Aprendendo com o Buda
Por
Bhikkhu Bodhi
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O tema deste Retiro do
Dharma pode ser descrito como a importância de combinar o estudo com a prática.
Nos dias de hoje, aqui nos Estados Unidos, há um grande interesse pelo Budismo
em muitos níveis. Com freqüência, no entanto, os praticantes e estudiosos estão
separados por uma grande distância, quase como se vivessem em mundos distintos.
Muitos daqueles que se consideram praticantes do Budismo consideram que a
prática Budista consiste apenas de meditação, perseguida em separado de um
entendimento mais amplo do Dharma. Isto algumas vezes conduz a radicais novas
interpretações dos ensinamentos, que transformam o Dharma em um antigo sistema
de psicoterapia que transcende o indivíduo ou uma mera ‘arte de vida,’ uma
maneira de viver feliz e em paz aqui e agora. Isto pode ser bom até onde possa
levar, mas quem estiver em busca de algo mais sério em breve irá sentir uma
deficiência de visão, uma falta de profundidade, ao comparar essa versão dos
ensinamentos com a versão clássica.
Por outro lado, nas
universidades seculares, os acadêmicos realizam estudos avançados dos textos,
cultura e história Budista, tentando compreender o Budismo em termos puramente
objetivos como um fenômeno cultural e histórico. Esta abordagem pode nos
proporcionar um vasto volume de conhecimentos sobre o Budismo, mas isso não
produz o genuíno insight em relação às verdades que o Buda estava tentando
transmitir. O defeito nesta abordagem é que o estudo do Budismo é feito com
total desconsideração da fé e prática Budista, que são os requisitos para o
insight genuíno. Sem dúvida, sob o ponto de vista acadêmico é útil adquirir
esse conhecimento, mas se esse conhecimento não tiver um impacto nas nossas
vidas, este será estéril e improdutivo.
Portanto, aqui na América,
o presente encantamento com o Budismo tende a se dividir em duas facções. De um
lado, há praticantes que são sinceros no seu comprometimento com a prática
Budista mas com freqüência carecem de uma clara compreensão dos princípios
Budistas. Alguns até mesmo rejeitam o estudo do Dharma, chamando isso de
emaranhado de conceitos e idéias. Do outro lado da divisão encontramos os acadêmicos
eruditos que possuem amplo conhecimento factual sobre o Budismo mas que carecem
de fé no Dharma e da experiência prática no caminho Budista. Em nenhum dos
casos existe a preocupação de na verdade “aprender com o Buda.”
A União do Estudo e a
Prática
Aqui no Bodhi Monastery
(New Jersey, USA) enfatizamos a importância de juntar a fé, estudo e a prática
num equilíbrio harmonioso. Embora este monastério exista faz apenas três anos,
a nossa missão já está tomando uma forma e na medida em que os anos passam,
esperamos que irá trazer frutos abundantes. A visão que guia este monastério
provém do trabalho do Mestre Yin-shun, o mais destacado monge-erudito Chinês da
era moderna, que ainda vive hoje em Taiwan com 97 anos de idade. O trabalho do
Mestre Yin-shun é verdadeiramente impressionante e inspira respeito. Combina os
métodos mais rigorosos de erudição histórica e literária com ousados insights
acerca da doutrina e história Budista, suportado por um comprometimento firme e
inabalável com o caminho espiritual Budista. Os seus muitos volumes de estudos
eruditos abrangem toda a história do Budismo, desde as suas origens através da evolução
na Índia e o subseqüente desenvolvimento na China. O fundador do Bodhi
Monastery, Mestre Jen-chun, é o pupilo mais sênior vivo do Mestre Yin-shun e
também uma pessoa extraordinária. Igual ao seu mestre, ele combina o
conhecimento erudito do Budismo com um coração compassivo, profundos insights,
e grandes votos de alguém que está bem avançado no caminho Budista.
Combinar o estudo e a
prática como parte da estrutura da fé Budista é uma abordagem que ressoa a
própria tradição Budista. Muitas formulações nos textos enfatizam a importância
de combinar essas duas asas do caminho Budista num equilíbrio saudável. Uma,
encontrada nos suttas, diz que quando uma pessoa adquire fé, ela deve se
aproximar de um mestre para aprender a doutrina. Tendo ouvido a doutrina,
ela a retém na mente; aí, ela deve dominá-la verbalmente para imprimi-la
com firmeza na mente; em seguida, ela examina o significado para ver como os
ensinamentos se relacionam com a própria experiência individual, como eles se
aplicam à própria vida. Por fim, ela se esforça para concretizar os ensinamentos
e quando a prática amadurecer, ela enxergará a verdade última por ela mesma.Outra, num esquema mais simples, encontrado nos comentários Budistas, fala das três
principais pilastras no desenvolvimento do caminho: estudo, prática e
realização. Primeiro a pessoa estuda a doutrina, depois a coloca em prática e
por fim realiza a verdade.
Ambas as formulações sugerem
que o estudo do Dharma é a base para a prática e a realização. Quanto de estudo
é necessário irá variar de pessoa para pessoa e de uma tradição para outra. Não
pode haver regras rígidas e imutáveis que se apliquem a todos. Sem dúvida,
algumas pessoas podem praticar de modo eficaz e obter sucesso com o mínimo de
conhecimento doutrinário. Outras precisam de mais conhecimento, enquanto que
outras, ainda, terão a inclinação natural de estudar o Dharma de forma ampla e
profunda. Isto poderá auxiliar na prática delas e torná-las mais eficientes
no ensino do Dharma. Portanto, o conhecimento amplo do Dharma, quando apoiado
pela fé e conectado com a prática, tem valor porque ele não só amplia a própria
compreensão como acentua a eficácia como mestre. O estudo em si também pode
se tornar um empreendimento inspirador e que enaltece, abrindo os próprios
olhos para a vastidão e profundidade do domínio do Dharma.
Tendo Noção Clara do
Objetivo
Embora aprendamos de muitos
mestres e oradores, em ultima instância estamos aprendendo do próprio Buda –
pois todos os ensinamentos que estudamos derivam do Buda diretamente ou através
da contínua tradição Budista. Ao iniciarmos juntos o aprendizado dos
ensinamentos do Buda, é bom ter em mente um dos ditos do mestre Yin-shun: “Nosso objetivo ao aprender os
ensinamentos do Buda hoje deve ter o mesmo propósito do Buda em disseminar os
seus ensinamentos.” O Buda surgiu no mundo para conduzir as pessoas a dar um
fim ao sofrimento e aflição mostrando-lhes o caminho para a felicidade e a paz
supremas. Todas as pessoas possuem uma aversão natural ao sofrimento e aflição
e desejam a felicidade e a paz.
Então porque não podemos
obter isso por conta própria, seguindo as tendências das nossas próprias
mentes? Porque temos que aprender isso do Buda? A razão é porque as nossas
mentes estão obscurecidas pela ignorância e pelas contaminações: as nossas
idéias estão “de pernas para o ar.”
Então, embora todos nós
desejamos ter felicidade, com demasiada freqüência nos sentimos agitados e
aflitos. Nós criamos muito sofrimento para nós mesmos, e nós causamos muito
sofrimento para nós mesmos e para os outros. Através da sua perfeita sabedoria,
o Buda compreendeu de modo preciso e a fundo, as causas e condições que
conduzem ao sofrimento e à felicidade. Devido à sua imensa compaixão, durante
quarenta e cinco anos ele ensinou essas causas e condições extensivamente para
o mundo, de modo que as pessoas pudessem entender que tipo de ações devem ser evitadas e que tipos de ações devem ser
cultivadas. Portanto nosso objetivo último ao estudar os ensinamentos do Buda
deve ser aprender como distinguir os modos que são prejudiciais e destrutivos
dos modos que são úteis e benéficos; os caminhos que conduzem ao sofrimento e
os caminhos que conduzem à felicidade e a paz.
Deveríamos fazer isso com
um objetivo duplo: primeiro, progredir na direção da nossa própria libertação,
e segundo permitir que contribuamos da forma mais eficaz para o bem estar dos
outros. Isto satisfaz o que é chamado de “o bem duplo,” o bem estar próprio e
dos demais.
Ao aprender os ensinamentos
do Buda, temos que aprender como aplicá-los à nossa própria situação. Muitos
dos ensinamentos que encontramos nos suttas mais antigos eram dirigidos aos
monásticos, pessoas que haviam renunciado ao mundo dedicando-se tempo integral
à prática do caminho. Eu penso que seria um erro as pessoas leigas descartarem
esses ensinamentos como sendo irrelevantes nas suas vidas, pois esses
ensinamentos apontam para o objetivo último que todos os discípulos do Buda
deveriam buscar e a prática necessária para alcançar esse objetivo. Mas também
seria um erro as pessoas leigas pensarem que elas apenas podem praticar o
Dhamma de modo adequado imitando a prática de monges e monjas. Eu penso que
durante as suas rondas de pregações o Buda deve haver dado muito mais
ensinamentos para os seus discípulos leigos do que aquilo que está registrado
nos textos. Embora estes possam ter sido perdidos, podemos extrair os
princípios principais dos ensinamentos que foram preservados. Não é suficiente
apenas repetir esses ensinamentos com as palavras usadas para registrá-los.
Precisamos ver como praticá-los na atualidade, nas nossas próprias situações de
vida. Ao fazer isso, precisamos traçar um rumo entre dois extremos: um é o
conservadorismo rígido, que adere com rigor e de modo impensado às formulações
antigas sem a preocupação de entender as suas razões subjacentes; o outro é o
revisionismo excessivo, que torce os ensinamentos em demasia para adaptá-los às
condições presentes. Uma abordagem saudável em relação ao Dharma reconheceria
que a doutrina em si está sujeita às duas leis da impermanência e
condicionalidade. As formulações têm que mudar com as inevitáveis mudanças no
pensamento humano e nas condições sociais, no entanto elas têm que sempre
permanecer fiéis aos princípios fundamentais do Dharma.
Dois Aspectos na Prática
do Dharma
Aqui, quero sugerir que
aprender com o Buda em um contexto prático, significa antes de mais nada aprender
dois aspectos do Dharma que de modo ideal devem correr em paralelo. Eu irei
chamá-los de autotransformação e auto-transcendência. O objetivo último dos
ensinamentos, a iluminação ou libertação, é alcançada através de um ato de
auto-transcendência, um ato através do qual ultrapassamos os limites e
fronteiras da mente condicionada e penetramos na verdade incondicionada. Esse
ato é exercido através da sabedoria. No entanto, a sabedoria libertadora pode
surgir apenas numa mente que seja cultivada de forma apropriada, e o processo
de cultivo da mente é a tarefa da autotransformação.
Autotransformação
A autotransformação
significa o cultivo gradual de modo a progredir passo a passo na direção do
despertar da verdadeira sabedoria. A autotransformação envolve dois processos:
um é a eliminação; o outro é o desenvolvimento. Irei discutir ambos de forma
breve.
“Eliminação” significa a
remoção das qualidades prejudiciais nas nossas vidas. Significa evitar as ações
prejudiciais com o corpo, linguagem e mente: o controle e submissão dos
pensamentos prejudiciais; a rejeição das opiniões falsas e das idéias
deludidas. Tal como um jardineiro que queira cultivar um belo jardim precisa
primeiro eliminar as ervas daninhas e o entulho, assim também nós precisamos
exterminar as ervas daninhas e o entulho das nossas mentes. Ao aprender com o
Buda estamos tentando entender a nós mesmos, entender a nossa própria mente. O
Buda nos mostra um espelho das nossas mentes e corações, mostrando os estados
mentais poluídos que prejudicam a nós a aos outros. Portanto, ao estudar os
ensinamentos do Buda, obtemos um melhor entendimento das nossas fraquezas, os
defeitos que temos que nos esforçar para superar.
Nós também aprendemos os
métodos para superá-los, pois esse é exatamente o poder do ensinamento Budista:
nos proporciona, com uma precisão impressionante, os medicamentos para eliminar
todas as enfermidades das nossas mentes. O que é tão surpreendente nos
ensinamentos Budistas mais antigos é o insight incrivelmente detalhado da mente
humana. Esses ensinamentos proporcionam um tipo distinto de análise psicológica
do que aquilo que encontramos na psicologia ocidental. O objetivo aqui não é
tanto recuperar pessoas perturbadas de modo patológico a um nível de saúde
mental considerado como normal, mas de tratar as “pessoas normais” de modo que
elas possam se elevar acima das limitações e grilhões da mente normal e
concretizar o seu potencial oculto, a mente totalmente purificada e desperta.
Isto requer uma abordagem completamente distinta, uma abordagem que é a
excelente contribuição do Buda para o entendimento da natureza humana.
O Buda não somente nos
oferece uma análise dos nossos defeitos, mas um catálogo das nossas forças em
potencial. Ele também nos ensina os meios para fazer com que essas forças em
potencial se tornem reais e efetivas. Ele nos proporciona um ensinamento extraordinariamente
pragmático que podemos aplicar na nossa vida diária para passo a passo ascender
na direção da realização última, o movimento nessa direção é o que significa
desenvolvimento. “Desenvolvimento” significa o cultivo de qualidades benéficas,
as qualidades que promovem a paz interior e a felicidade e que faz das nossas
vidas canais efetivos para trazer a paz e felicidade para os outros. O Buda
oferece um amplo espectro de práticas benéficas, desde as observâncias éticas
básicas até práticas como as cinco faculdades espirituais, o Nobre Caminho
Óctuplo e os seis ou dez paramis. Para aprender isso, devemos estudar o
Dharma em extensão e profundidade. Depois devemos aprender como aplicá-lo nas
nossas vidas do modo mais realista e benéfico.
Auto-transcendência
O segundo processo
principal que aprendemos do Buda é a auto-transcendência. Embora o Buda fale em
eliminar os estados prejudiciais e desenvolver os benéficos, o objetivo dele não
é que apenas sejamos pessoas felizes e contentes dentro dos limites mundanos do
mundo. Ele nos aponta para um objetivo transcendente: ele nos conduz para a
realidade incondicionada, Nibbana, o estado calmo e quiescente que está além do
nascimento, envelhecimento, sofrimento e morte. Esse objetivo apenas pode ser
alcançado através de uma completa e clara compreensão da natureza última das
coisas, o modo de existência final de todos os fenômenos. Enquanto que essa
realidade tem que ser penetrada através da experiência direta, nós precisamos
de instruções específicas para compreendê-la. O objetivo em si transcende
conceitos e palavras, mas o Buda e os grandes mestres Budistas nos
proporcionaram uma variedade de “fotografias” que nos oferecem um vislumbre da
verdadeira natureza das coisas. Nenhuma dessas “fotos” pode capturá-la
completamente, mas elas nos proporcionam uma idéia das coisas que deveríamos
estar buscando, os princípios que precisamos entender e o objetivo ao qual
deveríamos estar aspirando.
Dedicar-se ao estudo dos
princípios relevantes à auto-transcendência é um empreendimento filosófico, mas
essa não é uma filosofia como mera especulação ociosa. Para o Budismo, a
filosofia é o esforço para sondar a verdadeira natureza das coisas, empregar
conceitos e idéias para obter um vislumbre da verdade que nos liberta, uma
verdade que transcende todos os conceitos e idéias.
A filosofia Budista é uma
grande correnteza que flui do Buda, continuamente remodelada e ampliada para
trazer à luz as diferentes facetas da realidade, para expor os diferentes
aspectos de uma verdade que nunca pode ser capturada de forma adequada dentro
de algum sistema. Quando estudamos a filosofia Budista, precisamos sempre
lembrar que essas investigações
filosóficas não são realizadas com o mero intento de satisfazer a curiosidade
intelectual mas para ajudar na tarefa de auto-transcendência. Elas fazem isso
identificando com precisão a natureza da sabedoria que precisamos ter para
obliterar a ignorância, a raiz principal de todo sofrimento e cativeiro.
Ser um Buda
Eu tenho falado em
“aprender com o Buda” como se isso
sempre implique aprender os ensinamentos registrados de modo explícito nos
textos. Mas isso é apenas parte do que “aprender com o Buda” envolve. Aprender
com o Buda significa não somente estudar as palavras dele: também significa
aprender da conduta dele e da mente dele. A tradição Budista nos proporciona
muitos registros das ações do Buda ao longo da sua vida e nas vidas passadas, e
isso forma uma parte significativa da herança Budista. A vida, conduta e a
mente do Buda nos proporcionam um modelo a ser emulado, o padrão ideal que nós,
como discípulos do Buda, deveríamos tentar incorporar nas nossas vidas.
Revisado: 8 Novembro 2003
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