A Nobre Verdade da Cessação
Por
Ajaan Pasanno
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Recentemente retornei para Abhayagiri depois de estar afastado em um retiro sabático de quinze meses na Tailândia. A oportunidade de estar num retiro prolongado sem quaisquer responsabilidades foi muito valiosa. Além de dar um discurso do Dhamma uma vez por mês, não fui a muitos lugares ou fiz muitas coisas. A maior parte do meu tempo esteve focado na prática, reflexão, investigação e estudo. A situação estava muito tranqüila, com as condições ideais.
Antes de viajar, pensei muito sobre onde gostaria de passar esse tempo. Recebi convites de pessoas de todas as partes do mundo oferecendo-me lugares para ficar, mas decidi ir para a Tailândia, onde vivi durante 23 anos. Uma das razões por que escolhi regressar por um tempo para a Tailândia, depois de ter estado no Ocidente durante nove anos, foi para mudar completamente o ambiente - voltar a um lugar onde ser um monge Budista não é nada de especial. Eu poderia simplesmente ser um monge comum esmolando comida e vivendo em retiro. Não é necessário ficar se explicando ou de ser alguma coisa ou alguém - existem literalmente milhares de outros monges ao redor.
Foi muito estimulante estar novamente de volta nesse ambiente. Em um certo nível, a cultura tailandesa é baseada em uma relação quase pré-verbal com o Budismo. A profundidade da fé e da devoção é muito sólida. Essas qualidades permitem que o praticante se relacione com a prática de maneiras que se alinham totalmente com a cultura. Tudo parece muito natural; quase todos estão familiarizados com o ritmo da vida diária de um monge. Quanto a mim, apenas realizando a prática e deixando que ela me levasse ajudou a possibilitar que o Dhamma aparecesse por conta própria.
Penso que para nós ocidentais há um forte senso de querer resolver as coisas e acertar tudo, mas essa abordagem não é particularmente útil. Na verdade se trata de realmente entregar-se para a prática e, em seguida, renunciar a seu favor. Tudo com o que precisamos nos ocupar está refletido nas Quatro Nobres Verdades: na nobre verdade do sofrimento, na nobre verdade da causa do sofrimento, na nobre verdade da cessação do sofrimento, e na nobre verdade do caminho para o fim do sofrimento.
No seu primeiro discurso (SN LVI.11), o Buda descreve as quatro qualidades que fornecem a base para a cessação do sofrimento. Somos bastante habilidosos em focar na verdade do sofrimento e às vezes podemos pensar nas suas causas, mas quando se trata da cessação do sofrimento, geralmente não damos muita atenção. A tendência é esperar que o fim do sofrimento aconteça:
"Talvez desapareça num flash de insight ou se manifeste de alguma forma gloriosa, com luzes brilhantes e claros presságios de ter alcançado algo."
Estes são hábitos equivocados que aumentam o sofrimento, em vez de dar-lhe um fim. Enquanto esperamos que o sofrimento cesse no futuro, perdemos a oportunidade de nos vermos livre dele, exatamente aqui, exatamente agora.
Nesse primeiro sutta, o Buda aponta quatro aspectos da Terceira Nobre Verdade - caga, patinissagga, mutti e analaya - que são a causa direta para cessação do sofrimento (nirodha).
Caga e Patinissaga: Dar e Abandonar
Caga, a primeira qualidade, é um termo que é usado como sinônimo de doação e generosidade. Nós nos damos para a prática, para as qualidades de generosidade, bondade e compromisso. Caga também tem um elemento de abandono e renúncia. Há um sentido de nos entregarmos à prática e de sermos capazes de abandonar completamente as coisas que nos estão obstruindo. A capacidade de abrir mão permite o surgimento do não-sofrimento. Por conseguinte é a dupla capacidade de dar e abrir mão que permite que o não-sofrimento surja. Somos capazes de reconhecer: "Esse é um obstáculo que não é útil. Por que continuar agarrado nisso? Por que morder ainda mais forte e continuar mastigando? Simplesmente cuspamos isso fora."
A palavra em pali patinissagga é semelhante e refere-se ao abandono, mas a sua essência diz respeito à noção do eu, meu. Nos sintonizamos no tagarelar constante da mente de "eu quero, eu preciso, eu tenho que ter" reconhecendo tudo isso como sufocante e opressor. Abrimos mão dos hábitos egoístas e mesquinhos, e como resultado, nos sentimos em paz, felizes e contentes.
Com freqüência, abrir mão de atitudes intolerantes ou egoístas é difícil e doloroso. Baseados em quão especiais ou merecedores pensamos que somos, pode ser difícil abrir mão de uma oportunidade de ser o dono da verdade ou querer ser elogiado. A mente não treinada deleita-se em dar grande importância a esse tipo de fixação. Às vezes, é óbvio quando o senso de "eu" e "meu" toma conta: parece que surge da boca do estômago e nos agarra pela garganta. Em outros momentos, é mais sutil, disfarçado sob o manto da racionalidade. Há infinitas maneiras para justificar sentir-se ofendido, insultado, ou rejeitado. É quando a libertação do sofrimento parece sem esperança: "Será que tudo isso faz sentido?"
Precisamos praticar abandonar a noção de um eu que coalesce em torno do que o Buda chamou os cinco khandhas: forma, sensação, percepção, formações mentais e consciência. Qualquer noção de um eu está presa a esses agregados.
Ajaan Buddhadasa, um professor altamente respeitado na Tailândia, costumava dizer que o problema dos seres humanos é que nós tendemos a ser ladrões, e ladrões tendem a ser pegos. Ele não estava se referindo tanto ao mundo material; ele estava se referindo à apropriação ou à apropriação indevida de elementos da natureza e vê-los como "eu e meu." Nós fabricamos a noção de um eu, que depois carregamos por aí como se fosse verdadeiro. O corpo não é realmente nosso, então levando-o como se fosse, e afirmando aos quatro ventos que somos o genuíno proprietário, faz com que sejamos um ladrão, ou pelo menos um fraudador e um vigarista. "Ser pego" acontece quando experimentamos o desconforto do envelhecimento, da doença, ou do corpo não obedecer aos nossos desejos de conforto e bem-estar.
Todo mundo tem um corpo, sensações, pensamentos, percepções e memórias, mas precisamos reconhecê-los pelo que eles realmente são. Os agregados são elementos da natureza que surgem e desaparecem por conta própria. Não faz sentido se enroscar com qualquer um deles. Pense sobre isso. É um problema ter um pensamento tolo? Não, o pensamento não é um problema. O problema é que acreditamos nos pensamentos e os vemos como aquilo que realmente somos. Nós julgamos a nós mesmos de acordo com as palavras que atravessam a nossa mente: "Oh céus, eu sou uma pessoa terrível" ou "Eu sou uma pessoa muito boa." Na verdade, são pensamentos, sensações, e percepções, surgindo e desaparecendo. Criamos a história, e a história sempre termina em sofrimento.
O esforço para ver os agregados com clareza não significa que estamos tentando alcançar um estado de vazio, sem sensações, percepções, ou emoções - esse não é o objetivo. Trata-se de reconhecer, "Esta é a maneira como as coisas são. Esta é a forma como a natureza é." Nesse momento de reconhecimento somos livres. Abrir mão não nos deixa despojados, mas nos enriquece e nos coloca num lugar de não-sofrimento.
Mutti e Analaya: Liberdade e Não-reatividade
Mutti, a terceira qualidade, refere-se à liberdade que tem origem ao abrir mão estando dentro do mundo dos fenômenos inconstantes. Temos a opção de dar atenção às coisas de uma maneira diferente. Há o entendimento de que podemos realmente ser livres dentro de qualquer experiência, quer seja agradável ou desagradável. O habitual empurrar e puxar na mente, a aprovação de uma coisa e a desaprovação de outra é, em si, uma oportunidade para que o abrir mão e a liberdade possam surgir dentro dessa experiência. Queremos criar mais sofrimento ou permitir que cesse?
Analaya refere-se à qualidade de não-reatividade que surge a partir da clareza e estabilidade da mente. Desejos, humores, impressões e apegos simplesmente não colam ou grudam. Essa ausência de grude não surge porque a mente está em algum tipo de ignorância bem-aventurada; ela surge porque a mente está pronta para abrir mão. As condições do mundo - ganho e perda, elogio e crítica, fama e má reputação, alegria e tristeza - todas tornam-se irrelevantes. A mente não está interessada em ser pega ao acreditar em humores, impressões e sensações. A mente reconhece: "Assim é como as coisas são. Assim é a natureza." Por que iniciar uma batalha que estamos destinados a perder?
Para remover os padrões dolorosos inconscientes que obstruem a cessação do sofrimento, devemos prestar muita atenção na estabilidade da mente. Ao trazer essa qualidade para o primeiro plano na nossa consciência, o sofrimento cessa por conta própria. Não há lugar para a noção do eu ganhar força.
Precisamos prestar atenção à forma como abordamos a prática. As qualidades fundamentais de fé e devoção são muito importantes, não de uma forma sentimental, mas de uma forma que permita o Dhamma florescer. Essas qualidades não surgem a partir do tipo de regime feroz que acontece num campo de treinamento. Elas surgem por causa do nosso compromisso e respeito pelo treinamento.
Isso significa aplicar-nos - temos que estar dispostos a experimentar, aprender e investigar. Precisamos prestar atenção quando o coração é amplo. Quando está contente? Quando se sente livre? Como devemos fazer isso? Como podemos entrar em sintonia com isso, em vez de absorver as inúmeras maneiras de criar mais complicações na mente?
O Dhamma e as Quatro Nobres Verdades se revelam quando nos abrimos para a prática e nos entregamos inteiramente. Permanecer no não-sofrimento é o nosso verdadeiro refúgio. São esses quatro fatores: caga, patinissagga, mutti e analaya, que compreendem a Terceira Nobre Verdade da cessação do sofrimento e que nos permitem realmente experimentar isso.
Notas:
Veja também os comentários de Ajaan Brahm.
Fonte: Don't Hold Back, Abhayagiri Forest Monastery, 2013.
Revisado: 10 Janeiro 2015
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