitado da realidade. Desenvolvendo através da meditação uma consciência "não seletiva", que não discrimina e que permite a qualquer coisa que surja que ocupe o seu espaço, estamos criando as condições para romper os nossos constrangimentos e nos fundirmos com a torrente dos acontecimentos, de dançar com as "dez mil coisas" - aceitando-as todas sem no entanto nos apegarmos a elas.

Enquanto os defensores da liberalidade são, em geral, hábeis em assimilar os seus princípios ao Dhamma clássico, um exame cuidadoso revela diferenças substanciais entre ambos. Aqui, quero focar somente em algumas diferenças cruciais na sua respectiva orientação em relação à experiência. Deve ser notado de imediato que, enquanto que a escola da liberalidade nos convida a deixar de lado nossas discriminações, julgamentos e autocontrole para que possamos imergir no fluxo dinâmico da experiência imediata, o Buda prescreve uma atitude em relação à experiência que derive de um julgamento moldado com cuidado, que empregue discernimento preciso e que resulte em desapego e autocontrole. Essa atitude, a contrapartida budista clássica para o moderno programa de liberalidade pode ser resumida em uma palavra encontrada em todos lugares nos textos mais antigos. Essa palavra é aplicação (appamada).

Aplicação denota uma atitude de escrutínio crítico dirigido à própria mente, tanto em relação aos seus movimentos internos, como às suas reações aos assuntos externos. O termo sugere esforço diligente e severa atenção, e além disso soa uma nota de cuidado e cautela moral. Assim, a palavra implica, como era a intenção do Buda indicar, que estamos constantemente expostos ao perigo - um perigo que surge de dentro e que se torna ainda mais iminente na medida em que permitirmos que a aplicação escape e escorreguemos para o seu oposto: a negligência (pamada).

Tal cautela é necessária porque as ações possuem conseqüências que se estendem além delas mesmas. Enquanto que a escola da liberalidade tende a subordinar a preocupação com as conseqüências das ações à ênfase sobre a permanência no momento presente, o Dhamma clássico ensinado pelo Buda nos pede para reconhecer que todas as ações volitivas, mesmo os nossos pensamentos e impulsos mais fugazes, são sementes com raízes enterradas no fundo da mente em um passado cujo princípio não pode ser definido, e com o potencial de gerar resultados nos horizontes distantes do futuro. Essas conseqüências das ações a longo prazo são de enorme importância para nós; pois não importa quão distantes da nossa visão elas possam estar agora, quando chegar a hora das nossas ações gerarem os seus frutos, nós mesmos é que teremos de experimentá-las. Como esses frutos são invariavelmente determinados pela qualidade moral das ações, o exame diligente de si mesmo - isto é, a circunspecção - é necessário e urgente para que possamos refrear-nos de praticar aquelas ações que parecem agradáveis mas que geram resultados desagradáveis, e assim possamos nos aplicar naquelas ações que podem ser difíceis mas que produzem benefícios a longo prazo.

A forma de pensar baseada na liberalidade rejeita a dualidade, como um produto da discriminação e dos conceitos deludidos. Ela tacitamente pressupõe que a existência como tal é no final das contas benigna; que mais além dos nossos conceitos deludidos, a rica e vívida diversidade de formas possuem um único sabor, um sabor que é doce. Em contraste, a atitude de se aplicar está baseada na idéia de que a textura da existência é completamente composta por dualidades que são profundas e inevitavelmente reais. O mundo é testemunha dessa visão no contraste entre a superfície sedutora e deliciosa das coisas e o seu vazio e imperfeição subjacentes; as nossas mentes são testemunhas da competição contínua entre os fatores mentais benéficos e os prejudiciais, entre o impulso ascendente pela purificação e o puxão descendente das contaminações. O fato dessa dualidade não ser banal pode ser visto pelas conseqüências: uma conduz a Nibbana, o estado de libertação, o Imortal, enquanto que a outra conduz de regresso ao ciclo de repetidos nascimentos, samsara, que também é o reino de Mara, o Senhor da Morte.

Aplicar-se é considerar essas dualidades plenamente, com as suas profundas implicações. A pessoa que se aplica não tem como objetivo uma consciência não seletiva, aberta para a existência na sua totalidade, pois abrir-se dessa forma é arriscar tornar-se vulnerável, justamente, aos elementos dentro de si mesmo que mantêm a pessoa presa ao reino de Mara. A consciência desenvolvida através da aplicação é construída sobre uma escolha - uma escolha cuidadosa de abandonar aquelas qualidades que a pessoa entende serem prejudiciais, e de desenvolver no seu lugar aquelas qualidades que a pessoa entende serem benéficas, os estados que conduzem à pureza e à paz.

Tanto nas nossas conexões com o mundo como no cortejo íntimo de pensamentos, imaginações e emoções dentro da mente, continuamente nos deparamos com uma bifurcação no caminho. Um ramo dessa bifurcação acena com a promessa de prazer e satisfação, mas ao final conduz à dor e ao cativeiro; o outro, escarpado e difícil de subir, conduz para cima para a iluminação e libertação. Jogar fora o discernimento e o julgamento em troca de uma liberalidade relaxada com relação ao mundo é nublar a importante distinção entre esses dois caminhos bastante diferentes. Ser aplicado é ter consciência da dicotomia e de fazer o esforço para evitar um e perseverar no outro. Como nos faz lembrar o Buda, a aplicação é o caminho para o Imortal, a negligência é o caminho da Morte.

 


 

Nota: Veja também o MN 61 - Ambalatthikarahulovada Sutta

 

 

Revisado: 23 Fevereiro 2002

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