Introdução ao Anguttara Nikaya
Por
Bhikkhu Bodhi
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Visto que os três Nikayas anteriores tinham os seus próprios fins especiais, [1] o que restava para ser incluído no Anguttara Nikaya eram suttas curtos, cuja principal preocupação é prática. O AN trata a prática sob uma perspectiva ampla variando das observâncias éticas básicas, através dos pilares do treinamento mental, para as mais elevadas realizações meditativas. O AN também se distingue entre os quatro Nikayas pelo seu interesse nos tipos de pessoas, as quais classifica em detalhe e, muitas vezes ilustra com símiles impressionantes. Muitos discursos lidam com a aplicação da prática do Dhamma para a vida no mundo, oferecendo orientação para as relações familiares, de amizade, modo de vida correto, o uso da riqueza, harmonia comunitária e os deveres do governante para com os seus súditos. Por todas estas razões, o AN, mais do que os outros Nikayas, serviu durante séculos como o canal pelo qual os ensinamentos do Buda foram trnasmitidos para as populações nos países Budistas Theravada do sul da Ásia.
O AN é o quarto dos quatro Nikayas principais que compõem o Sutta Pitaka do Cânone em Pali, a coleção de textos que os Budistas Theravada consideram como Buddhavacana ou "palavra do Buda." O AN é organizado de acordo com uma técnica pedagógica muitas vezes empregada pelo Buda, ou seja, o uso de um esquema numérico como a base para um discurso. Em um período da história da Índia, quando é possível que a escrita não fosse conhecida, ou de qualquer modo, não fosse empregada para registrar os ensinamentos espirituais, a memorização e a preservação dos ensinamentos requeriam que estes pudessem ser facilmente memorizados. A utilização de números serviu bem a esse propósito. Qualquer pessoa que regularmente dê palestras sabe o quão útil é a elaboração de um esboço que organize o tema da palestra em uma lista numérica. Precisamente esse é o princípio que está por trás dos suttas, ou discursos, do Anguttara Nikaya.
A palavra Anguttara é um composto que pode ser traduzido como "aumentando-por-um fator." O nome Anguttara é dado a esta colecção, porque a sua organização segue um esquema em que o número de itens nos suttas em cada parte aumenta incrementalmente em relação aos da parte anterior. A coleção contém onze nipatas ou "livros" denominados simplesmente com base no seu número: o Ekakanipata, o Livro do Um, o Dukanipata, o Livro dos Dois, e assim por diante até o Ekadasakanipata, o Livro dos Onze.
O verso resumo (uddana) ao final do último volume afirma que o AN contém 9,557 suttas. É difícil chegar a um número exato porque é incerto se determinados suttas devem ser contados separadamente ou como conjuntos compostos. O número maior provavelmente resulta da contagem separada de todos os suttas gerados pela "Série de repetições da paixão e assim por diante" encontrada no final de cada nipata, após o primeiro. De acordo com o meu esquema de numeração, o AN contém um total de 8,122 suttas, dos quais 4.250 pertencem à "Série de repetições da paixão e assim por diante". Isso significa que existem apenas 3.872 suttas independentes dessa série. Muitos deles, no entanto, ocorrem em outras seqüências de repetição, por isso, mesmo este número é enganoso se for tomado como indicação que o conteúdo dos suttas é autônomo. Por exemplo, o número total de suttas nos Cincos, nos Setes, e nos Onzes é grandemente inflado pela inclusão em cada nipata de uma série inteira de suttas derivados de permutações. Se estes fossem agrupados, o número de suttas independentes seria reduzido em muito.
Enquanto os quatro principais Nikayas do Sutta Pitaka são altamente diversificados, um exame mais detalhado do seu conteúdo sugere que cada um tem um propósito dominante na transmissão de um aspecto específico da mensagem de Buda. Esta preocupação, devo salientar, não está evidente em cada sutta na respectiva coleção, mas apenas diz respeito à coleção quando vista como um todo. O Digha Nikaya é largamente governado pelo objetivo de propagar o Budismo no seu meio cultural. Seus suttas tentam estabelecer a supremacia do Buda e do seu Dhamma sobre os seus concorrentes no cenário religioso e social indiano. Assim, o primeiro sutta do DN analisa as visões filosóficas que o Buda categoricamente rejeitava, o segundo repudia os ensinamentos de seis professores contemporâneos, enquanto muitos dos textos seguintes colocam o Buda em debate contra os brâmanes e os membros de outras seitas; outros suttas servem o propósito de glorificar o Buda e demonstrar a sua superioridade sobre os deuses, os espíritos da natureza e os ascetas e contemplativos que perambulavam ao longo da planície do Gânges. O Majjhima Nikaya, por outro lado, dirige o seu holofote para dentro, sobre a comunidade Budista. Muitos dos suttas tratam dos fundamentos da doutrina, da meditação e outros aspectos da prática Budista. Isso o torna particularmente adequado para a instrução dos monges que precisam ser integrados na comunidade.
O Samyutta Nikaya e o Anguttara Nikaya consistem principalmente de suttas curtos e, portanto, não têm os cenários e confrontos dramáticos que fazem as duas coleções mais longas tão fascinantes. O Samyutta é regido por um princípio temático e contém muitos suttas curtos revelando os insights radicais do Buda e a topografia do caminho. Esta coleção teria atendido as necessidades dos dois tipos de especialistas na ordem monástica. Um eram os monges e monjas que eram capazes de compreender as implicações mais profundas da sabedoria Budista e foram, portanto, encarregados de esclarecê-las aos outros. O outro eram aqueles que já haviam cumprido as etapas preliminares do treinamento meditativo e tinham a intenção de desenvolver o insight e concretizar o objetivo.
Com a passagem do Samyutta para o Anguttara Nikaya, ocorre uma mudança de ênfase da compreensão para a edificação pessoal. Como os suttas mais curtos que explicam a "teoria" filosófica e os principais métodos de treinamento acabaram sendo destinados ao Majjhima e ao Samyutta, o que restou para ser incorporado no Anguttara foram suttas curtos, cuja principal preocupação é prática. Em certa medida, na sua orientação prática, o Anguttara se sobrepõe parcialmente ao último livro do Samyutta, que contém capítulos dedicados aos sete grupos que compõem os 37 "apoios para a iluminação", (bodhipakkhiya dhamma). Para evitar duplicações desnecessárias, os redatores do cânone não incluiram esses suttas novamente no Anguttara sob suas posições numéricas. Os tópicos aparecem na série de repetição no final de cada nipata, mas aqui o seu papel é estereotipado e secundário. O Anguttara se concentra em vez disso, nos aspectos da formação prática que não estão compreendidos nos conjuntos padrão, ajudando-nos a compreender o treinamento Budista sob novos ângulos. Talvez possamos dizer que se a última parte do Samyutta nos dá uma anatomia do caminho Budista, o Anguttara toma um viés fisiológico do caminho, vendo-o através do seu desdobramento dinâmico e não por meio dos seus constituintes.
Seria irrealista, no entanto, insistir em que um único critério governou a compilação do Anguttara Nikaya, que inclui material do Vinaya, listas de eminentes discípulos, idéias cosmológicas e registos peculiares de termos que desafiam categorizações fáceis. O que se pode dizer com convicção é que uma pesquisa ampla do seu conteúdo irá mostrar uma preponderância de textos relacionados com a prática Budista. Seus temas variam desde as observâncias éticas básicas recomendadas para o leigo ocupado, através dos pilares do treinamento da mente, para o mais elevado estado de meditação, o Samadhi, ou a concentração do arahant.
A Série de Repetições
Cada um dos nipatas dos Dois aos Onzes conclui com uma "Série de repetições da paixão e assim por diante", (ragadipeyyala). Essa repetição é criada através da permutação entre três seqüências de termos. Uma é uma lista de dezessete contaminações: paixão, ódio, delusão, raiva, hostilidade, difamação, insolência, inveja, avareza, falsidade, astúcia, obstinação, rivalidade, presunção, arrogância, embriaguez e negligência. A segunda é uma série de dez termos que mostram as tarefas que devem ser cumpridas em relação a essas dezessete contaminações: conhecimento direto, compreensão completa, completa destruição, abandono, destruição, enfraquecimento, desaparecimento, cessação, abandono e renúncia. Os dois primeiros são operações cognitivas complementares; os outros oito são sinônimos para a erradicação do mundo através da sabedoria transcendente. Tomados em conjunto, obtemos um total inicial de 170 operações.
A terceira seqüência de termos consiste de um conjunto de práticas que caem sob a rubrica numérica do nipata. Estas podem ser tão poucas como uma ou tantas quanto cinco. Cada conjunto de práticas é aplicado a cada uma das 170 operações, gerando um sutta para cada possibilidade. Os Dois e Três, possuem cada um apenas um conjunto de práticas: o par de tranquilidade e insight nos Dois e os três tipos de concentração nos Três. Assim, em cada um desses dois nipatas apenas 170 suttas são gerados. Mas os Quatros têm três conjuntos de prática: os quatro estabelecimentos de atenção plena, os quatro esforços corretos, e as quatro bases do poder espiritual. Portanto, este nipata gera 510 suttas. Os Cincos têm cinco conjuntos de práticas, o que gera o número máximo de suttas na repetição: 850. Vários nipatas têm três conjuntos, gerando 510 suttas cada. Em virtude da série de repetições, o número de suttas do AN mais do que duplica para além do número constituído pelos suttas independentes.
Notas:
[1] Veja a explicação sobre o [Digha Nikaya, Majjhima Nikaya e Samyutta Nikaya. [Retorna]
Fonte: Introdução ao Anguttara Nikaya, Wisdom, 2012.
Revisado:
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