Como Praticar a Contemplação do Corpo
Por
Ajaan Martin Piyadhammo
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A palavra buddho que usamos como objeto de meditação introdutório é uma recordação do Buda. Devemos ser gratos por há 2.500 anos ele ter enfrentado um treinamento inimaginavelmente longo para atingir a iluminação e para nos revelar o Dhamma. Sem ele, não teríamos a menor idéia de kamma, a lei de causa e efeito que nos ensina que todas nossas ações intencionais têm consequências. Não teríamos idéia de que estamos presos em um ciclo interminável de nascimentos e mortes, ou que o paraíso e o inferno existem. Nem saberíamos que há 31 mundos de existência povoados por seres que perambulam por esses mundos vida após vida, e que existem cinco preceitos que, se forem mantidos, impedem que caiamos nos mundos inferiores. Deveríamos ser realmente gratos ao Buda, não apenas porque seu ensinamento ainda existe, mas porque ainda está vivo. Quando digo vivo, quero dizer que o ensino não está apenas registrado em livros mortos, mas ainda está sendo colocado em prática. Continuando, na atualidade, a produzir os resultados prometidos pelo Buda, nomeadamente as realizações dos quatro tipos de Nobres (Ariya-puggala): Sotapanna, Sakadagami, Anagami e Arahant. Na tradição das florestas da Tailândia, esses seres nobres ainda podem ser encontrados hoje, e isso mostra que o ensinamento do Buda ainda está vivo. Devemos ser gratos por encontrarmos um ensinamento que permanece vivo, que nos ensina as quatro nobres verdades e que nos mostra o caminho para a libertação de dukkha.
A primeira é a nobre verdade de dukkha, que está presente em todos os mundos de existência; nos mundos superiores há menos dukkha e nos mundos inferiores há mais dukkha, ou exclusivamente dukkha. A segunda nobre verdade diz respeito à origem de dukkha; todos os nossos desejos causam dukkha, o desejo de existir ou não existir, o desejo de vir a ser, ou não, e assim por diante. A terceira nobre verdade afirma que dukkha pode ter fim, e a quarta nobre verdade é o caminho de prática que leva ao fim de dukkha. Esse é o caminho de prática que estamos seguindo neste monastério, que consiste de três pilares; sila (moralidade ou virtude), samadhi (concentração) e pañña (sabedoria através da investigação). Portanto, devemos ser gratos por termos encontrado o ensinamento vivo de Buda que nos mostra a verdade, a verdade sobre a nossa existência, e isso nos permite encontrar, aqui na Tailândia, representantes de seus ensinamentos que se tornaram Nobres: Sotapanna, Sakadagami, Anagami ou Arahant.
O Buda ensinou que existem dez grilhões (samyojana) que nos prendem aos ciclos de nascimento e da morte. Se rompermos os primeiros três grilhões, alcançaremos o estado de Sotapanna, o primeiro dos quatro estágios de iluminação. O primeiro grilhão diz respeito ao entendimento correto e a necessidade de superar dúvidas ou incertezas, especialmente com relação aos ensinamentos. Por exemplo, precisamos entender que o paraíso e o inferno existem e que há seres nesses mundos. Isto é diferente da visão predominante hoje de que o paraíso e o inferno existem somente nesta Terra. Precisamos aceitar que esses mundos realmente existem; há cerca de 25 diferentes mundos no paraíso e 25 diferentes categorias no inferno. Acreditando que temos apenas uma existência e que a morte é o fim de tudo é um entendimento incorreto. O Buda ensinou que, se não tomarmos a decisão de escapar do círculo vicioso dos renascimentos, teremos que passar pela vida, depois da vida, depois da vida. O Buda também ensinou que kamma existe, que nossos pensamentos, palavras e ações têm resultados e que esses resultados retornam para nós, sejam bons ou ruins. Se alguém não acredita que existem outros mundos e não acredita que kamma existe, se não há confiança nesses ensinamentos, irá permanecer preso ao infindável ciclo de nascimentos e mortes.
O segundo grilhão diz respeito à virtude e manter os cinco preceitos de forma irregular: mantê-los, transgredi-los, depois mantê-los por um tempo e transgredi-los novamente, ou até mesmo não mantê-los. Esse grilhão também nos aprisiona e, para removê-lo, precisamos decidir manter os cinco preceitos a partir de um determinado momento e mantê-los pelo resto de nossas vidas. Uma vez tomada essa decisão, esse grilhão não irá interferir na nossa prática.
O último dos três primeiros grilhões é a crença de que o corpo é "eu" - e esse é o grilhão mais problemático. Para remover esse grilhão, temos que investigar o objeto ao qual estamos mais apegados, a saber, o corpo. Como disse antes, a causa de dukkha é o desejo; desejar ser ou desejar não ser, assim desejar ou não desejar um corpo também é dukkha e faz parte desse grilhão. Temos que investigar a natureza do corpo e entender que não é nada além de um robô biológico que habitamos. Nós o guiamos, o movemos e fazemos com que realize tarefas, mas não tem nada a ver com a citta que está no interior. A citta diz ao corpo para se mexer, abrir e fechar os olhos, dormir, comer e beber. Sem a citta não haveria movimento. O apego ao corpo é um dos grilhões mais difíceis de lidar. Para superá-lo, o Buda ensinou a prática de asubha - vendo os aspectos repulsivos do corpo. Isso não significa que temos que tornar o corpo repugnante, como algumas pessoas pensam, mas sim que precisamos ver sua repugnância. O corpo é o maior obstáculo na nossa prática, particularmente para pessoas do Ocidente. Quando chegam ao monastério, todas as suas perguntas e todos os seus problemas estão relacionados ao corpo, quer seja a meditação andando ou sentada; sentir cansaço, fome, calor ou frio - todos são problemas relacionados ao corpo, problemas que começam com o corpo. Elas dizem: "Não consigo sentar por muito tempo" ou "Não consigo andar por muito tempo", mas isso não tem nada a ver com o treinamento da citta que está no interior do corpo. O apego ao corpo é realmente um grande problema para as pessoas. Naturalmente, esse apego também pode estar na direção negativa; algumas pessoas realmente detestam o próprio corpo, mas isso não libera o grilhão, porque não gostar do corpo é um grilhão da mesma forma que amá-lo. Por exemplo, as pessoas mais velhas tendem a não gostar de seus corpos porque não funcionam tão bem como antes, mas ainda assim ficariam felizes em ter outro corpo mais jovem que fizesse o que quisessem. A libertação desse grilhão só acontece investigando o corpo tal como ensinado pelo Buda, fazendo a pergunta “O que é este corpo?” Vendo-o como repugnante e decadente. Temos que ver isso. "O que é o corpo? Terra, ar, água ou fogo?" Esses quatro elementos compõem o corpo e, para entender sua verdadeira natureza, temos que investigar o corpo em todos os seus aspectos.
A prática de investigação do corpo continua ao longo dos primeiros três dos quatro estágios da iluminação. Os resultados dessa prática nos permitem avançar até o primeiro estágio da iluminação, sotapanna, em que o grilhão que consiste na visão equivocada da identidade - a visão de que esse corpo é "eu" - é desfeita. O segundo estágio da iluminação é sakadagami, que retorna uma vez. Para realizá-lo, a investigação do corpo é necessária para entender que o corpo é o vaso no qual a planta da cobiça e da raiva está enraizada, de modo que a delusão do corpo possa ser destruída. Se alguém tiver destruído em 50% a cobiça e a raiva, terá atingido o estágio de sakadagami. Somente o anagami, que não retorna, conclui a tarefa de investigar o corpo pois destruiu a delusão do corpo por completo e destruiu a cobiça e a raiva. Os anagami destruíram o vaso no qual a cobiça e a raiva estão enraizados; a natureza do corpo tal como é foi vista. Cada parte do corpo composta dos quatro elementos - terra, ar, água e fogo foi vista; o corpo foi visto como repugnante e não-eu. Ele entendeu tanto a natureza do corpo quanto a natureza da cobiça e da raiva que estão enraizadas no corpo, visto que a cobiça e a raiva são o apego ao corpo, quer queiramos ou não.
A maior parte do trabalho que empreendemos para desenvolver a sabedoria no caminho espiritual diz respeito à investigação do corpo. Temos que fazê-lo completamente, ano após ano, até sabermos que terminamos a tarefa e avançamos para o estágio de anagami. O anagami no entanto ainda tem que se livrar de outros cinco grilhões, e a tarefa também tem que ser finalizada, envolvendo a investigação dos quatro nama khandhas (sensações, percepções, formações mentais, consciência). A investigação do primeiro dos khandhas, o corpo (rupa) junto com as sensações no corpo foi concluída, mas ainda falta investigar os quatro nama khandhas, fazendo isso da mesma maneira que a investigação do corpo, vendo como operam e vendo pelo que na verdade são.
A investigação do corpo constitui uma parte significativa da prática, mas é algo que não gostamos de fazer. O corpo é o brinquedo favorito das kilesas; as kilesas sabem que se descobrirmos e virmos o corpo como na verdade é, nunca mais retornaremos - nem para os mundos paradisíacos, nem para o mundo humano e nem para os infernos. Por conseguinte as kilesas vão dificultar muito o nosso progresso, sendo que por isso temos que colocar muito esforço e muita determinação na prática. Também precisamos desenvolver sati (atenção plena) - sendo que isso é o mais importante. Sati é como uma lanterna que olha dentro do corpo e vê como é. Nós todos sabemos que quando abrimos o corpo, não gostamos do que vemos. Essa é uma resposta natural, então não precisamos aprender que o corpo é repugnante, a sensação simplesmente surge. Na verdade, nem precisamos abrir o corpo; apenas temos que olhar para aquilo que sai do corpo. Nós gostamos, amamos ou pensamos ser atraente, seja o que for que colocamos dentro do corpo ou sobre o corpo, mas ficamos enojados com qualquer coisa que saia do corpo. Isso parece natural e está de acordo com as nossas ideias. Não gostamos de ver o excremento saindo, mas gostamos de comer; não gostamos da urina saindo, mas gostamos de beber. Não gostamos do suor saindo, da sujeira que vem dos poros da pele, porque cheira mal. A sujeira não vem de fora, vem de dentro - a gordura, o cheiro e o fedor podre de um peido vindo dos intestinos. Nós gostamos dessas coisas? Não. Por que não? Porque isso tudo destrói a ideia que o corpo é algo bonito, perfeito e desejável.
Tudo que fazemos com esse corpo é alimentá-lo, abrigá-lo, vesti-lo e cuidar quando estiver doente. Toda nossa vida é construída em torno desse corpo. Quando olhamos para as nossas próprias vidas, na medida em que o corpo cresce e se desenvolve, observamos que tivemos que treiná-lo, torná-lo confortável e desenvolver a inteligência para que possa nos ser útil. Depois de 16 a 18 anos, uma vez que o corpo é capaz, nos consideramos adultos, e não precisamos mais ter os cuidados dos nossos pais. Então, começamos a trabalhar para ganhar dinheiro para alimentar o corpo, abrigá-lo, vesti-lo e cuidar de sua saúde. Quando olhamos para as vidas das pessoas, isso é tudo que elas fazem. Quanto tempo em geral a pessoa realmente usa o corpo para o seu prazer? Muito pouco. Ela trabalha por oito horas, chega em casa, alimenta o corpo, descansa, assiste TV e vai dormir, acordando na manhã seguinte para fazer a mesma coisa. Ela vai para o trabalho, dia após dia, para quê? Para abrigar, vestir e alimentar o corpo e cuidar de sua saúde. Quando olhamos para as 24 horas em um dia normal, quanto tempo de fato NÃO estamos pensando no corpo, alimentando-o, abrigando-o e vestindo-o. Muito pouco. Mesmo nos finais de semana, ainda temos que alimentar e descansar o corpo, e ainda nos importamos com o corpo. Algumas pessoas exercitam, treinando o corpo para ser saudável: correndo, pedalando ou escalando. Tudo diz respeito ao corpo, então imagine quão difícil é a tarefa de praticar a investigação do corpo, dividi-lo em partes e afrouxar o nosso apego. Pensem nisso: são necessários três estágios de iluminação para se livrar do apego ao corpo, e cada passo é um passo importante. O passo para sotapanna é provavelmente um dos mais difíceis - desfazer a identificação com o corpo.
O Buda oferece uma analogia para ajudar a quebrar o apego ao corpo - o exemplo de uma carroça. Podemos desmontá-la e colocar os pedaços e partes lado a lado: rodas, tábuas, porcas e parafusos, e nos perguntar "Onde está a carroça?" Quando olhamos para as partes, não podemos ver uma carroça, mas quando as montamos novamente, a carroça repentinamente reaparece. Podemos fazer o mesmo exercício com o corpo, desmontando-o mentalmente em suas partes componentes. Comece com as mãos: podemos cortar a mão esquerda, ver do que é feita e colocá-la à nossa frente.
Depois pegamos a outra mão, cortamos, olhamos os ossos, os músculos, os tendões, a pele e os vasos sanguíneos, e colocamos na nossa frente. Agora, temos as duas mãos na nossa frente e podemos visualizá-las claramente. Depois de cortá-las, elas não são mais nossas mãos, mas simplesmente partes do corpo. Então, da mesma forma, cortamos o antebraço direito, colocamos na nossa frente e olhamos, fazendo o mesmo com o antebraço esquerdo. Agora, podemos visualizar duas mãos e dois antebraços. Fazemos o mesmo com o braço direito e o braço esquerdo e os colocamos na nossa frente e depois continuamos com os pés direito e esquerdo. Quando tiramos cada parte, olhamos vendo os ossos, os vasos, a pele, os músculos e os tendões. Na medida em que cada parte é colocada à nossa frente, deixa de ser "eu" e "meu", porque algo ali permanece sentado, observando as partes. Continuamos fazendo isso com as outras partes do corpo, cortando-as parte por parte e colocando-as na nossa frente. Estando na nossa frente, significa que não estão mais no lugar onde estamos sentados, mas ainda temos a noção que o corpo é "eu" e "meu". Então, continuamos fazendo isso até que a cabeça se torne a última parte a ser colocada à nossa frente. Nós a colocamos na nossa frente, com os olhos voltados na nossa direção, para que possamos ver claramente. De repente, todas as partes do corpo estão na nossa frente, e nos encontramos olhando para todo o corpo desmontado. Essa prática pode ser feita com as partes do corpo maiores e mais grosseiras, tal como foi descrito, ou pode ser feita com mais detalhes. Além disso, as partes podem ser bem organizadas à nossa frente, ou simplesmente jogadas em uma pilha. Mas sempre que tiramos uma parte e a colocamos na nossa frente, é importante que a parte seja vista ali, realmente seja vista ali. Fazendo essa prática com frequência, cedo ou tarde, ocorre um momento súbito no qual o "eu", a citta, se separa do corpo. Esse insight, essa percepção súbita, decorrente dessa contemplação do corpo é tudo que precisamos para romper a auto-identificação com o corpo.
Este é apenas um dos métodos para praticar a contemplação do corpo. Descrevi este método porque o Buda deu a analogia do corpo como uma carroça que pode ser desmontada em suas partes componentes. Onde está a carroça depois de desmontada e onde está o corpo quando todas as suas partes estão dispostas na nossa frente? Mas, por favor, entenda que é necessário tornar essa experiência real - devemos realmente ver as partes à nossa frente e realmente sentir que elas não fazem mais parte do nosso corpo depois de cortadas. No final veremos apenas uma coisa - a citta sentada observando as partes do corpo. E se fizermos isso com bastante frequência, a delusão, a identidade do corpo como "eu" se romperá. Então, se estivermos livres dos outros dois grilhões, esse grilhão - a crença de que o corpo é o "eu" - será destruída.
Claro, também podemos praticar asubha e ver a repugnância do corpo. Por exemplo, quando fechamos os olhos, podemos nos visualizar olhando no espelho tirando a pele para ver como o corpo fica. Mas temos que tornar isso real, não apenas uma vaga imaginação. Temos que sentir, como se estivéssemos pegando uma faca afiada e cortando o meio do seu rosto, cortando para baixo a partir do topo da cabeça e lentamente puxando a pele para longe. O que vemos? Então nos afastamos mais. O que vemos? Uma bagunça sangrenta. Em seguida, nos afastamos mais e mais até que não haja mais pele e olhamos no espelho. É claro que dói - um arrepio percorre a espinha quando abaixamos a faca e vemos sangue pingando. Precisamos sentir que é real; tudo que precisamos fazer é sentir que é real. Quando afastamos a pele, vemos o que está por baixo. Podemos tirar os olhos, cortar o nariz, tirar os lábios, remover a carne e descer até o esqueleto. Todos nós já vimos esqueletos, então sabemos como são. Podemos remover a pele da cabeça, doa ombros e ir pouco a pouco pelo corpo, e depois remover um órgão após o outro. Depois de remover a pele, observamos de perto - o exterior e o interior. Tem pêlos e cabelos do lado de fora, particularmente a pele da cabeça, tem poros e na parte de baixo há gordura amarela. A pele é o revestimento que nos protege de ver a repugnância do corpo; é a pele que produz a forma que desejamos. Normalmente, vemos o corpo como uma coisa boa - o cabelo na cabeça, os pêlos no corpo, os dentes, as unhas e a pele. Essas coisas nos fazem pensar que há algo bonito e desejável, mas no momento em que cortamos a pele, vemos que não há absolutamente nada desejável. Se abrirmos a pele de amigos ou amantes, não teremos vontade de abraçá-los, já que tudo o que veremos é uma bagunça sangrenta com a gordura amarela pendurada, a carne, os tendões e uma confusão macia e aquosa por dentro. Realmente queremos abraçar alguém assim? Sentimos vontade de beijá-los? Sonhamos em ter relações sexuais com alguém sem pele? No momento em que vemos a repugnância do corpo sem pele, os pensamentos de desejo simplesmente desaparecem. As kilesas precisam pintar quadros repletos de peles desejáveis e formas bonitas; é isso que querem, mas no momento em que mostramos para as kilesas a repugnância do corpo - phut! De repente, surge o nojo. As kilesas que ficam excitadas são as mesmas kilesas que ficam com nojo, sendo essa a razão porque fazemos a investigação do corpo, por isso que temos que destruir a delusão de que o corpo é algo bonito. É claro que, se continuarmos fazendo essa prática, vamos irritar as kilesas e elas reagirão. No momento em que pratiquemos a contemplação do corpo do modo correto, as kilesas começarão a reagir. Em primeiro lugar, surge uma ligeira irritação - ficamos irritados com coisas que não nos incomodavam antes. Isso mostra que a prática está indo na direção certa, porque nós realmente temos que perturbar as kilesas se quisermos destruir seu apego ao corpo.
Continuando com a investigação do corpo, podemos tirar a pele, descascar a pele, remover os tendões e músculos, cortar as costelas, tirar e sentir os pulmões viscosos e trêmulos, tirar e sentir o coração, e fazer o mesmo com os rins. Então vá para o estômago que acaba de receber algo delicioso para digerir. Abra e olhe para dentro do estômago, veja o que aconteceu com a comida - cheire, sinta, enfie os dedos nela. Porém, por favor lembre-se que o objetivo dessa prática não é tornar o corpo repugnante; a aversão surge por si só. No momento em que vemos a realidade do corpo, sentimentos de nojo surgem automaticamente dentro do coração - não é preciso tornar o corpo repugnante porque já é repugnante; simplesmente não gostamos daquilo que vemos. Por exemplo, qualquer coisa que entre parece bonita e qualquer coisa que saia parece repugnante, por isso, não precisamos estimular o nojo pois os nossos instintos naturais são ver aquilo que sai como imundo.
Quanto mais investigamos o corpo, mais nos acostumamos: tirando os órgãos, abrindo-os, vendo-os, sentindo-os, segurando-os em nossas mãos, vendo a massa trêmula e viscosa que constitui cada órgão. Todo cirurgião sabe qual a aparência e qual a sensação ao ver o corpo por dentro, mas ele não associa esse conhecimento com o seu próprio corpo, e ele relutaria em abrir o corpo de sua esposa ou namorada. A memória residiria dentro dele e ele não seria capaz de dormir com ela ou acariciar o seu corpo, porque sempre que olhasse para ela, veria o interior e se sentiria enojado. Por isso que os cirurgiões só operam outras pessoas, não seus familiares ou parceiros. Não é necessário dizer para os cirurgiões que os corpos são nojentos. A primeira vez que um estudante de medicina abre um corpo ele desmaia ou vomita, mesmo que os alunos mais velhos avisem os alunos mais novos que isso irá acontecer. A reação automática das kilesas ao ver um corpo aberto é desmaiar ou vomitar. Queremos que a repugnância fique escondida sob a pele, mas temos que olhar. Por isso que realmente temos que investigar a pele: arrancá-la, colocá-la de volta, arrancá-la, colocá-la de volta e ver a diferença. Experimente com seus entes queridos, com sua antiga namorada ou namorado favorito, marido ou parceiro. No momento em que você os vê como um todo, há desejo; no momento em que você os abre, não há desejo. Então, quando são recompostos, o desejo reaparece, mas quando são abertos novamente, o desejo desaparece.
Uma das coisas mais difíceis na prática da meditação é lutar contra raga-tanha (desejo sensual ou sexual). Esta é uma grande batalha e as kilesas não cedem facilmente. Como já disse, se a contemplação do corpo for praticada corretamente, a irritação surge no começo, mas a irritação lentamente se aprofunda e se transforma em raiva. De repente, não apenas estamos irritados, mas nos tornamos rancorosos; quanto mais nossa prática se aprofunda no corpo, mais as kilesas reagem e mais raiva surge. Isso significa que precisamos tomar muito cuidado ao fazer a investigação do corpo. Se praticar em casa como um leigo, tente se manter longe de outras pessoas, porque sem perceber, a raiva que surge durante a investigação pode explodir em outra pessoa, qualquer outra pessoa. Pensamentos ou palavras raivosas podem surgir, e a outra pessoa nem saberá o que está acontecendo. Portanto, tenha cuidado e esteja avisado - a investigação intensa do corpo induz a raiva. Para o praticante, no entanto, esta é uma grande oportunidade, pois uma das razões para investigar o corpo é ver a raiva que surge e aprender como lidar com isso.
Nesta prática, temos que ser capazes de lidar com a raiva e a cobiça de uma maneira que seja saudável. No começo, investigamos a raiva porque a cobiça é difícil de controlar; com a cobiça, tendemos a simplesmente querer algo e, na maioria das vezes, cedemos. Mas a raiva é mais fácil de investigar porque fica mais tempo e não é fácil de se livrar. A maneira como lidamos com a raiva é semelhante à maneira como lidamos com a dor. Quando nos sentamos por muito tempo, surge a dor, e a prática é simplesmente ficar com a dor pelo tempo que for necessário, investigando a dor e procurando sua fonte. A investigação do corpo também envolve comparar a cobiça e a raiva quando surgem, investigando uma e a outra e perguntando qual é a diferença entre as duas. Então, podemos voltar ao sentimento básico de raiva e ao sentimento básico da cobiça; quanto mais profunda for a nossa investigação, menos diferença encontraremos. Cobiça e raiva são dois lados da mesma moeda. A mente diz que isso é desejável (cobiça) e aquilo é detestável (raiva), mas a diferença é apenas uma delusão criada pelas kilesas. O que as kilesas querem é cobiça e aquilo que não querem é raiva, mas a sensação subjacente é a mesma.
No início a investigação do corpo será muito, muito difícil. Claro, nós na verdade não pegamos uma faca e cortamos o corpo, fazemos isso em nossa imaginação, e geralmente no começo é necessário empregar imagens, pois pode ser difícil ver o corpo como na verdade é. A citta já conhece o corpo de uma certa forma, se treinarmos a citta, eventualmente seremos capazes de criar imagens reais do nosso próprio corpo. Também podemos usar imagens de outros corpos em vez dos nossos - é nossa decisão qual escolher. Pode ser mais fácil inicialmente treinar a citta para usar os corpos de outras pessoas, cortando-as em pedaços para ver a repugnância. Ou podemos usar o cadáver de um animal, como uma galinha por exemplo, ou observar a decomposição de ratos mortos por 15 dias; olhe para essas coisas, cheire-as. Nosso corpo não é diferente. Se visitarmos um matadouro, lembraremos muito do nosso próprio corpo ali pendurado. As partes do corpo chamadas carne e músculo que adoramos cozinhar, grelhar ou fritar e adoramos colocar nas nossas bocas não são tão diferentes das nossas. Se pendurarmos nosso próprio corpo em um matadouro e cortar a cabeça, braços e pernas, não será muito diferente do torso de qualquer outro animal. Os animais que adoramos comer todos têm corações, estômagos e rins - onde está a diferença?
Nos primeiros estágios da prática, a citta ou as kilesas não estão dispostas a revelar imagens verdadeiras, então podemos contar com imagens anatômicas que achamos repugnantes de livros ou outras fontes. Podemos escolher aquela imagem que achamos mais repugnante, olhar por cinco minutos, fechar os olhos e, em meditação, reproduzir a imagem mental até podermos retê-la e vê-la claramente. Uma vez que aprendemos a usar imagens dessa maneira, podemos dar o próximo passo para ver a natureza real do corpo. Nós fazemos um tour pelo corpo, olhando as 32 partes; uma parte se tornará mais interessante que as outras, e podemos tomá-la como tema. Se por exemplo estivermos realmente interessados no fígado, em vez de usar a palavra buddho como objeto de meditação, podemos pensar “fígado, fígado, fígado”, tentando produzir a imagem do fígado na nossa mente até que fique clara e comecemos a vê-la. Pode levar algum tempo para fazer isso, não apenas um ou dois dias, mas meses ou anos. Então, não desista e diga: "Isso não está funcionando para mim"; não diga isso a si mesmo. Na verdade, está funcionando, mas pode levar algum tempo dependendo da capacidade de visualização da citta. Precisamos ser capazes de visualizar imagens para investigar o corpo, mesmo nos estágios iniciais, quando colocamos pedaços do corpo à nossa frente. Temos que nos treinar para de alguma forma visualizar; há livros de imagens asubha, ou imagens mostrando o resultado de acidentes, que às vezes são apresentadas em detalhes gráficos em jornais tailandeses. Uma vez que tenhamos treinado, usando essas imagens até que possamos visualizá-las internamente, então poderemos visualizar o nosso próprio corpo ou o corpo de outra pessoa e começar a cortá-lo. Podemos tomar uma parte diferente em cada vez; se hoje estamos investigando o cabelo, podemos focar em um fio de cabelo, repetindo mentalmente “cabelo, cabelo, cabelo” até ver a imagem e depois cortá-la, vendo o que é, vendo sua verdadeira natureza. Qualquer parte do corpo servirá - cabelo, rins, coração, dentes, pulmões, etc. Novamente, podemos pegar todo o corpo, visualizá-lo se decompondo e colocá-lo sobre um fogo; enquanto queima, vemos as substâncias que exsudam em vários estágios e observamos o que resta no final. Podemos optar por trabalhar com todo o corpo ou partes do corpo - o que nos interessar nesse dia. Qualquer uma das 32 partes do corpo serve, e podemos pegar uma parte diferente a cada dia ou ficar com uma delas por vários dias. Seja qual escolhermos, pegamos, sentimos, cheiramos e entendemos a sua natureza. Poderíamos, por exemplo, ver como o corpo se desintegra nos quatro elementos: terra, fogo, ar e água, para perceber que cada parte do corpo é composta dos mesmos quatro elementos.
Não fique frustrado ou chateado por não funcionar no primeiro dia, na primeira semana, ou mesmo no primeiro ano. Temos que realizar essa prática todos os dias e também precisamos de sati (atenção plena). Se sati não for forte o suficiente, a contemplação do corpo levará muito tempo, mas se a prática for afiada será mais rápida. Então, ao fazer a investigação do corpo não devemos esquecer de estimular sati, afiar a faca que usamos para cortar o corpo. De fato, esta prática é similar ao desenvolvimento de samadhi em que usamos a palavra buddho internamente repetidas vezes. Nos estágios iniciais da contemplação do corpo, repetimos “cabelo, cabelo, cabelo” e tentamos visualizar o cabelo - é semelhante à prática de samadhi, mas com visualização. Mais pra frente no entanto, a imagem se torna mais clara, e conseguimos cortar o corpo, queimá-lo ou fazer aquilo que facilitará entender sua natureza. Podemos investigar tudo dessa maneira; dor, cobiça, ódio - qual é a sua natureza? É particularmente importante descartar qualquer conhecimento médico que tenhamos sobre o corpo. Nesta prática, queremos ser como um bebê recém-nascido; tudo que ele toca coloca na boca e brinca para entender do que se trata. Na investigação do corpo, temos que nos tornar como esse bebê recém-nascido que toca e brinca com um objeto até que sua função seja compreendida e tudo sobre o objeto seja conhecido. Normalmente, sabemos os nomes das coisas, como por exemplo fígado, mas na verdade não sabemos o que é "fígado". Qual é a diferença entre o fígado e os rins, entre cobiça e raiva, entre desejo e raiva, entre dor e êxtase? Temos que investigar, para conhecer essas coisas e entender sua verdadeira natureza.
Temos que nos esforçar muito para fazer essa prática, e o tempo que leva depende do caráter de cada pessoa. Mas por favor não me diga que não funciona. Vai funcionar. Vai funcionar no seu próprio tempo. Para uma pessoa o progresso será rápido, para outra lento. Para alguns, pode levar uma vida inteira, para outros, alguns anos. Para Luangta Maha Bua, cujo samadhi era excelente, levou oito meses; mesmo com o samadhi super afiado, como um laser, ainda levou oito meses. Onde quer que colocasse sua atenção, ele cortava. Nossa atenção se torna difusa em um ou dois segundos, então não vemos objetivamente aquilo que estamos investigando; se esse for o caso, não entenderemos a verdadeira natureza do corpo. Além disso, ficamos iludidos por nossas ideias e opiniões, especialmente ideias e opiniões médicas sobre o corpo que são inúteis para este tipo de investigação. Pessoas com experiência médica tendem a ter dificuldade em investigar o corpo, porque tudo o que vêem é um atlas anatômico, mas não é isso que queremos saber ou entender. Então, pessoas com formação médica terão que tornar a investigação mais real; tomando uma serra grosseira e cortando o corpo, sentindo realmente a dor; só então conseguirão investigar o corpo.
Para resumir, a investigação do corpo revelará a verdadeira natureza do corpo e destruirá o desejo e a raiva, especialmente o desejo sexual ou sensual. Esta prática leva-nos através das três primeiras etapas da iluminação: Sotapanna, Sakadagami e, finalmente, Anagami, respectivamente aquele que entrou na correnteza, aquele que retorna uma vez e aquele que não retorna.
Revisado: 20 Dezembro 2018
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