II. Compêndio dos Fatores Mentais (Cetasika)

 


 

O segundo capítulo do Abhidhammattha Sangaha é dedicado à análise de cetasika, fatores mentais, a segunda das quatro realidades últimas. Os cetasikas são fenômenos mentais que ocorrem em conjunção imediata com citta ou consciência e assistem citta realizando tarefas mais específicas no ato completo da cognição. Os fatores mentais não surgem sem citta, nem citta pode surgir segregada dos fatores mentais. Mas embora ambos sejam funcionalmente interdependentes, citta é considerada como fator primário porque os fatores mentais ajudam na cognição do objeto na dependência de citta, que é o principal elemento cognitivo. A relação entre citta e os cetasikas é comparada com aquela de um rei e o seu séquito. Embora alguém diga “o rei está vindo,” o rei não vem só, ele sempre vem acompanhado do seu séquito. De modo semelhante, sempre que uma citta surge, ela nunca surge só, pois está sempre acompanhada pelo seu séquito de cetasikas.

Os cetasikas compartem quatro características em comum:

1. surgem junto com a consciência

2. cessam junto com a consciência

3. possuem o mesmo objeto que a consciência

4. possuem a mesma base que a consciência

Os Cinqüenta e Dois Fatores Mentais

O Abhidhamma reconhece 52 fatores mentais que estão classificados em quatro categorias:

7 universais

6 ocasionais

14 fatores insalubres

25 fatores belos

A tabela abaixo lista os 52 fatores mentais:

1. Variáveis sob o ponto de vista ético

1.1 Universais

(1) Contato

(2) Sensação

(3) Percepção

(5) Unicidade num único ponto

(6) Faculdade vital

(7) Atenção

1.2 Ocasionais

(8) Pensamento aplicado

(9) Pensamento sustentado

(10) Decisão sustentado

(11) Energia

(12) Êxtase

(13) Aspiração

2. Fatores Insalubres

2.1 Universais insalubres

(14) Delusão

(15) Ausência de vergonha moral

(16) Destemor moral

(17) Inquietação

2.2 Ocasionais Insalubres

(18) Cobiça

(19) Entendimento Incorreto

(20) Presunção

(21) Raiva

(22) Inveja

(23) Avareza

(24) Ansiedade

(25) Preguiça

(26) Torpor

(27) Dúvida

3. Fatores Belos

3.1 Universais belos

(28) Convicção

(29) Atenção Plena

(30) Vergonha moral

(31) Temor moral

(32) Não-cobiça

(33) Não-raiva

(34) Neutralidade mental

(35) Tranqüilidade do corpo mental

(36) Tranqüilidade da consciência

(37) Leveza do corpo mental

(38) Leveza da consciência

(39) Maleabilidade do corpo mental

(40) Maleabilidade da consciência

(41) Manuseabilidade do corpo mental

(42) Manuseabilidade da consciência

(43) Proficiência do corpo mental

(44) Proficiência da consciência

(45) Retidão do corpo mental

(46) Retidão da consciência

3.2 Abstinências

(47) Linguagem correta

(48) Ação correta

(49) Modo de Vida correto

3.3 Ilimitados

(50) Compaixão

(51) Alegria altruísta

3.4 Não-delusão

(52) Faculdade da sabedoria

1. Variáveis sob o ponto de vista ético (aññasamanacetasika)

As primeiras duas categorias de fatores mentais – os sete universais e os seis ocasionais – são denominados aññasamana que é interpretado como “variável sob o ponto de vista ético.” Literalmente, a expressão quer dizer “comum aos demais.” As cittas não-belas são chamadas de “outras” (añña) em relação às cittas belas, e as cittas belas são chamadas de outras em relação às cittas não-belas. Os treze cetasikas das duas primeiras categorias são comuns, (samana), a ambos os cetasikas, belos e não-belos e assumem a qualidade ética transmitida para a citta pelos demais cetasikas, particularmente pelas raízes, (hetu), associadas.

1.1 Universais (sabbacittasadharana)

Esses sete universais são os cetasikas comuns a todas as consciências. Estes fatores desempenham as funções cognitivas mais rudimentares e essenciais, sem as quais a consciência de um objeto seria absolutamente impossível.

(1) Contato, (phassa): A palavra phassa é derivada do verbo phusati que significa “tocar,” mas o contato não deve ser compreendido como o mero impacto do objeto na faculdade do sentido. Ele é na verdade o fator mental através do qual a consciência mentalmente “toca” o objeto que tenha surgido, dessa forma dando início a todo o evento cognitivo.

(2) Sensação, (vedana): Sensação é o fator mental que sente o objeto: é o tom emocional com o qual o objeto é experimentado. Assim, vedana é um tipo de julgamento, não sob a forma intelectual mas sob um critério subjetivo de aceitação, rejeição ou indiferença. A natureza da sensação em si não pode ser definida porque toda definição tem que ser dada intelectualmente e o intelecto e as sensações não são comensuráveis. Dessa forma as sensações possuem um certo caráter autônomo, indicado pelo símile de um rei que devido à virtude da sua nobreza, habilidade e maestria, saboreia e desfruta de toda a refeição preparada por outros, e já que cada cozinheiro esteve apenas parcialmente envolvido na preparação da refeição, eles não são capazes de se dar conta disso. Ou seja, vedana desfruta o sabor do objeto de forma plena e completa. A palavra em Pali vedana não significa emoção, (que é um fenômeno complexo envolvendo vários fatores mentais concomitantes), mas a qualidade emocional básica de uma experiência, que pode ser prazerosa, dolorosa ou neutra.

(3) Percepção, (sañña): O sufixo “ñña” pode ser interpretado como conhecimento enquanto que “sa” significa juntar/reunir ou seja “juntar aquilo que conhecemos.” A característica de sañña é perceber as qualidades de um objeto. A sua função é fazer uma marca ou sinal como condição para perceber, numa outra ocasião, que “é a mesma coisa,” ou, a sua função é reconhecer aquilo já que havia sido percebido antes. Ela se manifesta ao interpretar o objeto através das marcas ou sinais que foram compreendidos. O seu procedimento se compara ao do carpinteiro que reconhece os tipos de madeira pelas distintas marcas que fez nelas.

(4) Volição ou intenção, (cetana): Cetana, que possui a mesma raiz que citta, é o fator mental que está relacionado com a realização de um objetivo ou de um determinado resultado. Sua função é estimular ou dirigir os demais cetasikas numa certa direção. Pode ser comparado a um comandante numa batalha, que ao começar a lutar, estimula os seus comandados a lutarem também, assim ao realizar a sua tarefa em relação ao objeto, cetana faz com que os cetasikas associados também cumpram o seu papel. Volição ou intenção é o fator mental mais significativo na geração de kamma.

(5) Unicidade num único ponto, (ekaggata): a unificação da mente no objeto. Embora este fator ganhe proeminência nos jhanas, onde ele funciona como um fator de jhana, o Abhidhamma ensina que o germe da capacidade para a unificação da mente está presente em todos os tipos de consciência, até mesmo nos mais rudimentares. A sua função é fixar a mente no seu objeto. A sua característica é a não-distração.

(6) Faculdade vital, (jivitindriya): Existem dois tipos de faculdade vital, a mental, que vitaliza ou mantém os fenômenos mentais associados, e a física, que vitaliza ou mantém os fenômenos materiais. A sua função é fazer com que os fenômenos ocorram.

(7) Atenção, (manasikara): A atenção é o fator mental que tem a responsabilidade de advertir a mente para o objeto, fazendo com que ele se torne presente para a consciência. A sua característica é a condução dos fatores mentais associados para o objeto. A sua função é unir os fatores mentais associados ao objeto. A atenção é como o leme de um barco, que o conduz ao seu destino, ou como um condutor de uma carruagem que conduz os cavalos, (fatores mentais ), ao seu destino, (o objeto). Manasikara deve ser diferenciado de vitakka: enquanto que o primeiro dirige os seus concomitantes em direção ao objeto, o último os aplica ao objeto. Manasikara é um fator cognitivo indispensável presente em todos os estados de consciência; vitakka é um fator especializado que não é indispensável para a cognição.

1.2 Ocasionais (pakinnaka)

Os seis cetasikas deste grupo são semelhantes aos universais por serem fatores variáveis sob o ponto de vista ético, que assumem a qualidade moral da citta, determinada por outros fatores concomintantes. Eles diferem dos universais por serem encontrados apenas em tipos particulares de consciência, não em todas.

(8) Pensamento aplicado, (vitakka): Nos suttas, vitakka é com freqüência usado como sinônimo para pensamento, mas no Abhidhamma ele é usado de um modo tecnicamente mais preciso significando o fator mental que aplica a mente ao objeto. A sua característica é dirigir a mente para o objeto. Vitakka pode ser comparado a uma pessoa que tem amizade ou é parente do rei e estabelece uma conexão entre o rei e uma outra pessoa que quer se encontrar com ele. Quando é cultivado através da concentração, vitakka se torna um dos fatores de jhana, (inibindo o obstáculo da preguiça e torpor), é a absorção da mente no objeto. Vitakka também é chamado sankappa, e sammasankappa, (pensamento correto), é o segundo elemento do Nobre Caminho Óctuplo.

(9) Pensamento sustentado, (vicara): A palavra vicara em geral significa investigação, mas neste caso significa a sustentação da mente no objeto. Vicara também é um fator de jhana, (inibindo o obstáculo da dúvida), e tem como característica a pressão contínua sobre o objeto no sentido de examiná-lo. A sua função é a sustentação dos fatores mentais associados ao objeto. Os comentários empregam vários símiles para mostrar a relação entre vitakka e vicara. Vitakka é como uma abelha mergulhando em direção a uma flor, enquanto que vicara é a abelha zumbindo em volta da flor. Vitakka é como a mão que segura uma peça de metal manchada, vicara é como a outra mão que limpa a peça. Ou vitakka é como a ponta de um compasso fixa no meio da folha de papel enquanto que vicara é a ponta que desenha o círculo.

(10) Decisão, (adhimokkha): A palavra adhimokkha significa literalmente a deliberação da mente em relação ao objeto. Assim foi interpretada como decisão ou resolução. Possui a característica da decisão. É comparada a uma pilastra de pedra devido à sua decisão inabalável em relação ao objeto.

(11) Energia, (viryia): Viriya é o estado ou a ação de alguém que tenha vigor. A energia tem a natureza da perseverança. A energia suporta e mantém os demais fatores associados e não permite que eles esmoreçam. Da mesma forma como pilastras novas de madeira não permitem que a casa desabe ou como reforços numa batalha permitem que o exército do rei derrote o inimigo.

(12) Êxtase, (piti): Piti é derivado do verbo pinayati significando “refrescar” e pode ser explicado como o deleite ou prazer em relação ao objeto. Piti se diferencia de vedana por ser uma sensação agradável intensa com distintos estímulos no corpo físico. A tradução mais freqüente é êxtase, que é uma qualificação adequada quando ele é um dos fatores de jhana, mas que pode não ser suficientemente ampla para capturar todas as suas nuances. Os comentários distinguem cinco graus de piti que surgem ao desenvolver a concentração: êxtase menor, êxtase momentâneo, êxtase como uma ducha, êxtase que causa elação e êxtase impregnante. O êxtase menor pode fazer subir os pêlos do corpo. Êxtase momentâneo é igual a lampejos de relâmpagos. Êxtase como ducha atravessa o corpo como ondas do oceano. Êxtase que causa elação pode fazer o corpo levitar. E o êxtase impregnante que inunda todo o corpo como numa inundação que enche uma caverna. Este último é piti tal como se apresenta em jhana. Como um fator de jhana, piti inibe o obstáculo da má vontade.

(13) Aspiração, (chanda): Chanda significa o desejo de agir, isto é, realizar uma ação ou lograr um resultado. Aqui foi traduzido como aspiração para diferenciar do desejo, (tanha), e cobiça, (lobha). Estes dois últimos são sempre insalubres, (inábeis), mas chanda é um fator variável sob o ponto de vista ético, que quando combinado com concomitantes saudáveis pode funcionar como o desejo virtuoso de lograr um objetivo digno.

2. Fatores Insalubres (akusalacetasika)

2.1 Universais Insalubres

(14) Delusão, (moha): Moha é um sinônimo de avijja, ignorância. A sua característica é a cegueira mental ou o desconhecimento (aññana). A sua função é não penetrar ou encobrir a real natureza do objeto. A sua manifestação é a ausência do entendimento correto ou como obscuridade mental. A sua causa mais próxima é a atenção sem sabedoria, (ayoniso manasikara). Moha deve ser vista como a raiz de tudo aquilo que é insalubre.

(15, 16) Ausência de vergonha moral ou de cometer transgressões, (ahirika), e ausência de temor moral ou de cometer transgressões, (anottappa): A característica da ausência de vergonha de cometer transgressões é a falta de auto-respeito, aquilo que nos refreia de cometer atos que colocariam em risco o respeito que temos por nós mesmos; a característica da ausência de temor de cometer transgressões, é a falta de temor dos resultados de kamma desfavoráveis e da crítica e da punição imposta por outros. Ambas possuem a função de praticar ações insalubres. A sua causa mais próxima é a falta de respeito por si mesmo e pelos outros, respectivamente.

(17) Inquietação, (uddhacca): Inquietação, (ou agitação), possui como característica a intranqüilidade, como a água agitada pelo vento. A sua função é fazer com que a mente fique desequilibrada.

2.2 Ocasionais Insalubres

(18) Cobiça, (lobha): Cobiça, a primeira raiz insalubre, abrange todas as graduações de desejo egoísta, anseio, ligação sentimental e apego. A sua característica é agarrar-se ao objeto. A sua função é grudar, como a carne que gruda numa frigideira quente.

(19) Entendimento Incorreto, (ditthi): Ditthi neste caso significa ver de modo incorreto. A sua característica é a interpretação das coisas sem sabedoria. A sua função é pressupor. A sua manifestação é a crença ou interpretação incorreta.

(20) Presunção, (mana): Presunção tem a característica da arrogância. A sua função é a auto-exaltação. A sua manifestação é o orgulho.

(21) Raiva, (dosa): Dosa, a segunda raiz insalubre, compreende todas as graduações da aversão, má vontade, raiva, irritação, aborrecimento e animosidade.

(22) Inveja, (issa): A inveja tem como característica o ciúme do sucesso dos outros. A sua função é estar insatisfeito com o sucesso dos outros. Ela se manifesta como aversão a isso.

(23) Avareza, (macchariya): A característica da avareza é ocultar o próprio sucesso. A sua função é não tolerar compartí-lo com os outros.

(24) Ansiedade, (kukkucca): Kukkucca é a preocupação, remorso, arrependimento com relação a coisas feitas de modo incorreto e coisas corretas que foram negligenciadas. A sua característica é o arrependimento. A sua função é causar tristeza em relação ao que foi feito e ao que não foi feito. Ela se manifesta como remorso.

(25) Preguiça, (thina): Preguiça é a indolência ou entorpecimento. A sua característica é a falta de energia. A sua função é dissipar energia. Ela se manifesta como o afundamento da mente. A sua causa mais próxima é a atenção sem sabedoria em relação ao tédio, entorpecimento, etc.

(26) Torpor, (middha): Torpor é o estado deprimido dos fatores mentais. A sua função é oprimir. A sua causa mais próxima é a mesma da preguiça.

Preguiça e torpor sempre ocorrem em conjunto e são opostos à energia. A preguiça é identificada como a enfermidade da consciência e o torpor como a enfermidade dos fatores mentais. Como um par, eles constituem um dos cinco obstáculos que é superado pelo pensamento aplicado, (vitakka).

(27) Dúvida, (vicikiccha): Neste caso significa dúvida espiritual, sob a perspectiva Budista, a incapacidade de depositar confiança no Buda, Dhamma e Sangha e no treinamento Budista. Ela se manifesta como indecisão e a toma de vários partidos. A sua causa mais próxima é a atenção sem sabedoria.

3. Fatores Belos (sobhanasadharana)

Os fatores mentais belos estão subdivididos em quatro grupos, sendo que o primeiro inclui dezenove cetasikas que estão sempre presentes em todas as consciências belas.

3.1 Universais Belos

(28) Convicção, (saddha): O primeiro dos cetasikas belos é a convicção, fé, certeza, reverência, respeito, que possui a característica de depositar fé ou confiança. A sua função é aclarar, como uma substância que clarifica a água e faz com que a água barrenta se torne clara; ou colocar-se a caminho, como alguém que se ponha a caminho para cruzar uma correnteza. Ela se manifesta como não obscuridade, isto é, a remoção das impurezas da mente e de todos os obstáculos.

(29) Atenção Plena, (sati): A palavra sati é derivada de uma raiz que significa “memória,” mas como fator mental significa presença de espírito, estar atento ao presente, ao invés da faculdade da memória em relação ao passado. A sua característica é a não vacilação, isto é, não se afastar do objeto. A sua função é a ausência de confusão ou não-esquecimento. A sua causa mais próxima é a percepção intensa ou os quatro fundamentos da atenção plena.

(30, 31) Vergonha moral ou de cometer transgressões, (hiri), e temor moral ou de cometer transgressões, (ottappa): Hiri equivale à vergonha de cometer transgressões ou o auto-respeito, aquilo que nos refreia de cometer atos que colocariam em risco o respeito que temos por nós mesmos; ottappa equivale ao temor de cometer transgressões que produzam resultados de kamma desfavoráveis ou o temor da crítica e da punição imposta por outros. A sua causa mais próxima é o auto-respeito e o respeito pelos outros, respectivamente. Esses dois estados são chamados pelo Buda de guardiões do mundo porque eles protegem o mundo evitando que ele caia na imoralidade desenfreada.

(32) Não-cobiça, (alobha): A não-cobiça tem como característica a ausência de desejo na mente, ou de não aderência ao objeto, como uma gota d’água numa flor de lótus. A sua função é não segurar e a sua manifestação é o desapego. Deve ser compreendido que a não-cobiça não é a mera ausência de cobiça, mas a presença de qualidades positivas como a generosidade e a renúncia também.

(33) Não-raiva, (adosa): A não-raiva tem como característica a ausência de ferocidade, ou não-oposição. A sua função é remover o aborrecimento ou remover a febre. A não-raiva compreende qualidades positivas como amor bondade, gentileza, amizade, etc.

Quando a não-raiva aparece como qualidade sublime de amor bondade, (metta), ela tem como característica a promoção do bem estar dos seres vivos. A sua função é dar preferência ao bem estar dos outros. A sua manifestação é a remoção da má vontade. A sua causa mais próxima é ver os seres como passíveis de serem amados.

(34) Neutralidade mental, (tatramajjhattata): É um sinônimo para equanimidade, (upekkha), não como uma sensação neutra, mas uma atitude mental de equilíbrio, desapego e imparcialidade.

Os próximos doze cetasikas universais se encaixam dentro de seis pares, cada um contendo um termo que se aplica ao “corpo mental”, (kaya), e outro que se aplica à consciência, (citta). Neste contexto o corpo mental é a coleção dos cetasikas associados, chamados de corpo no sentido de agregação.

(35, 36) Tranqüilidade, (passaddhi): Tem como característica acalmar as perturbações no corpo mental e na consciência. Deve ser considerado como o oposto das contaminações, inquietação e ansiedade, que causam aflição.

(37, 38) Leveza, (lahuta): Tem como característica aplacar o peso no corpo mental e na consciência. Ela se sua manifesta como não- indolência. Deve ser considerada como o oposto das contaminações preguiça e torpor que causam peso.

(39, 40) Maleabilidade, (muduta): Tem como característica aplacar a rigidez no corpo mental e na consciência. Ela se manifesta como não-resistência. Deve ser considerada como o oposto das contaminações das idéias incorretas e presunção, que criam rigidez.

(41, 42) Manuseabilidade,(kammaññata): Tem como característica aplacar a falta de manuseabilidade no corpo mental e na consciência. Deve ser considerada como o oposto dos demais obstáculos que criam a falta de manuseabilidade no corpo mental e na consciência.

(43, 44) Proficiência, (paguññata): Tem como característica a saúde do corpo mental e da consciência. A sua manifestação é como a ausência de deficiência. Deve ser considerada como o oposto à falta de convicção que provoca a insalubridade do corpo mental e da consciência..

(45, 46) Retidão, (ujjukata): Tem como característica a integridade do corpo mental e da consciência. Deve ser considerada como o oposto à hipocrisia e à fraude que criam a desonestidade no corpo mental e na consciência.

3.2 Abstinências (virati)

Os viratis são três fatores mentais belos responsáveis pela abstinência deliberada de conduta imprópria através da linguagem, ação e modo de vida. Na consciência mundana, os viratis operam apenas no momento da existência da abstenção de uma conduta imprópria e para a qual tenha surgido uma oportunidade. Quando uma pessoa se abstém de atos impróprios, sem que tenha surgido uma oportunidade para praticá-los, este não é um caso de virati, mas de pura conduta moral (sila).

(47) Linguagem Correta, (sammavaca): Abstenção deliberada da linguagem incorreta: linguagem mentirosa, linguagem maliciosa, linguagem grosseira e linguagem frívola.

(48) Ação Correta, (sammamammanta): Abstenção deliberada da conduta corporal imprópria: matar, roubar e conduta sexual imprópria.

(49) Modo de Vida Correto, (samma-ajiva): Abstenção deliberada do modo de vida incorreto: lidar com venenos, substâncias embriagantes, armas, escravos, animais para abate.

3.3 Ilimitados (appamanna)

Existem quatro atitudes em relação aos seres vivos chamadas de ilimitadas porque elas se aplicam a todos os seres vivos, e dessa forma possuem uma abrangência potencial ilimitada. Os quatro estados ilimitados são amor bondade, (metta), compaixão, (karuna), alegria altruísta, (mudita),e equanimidade, (upekkha). Esses quatro também são chamados de moradas divinas, estados divinos ou brahmaviharas.

Embora sejam reconhecidos quatro estados ilimitados como as atitudes ideais em relação aos demais seres, apenas dois – compaixão e alegria altruísta – estão incluídos como cetasikas neste grupo dos ilimitados. Isso se deve ao fato de, como foi visto, o amor bondade ser uma forma do cetasika adosa, não-raiva, e a equanimidade ser uma forma do cetasika tatramajjhattata, neutralidade da mente. Enquanto a não-raiva e a neutralidade da mente – fatores que suportam o amor bondade e a equanimidade – estão presentes em todas as cittas belas, os dois fatores do grupo dos ilimitados, (alegria altruísta e compaixão), estão presentes apenas nas ocasiões em que as suas funções individuais são exercidas.

(50) Compaixão, (karuna): Tem como característica promover a remoção do sofrimento dos outros. A sua função é não ser capaz de tolerar o sofrimento dos outros. Ela se manifesta como não crueldade.

(51) Alegria altruísta, (mudita): Mudita tem como característica o contentamento com o sucesso dos outros. A sua função é não ter inveja do sucesso dos outros. Ela se manifesta como a eliminação da aversão.

3.4 Não-Delusão (amoha)

(52) A faculdade da sabedoria: Pañña é sabedoria ou a compreensão das coisas tal como elas na verdade são. É aqui chamada de faculdade porque exerce predominância na compreensão das coisas como elas na verdade são. No Abhidhamma, os três termos – sabedoria, (pañña), conhecimento, (ñana) e não-delusão, (amoha) – são usados como sinônimos. A sabedoria tem como característica apreender as coisas de acordo com a sua característica intrínseca. A sua causa mais próxima é atenção com sabedoria, (yoniso manasikara).

A seguir o Abhidhammattha Sangaha detalha as associações e combinações dos fatores mentais. Essa análise não faz parte do escopo deste trabalho. No entanto, a título de ilustração daremos alguns exemplos abaixo.

Tomando os exemplos mencionados no Capítulo I. Compêndio da Consciência, vejamos quais são os fatores mentais envolvidos num momento de consciência:

Com alegria, um menino, com a idéia de que não existe mal em roubar, rouba espontaneamente uma maçã de uma feira.

Citta: Raiz na cobiça, com sensação de alegria, associada ao entendimento incorreto, não estimulada

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais - Todos; Insalubres Universais – Todos; Insalubres Ocasionais:Cobiça, (18), e Entendimento Incorreto, (19) .

Com raiva, um homem assassina um outro num ataque espontâneo de ódio.

Citta: Raiz na raiva, com sensação de desprazer, associada à aversão, não estimulada

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais: Pensamento aplicado, (8), Pensamento sustentado, (9), Decisão, (10), Energia, (11), Aspiração, (13); Insalubres Universais – Todos; Insalubres Ocasionais: Raiva, (21), Inveja, (22), Avareza, (23), Ansiedade, (24).

Alguém com alegria pratica um ato generoso, compreendendo que isso é uma ação saudável, (benéfica, hábil), depois de deliberação ou estímulo de alguém.

Citta: Com sensação de alegria, associada ao conhecimento, estimulada.

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais - Todos; Belos Universais – Todos; Abstinências, Ilimitados, Não delusão – Todos.

Para finalizar este compêndio, vale a pena lembrar alguns aspectos importantes destacados pelo Venerável Nyanaponika Thera no seu livro Abhidhamma Studies.

Um momento de consciência pode ser inferido de uma lista de fatores mentais, e estes à primeira vista podem dar a impressão de serem partes rígidas, justapostas como num mosaico. Na verdade, os fatores mentais apresentam uma estrutura mais sutil e complicada de relações e correlações dinâmicas, tanto sob o ponto de vista interno, dentro do mesmo momento de consciência, como externo, com outros momentos de consciência. Sob a perspectiva interna, a multidão de fatores coopera no sentido de alcançar um objetivo comum, quer seja mundano ou espiritual. Sob o ponto de vista externo, um estado de consciência, com os seus respectivos fatores mentais, tem conexões com consciências do passado e do futuro através da sua natureza condicionada e condicionadora, (algo que será explorado em mais detalhe no Capítulo V. Compêndio da Condicionalidade).

Além disso, os fatores mentais podem apresentar distintos graus de intensidade no seu funcionamento. Por exemplo, a unicidade em um único ponto, que é um dos fatores mentais universais, pode variar em intensidade, desde os níveis mais baixos das consciências insalubres, nas quais a unicidade se caracteriza como mera estabilidade, até os estágios mais elevados de consciência em que a unicidade pode ser cultivada de modo deliberado como um fator de absorção meditativa, (jhana), ou, dando ênfase à sua qualidade libertadora, a unicidade pode ter o caráter do elemento da concentração correta, (do Nobre Caminho Óctuplo), e pode ser desenvolvida até o nível de concentração de acesso com o propósito de insight, (vipassana).

 

Introdução >> I. Compêndio da Consciência >> III. Compêndio da Matéria

 

 

Revisado: 5 Abril 2003

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