Majjhima Nikaya 18
Madhupindika Sutta
A Bola de Mel
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1. Assim ouvi.
Em certa ocasião o Abençoado estava no país dos Sakyas em Kapilavatthu, no
Parque de Nigrodha.
2. Então,
ao amanhecer, o Abençoado se vestiu e tomando a tigela e o manto externo, foi
até Kapilavatthu para esmolar alimentos. Depois de haver esmolado em
Kapilavatthu e de haver retornado, após a refeição, ele foi até o Grande Bosque
para passar o resto do dia e entrando no Grande Bosque sentou-se à sombra de uma
pequena árvore.
3.
Dandapani, o Sakya, enquanto caminhava e
perambulava fazendo exercício, também se dirigiu ao Grande Bosque e foi até a
pequena árvore onde o Abençoado se encontrava e ambos se cumprimentaram. Quando
a conversa cortês e amigável havia terminado, ele ficou em pé a um lado e
apoiando-se sobre a sua bengala perguntou ao Abençoado: "O que o
contemplativo afirma, o que ele proclama?" [1]
4. "Amigo, eu afirmo e proclamo um ensinamento tal onde a pessoa
não tem rixa com ninguém no mundo, com
os seus devas, Maras e Brahmas, esta população com os seus contemplativos e
brâmanes, seus príncipes e o povo; um ensinamento em que as percepções não mais
sustentam aquele brâmane que permanece desapegado dos prazeres sensuais, sem
perplexidades, sem preocupações, livre do desejo por qualquer tipo de
ser/existir." [2]
5. Quando isso foi dito, o Sakya Dandapani sacudiu a cabeça, mexeu a
língua e ergueu as sobrancelhas até que a testa estivesse enrugada com três
linhas. [3] Então ele partiu, apoiando-se na
sua bengala.
6. Então,
ao anoitecer, o Abençoado levantou-se da meditação e foi até o Parque de
Nigrodha, sentando-se em um assento que havia sido preparado, relatou aos
bhikkhus o que havia ocorrido. Então um certo bhikkhu perguntou ao Abençoado:
7. “Mas,
venerável senhor, qual é o ensinamento que o Abençoado afirma segundo o qual a
pessoa não tem rixa com ninguém no
mundo, com os seus devas, Maras e Brahmas, esta população com os seus
contemplativos e brâmanes, seus príncipes e o povo? E, venerável senhor, como é
que as percepções não mais sustentam aquele brâmane que permanece desapegado
dos prazeres sensuais, sem perplexidades, sem preocupações, livre do desejo por
qualquer tipo de ser/existir?"
8. “Bhikkhus, quanto à fonte através da qual as percepções e concepções
impregnadas pela proliferação mental atormentam um homem: se ali nada é
encontrado que deleite, que seja bem vindo, que deva ser mantido, esse é o fim
da tendência subjacente ao desejo sensual, da tendência subjacente à aversão,
da tendência subjacente às idéias, da tendência subjacente à dúvida, da
tendência subjacente à presunção, da tendência subjacente ao desejo por
ser/existir, da tendência subjacente à ignorância; esse é o fim do lançar mão
de clavas e armas, de rixas, brigas, disputas, recriminações, maldades e
mentiras; nesse caso, esses estados ruins e prejudiciais cessam sem deixar
vestígio." [4]
9. Isso foi o que o Abençoado disse. Tendo dito isso, ele se levantou do
seu assento e foi para a sua moradia.
10. Então, pouco tempo depois do Abençoado haver partido, os bhikkhus
consideraram: "Agora, amigos, o Abençoado levantou-se do seu assento e foi
para a sua moradia depois de expor um sumário sem analisar o seu significado em
detalhe. Agora quem irá analisar o significado em detalhe?" Então eles
consideraram: "O venerável Maha Kaccana é elogiado pelo Mestre e estimado
pelos seus sábios companheiros da vida santa. [5] Ele
é capaz de analisar o significado em detalhe. E se fôssemos até ele e pedíssemos
a explicação do significado disso."
11. Então os bhikkhus foram até o venerável Maha Kaccana e o
cumprimentaram. Quando a conversa cortês e amigável havia terminado, eles sentaram a um lado e
contaram o que havia acontecido, adicionando: "Que o venerável Maha
Kaccana nos explique isso."
12. [O venerável Maha Kaccana respondeu:] "Amigos, é como se um
homem que precisa de madeira, procurasse madeira, perambulasse em busca de
madeira, pensasse que a madeira deveria ser procurada entre os galhos e as folhas
de uma grande árvore que possui madeira, depois de haver passado por cima da
sua raiz e tronco. O mesmo ocorre com vocês, veneráveis senhores, que pensam
que eu deva ser perguntado sobre o significado disso, depois de terem passado
pelo Abençoado, estando cara a cara com o Mestre. Pois, conhecer, o Abençoado
conhece; ver, ele vê; ele é visão, ele é conhecimento, ele é o Dhamma, ele é o
sagrado; [6] ele é o que diz, o que proclama,
o que elucida o significado, o que provê o imortal, o senhor do Dhamma, o
Tathagata. Aquele foi o momento quando vocês
deveriam ter perguntado ao Abençoado o significado. O que ele
dissesse vocês deveriam se lembrar."
13.
“Certamente, amigo Kaccana, conhecer, o Abençoado conhece; ver, ele vê; ele é
visão … o Tathagata. Aquele foi o momento quando nós deveríamos ter perguntado
ao Abençoado o significado. O que ele nos dissesse nós deveríamos nos lembrar.
No entanto o venerável Maha Kaccana é elogiado pelo Mestre e estimado pelos
seus sábios companheiros da vida santa. O venerável Maha Kaccana é capaz de
analisar o significado, em detalhe, desse sumário dito pelo Abençoado. Que o
venerável Maha Kaccana possa expor isso, sem que isso seja um problema."
14. “Então,
amigos, ouçam e prestem muita atenção àquilo que eu vou dizer." -
"Sim, amigo," os bhikkhus responderam. O venerável Maha Kaccana disse
o seguinte:
15.
"Amigos, quando o Abençoado se levantou do seu assento e foi para a sua
moradia depois de expor um sumário sem analisar o seu significado em detalhe,
isto é: 'Bhikkhus, quanto à fonte através da qual as percepções e concepções
impregnadas pela proliferação mental atormentam um homem: se ali nada é
encontrado que deleite, que seja bem vindo, que deva ser mantido, esse é o fim
da tendência subjacente ao desejo sensual ... esse é o fim do lançar mão de
clavas e armas … nesse caso esses estados ruins e prejudiciais cessam sem
deixar vestígio,' eu entendo que o significado em detalhe é o seguinte:
16. "Na dependência do olho e das formas a consciência no olho
surge. O encontro dos três é o contato. Com o contato como condição surge a
sensação. Aquilo que a pessoa sente, isso ela percebe. Aquilo que a pessoa
percebe, nisso ela pensa. Naquilo que a pessoa pensa, isso prolifera
mentalmente. Tendo a proliferação mental como fonte, percepções e concepções
impregnadas pela proliferação mental atormentam a pessoa com respeito a formas
passadas, futuras e presentes
reconhecidas através do olho. [7]
"Na dependência do ouvido e dos sons ... Na dependência do nariz e dos
aromas ... Na dependência da língua e dos sabores ... Na dependência do corpo e dos
tangíveis ... Na dependência da mente e dos objetos mentais, a consciência na mente
surge. O encontro dos três é o contato. Com o contato como condição surge a
sensação. Aquilo que a pessoa sente, isso ela percebe. Aquilo que a pessoa
percebe, nisso ela pensa. Naquilo que a pessoa pensa, isso prolifera
mentalmente. Tendo a proliferação mental como fonte, percepções e concepções
impregnadas pela proliferação mental atormentam a pessoa com respeito a objetos mentais do passado, futuro e presente
reconhecidos pela mente.
17.
"Quando existe o olho, uma forma e a consciência no olho, é possível
apontar a manifestação do contato. [8] Quando
existe a manifestação do contato é possível apontar a manifestação da sensação.
Quando existe a manifestação da sensação é possível apontar a manifestação da
percepção. Quando existe a manifestação da percepção é possível apontar a
manifestação do pensamento. Quando existe a manifestação do pensamento é
possível apontar a manifestação de um ser atormentado pelas percepções e
concepções impregnadas pela proliferação mental.
"
Quando existe o ouvido, existe som e existe a consciência no ouvido
... Quando existe o nariz, existe aroma e existe a consciência no
nariz ... Quando existe a língua, existe sabor e existe a consciência
na língua ... Quando existe o corpo, existe tangível e existe a
consciência no corpo ... Quando existe a mente, existe objeto mental e existe a consciência na mente ... é possível apontar a manifestação de um
ser atormentado pelas percepções e concepções impregnadas pela proliferação
mental.
18.
"Quando não existe o olho, não existe forma e não existe a consciência no
olho, é impossível apontar a manifestação do contato. Quando não existe o
contato é impossível apontar a manifestação da sensação. Quando não existe a
sensação é impossível apontar a manifestação da percepção. Quando não existe a
manifestação da percepção é impossível apontar a manifestação do pensamento.
Quando não existe a manifestação do pensamento é impossível apontar a
manifestação de um ser atormentado pelas percepções e concepções impregnadas
pela proliferação mental. "
Quando não existe o ouvido, não existe som e não existe a consciência no ouvido
... Quando não existe o nariz, não existe aroma e não existe a consciência no
nariz ... Quando não existe a língua, não existe sabor e não existe a consciência
na língua ... Quando não existe o corpo, não existe tangível e não existe a
consciência no corpo ... Quando não existe a mente, não existe objeto mental e
não existe a consciência na mente ... é impossível apontar a manifestação de um
ser atormentado pelas percepções e concepções impregnadas pela proliferação
mental.[8A] 19. "Amigos, quando o Abençoado se levantou do seu assento e foi
para a sua moradia depois de expor um sumário sem analisar o seu significado em
detalhe, isto é: 'Bhikkhus, quanto à fonte através da qual as percepções e
concepções impregnadas pela proliferação mental atormentam um homem: se ali
nada é encontrado que deleite, que seja bem vindo, que deva ser mantido, esse é
o fim da tendência subjacente ao desejo sensual ... esse é o fim do lançar mão de
clavas e armas ... nesse caso esses estados ruins e prejudiciais cessam sem
deixar vestígio,' é assim como eu entendo o significado em detalhe. Agora,
amigos, se vocês quiserem, podem ir até o Abençoado perguntar-lhe qual o
significado disso. Exatamente aquilo que o Abençoado explicar é o que vocês
deverão se lembrar." 20. Então
os bhikkhus, tendo se alegrado e se deliciado com as palavras do venerável Maha
Kaccana, levantaram-se dos seus assentos e foram até o Abençoado. Após
homenageá-lo, eles sentaram a um lado e relataram ao Abençoado aquilo que havia
ocorrido depois que ele havia partido, adicionando o seguinte: "Então,
venerável senhor, fomos até o venerável Maha Kaccana e lhe perguntamos sobre o
significado. O venerável Maha Kaccana nos explicou o significado com estes termos,
afirmações e frases." 21.
"Maha Kaccana é sábio, bhikkhus, Maha Kaccana possui muita sabedoria. Se
vocês me tivessem perguntado o significado, eu teria analisado da mesma forma
que Maha Kaccana analisou. Esse é o significado e é assim como vocês deverão se
lembrar." 22. Quando
isso foi dito, o venerável Ananda disse para o Abençoado: "Venerável
senhor, tal como se um homem exausto e faminto encontrasse uma bola de mel [9] e ao comê-la ele experimentasse um sabor doce delicioso;
assim também, venerável senhor, qualquer bhikkhu com uma mente hábil, ao
examinar com sabedoria o significado deste discurso do Dhamma, irá encontrar
satisfação e confiança. Venerável senhor, qual é o nome deste discurso do
Dhamma?" "Quanto
a isso, Ananda, você poderá se lembrar deste discurso do Dhamma como o
"Discurso da Bola de Mel.'" Isso foi o
que disse o Abençoado. O Venerável Ananda ficou satisfeito e contente com as
palavras do Abençoado. Notas: Veja o comentário de Ajaan Thanissaro. [1] Dandapani, cujo nome significa “bengala na mão,” era assim chamado
porque ele costumava andar de forma ostensiva com uma bengala de ouro, apesar
de ser ainda jovem e saudável. De acordo com MA, ele fazia parte do grupo de
Devadatta, o arquiinimigo do Buda, quando este tentou criar um cisma entre os
discípulos do Buda. A maneira pela qual ele formula a pergunta é arrogante,
provocativa e proposital. [Retorna] [2] A primeira parte é uma resposta direta do Buda à atitude agressiva
de Dandapani. MA menciona o SN XXII.94:
"Bhikkhus, eu não disputo com o mundo, é o mundo que disputa comigo. Quem
fala o Dhamma não disputa com ninguém no mundo." A segunda parte pode ser interpretada como
significando que para o arahant (mencionado como 'aquele brâmane', referindo-se
ao próprio Buda), as percepções não mais despertam as tendências subjacentes enumeradas no verso 8. [Retorna] [3] Essa resposta parece ser uma expressão de frustração e confusão. [Retorna] [4] A interpretação desse trecho obscuro depende da palavra papanca e do composto papanca-sañña-sankha. [5] O Buda declarou que o ven. Maha Kaccana era o
discípulo mais destacado para analisar o significado detalhado de um sumário. O MN 133 e MN 138 também
foram discursados por ele em circunstâncias semelhantes. [Retorna] [6] Cakkhubhuto nanabhuto
dhammabhuto brahmabhuto. MA: Ele é visão no sentido de que ele é o líder em
visão; ele é conhecimento no sentido de que ele torna as coisas conhecidas; ele
é o Dhamma no sentido de que ele consiste do Dhamma que ele pronuncia
verbalmente, após havê-lo considerado no seu coração; ele é Brahma, o sagrado,
no sentido de ser o melhor. [Retorna] [7] Este trecho mostra como papanca,
emergindo do processo de cognição, faz surgir percepções e concepções que
subjugam e vitimam o seu criador infeliz. Com relação ao tema das concepções e
proliferação mental, veja também: DN 21.2.2; MN 1.3; MN 11.5; MN 22.15; MN 38.14; MN 72.15; MN 113.21; MN 123.2; MN 140.31; SN XXXV.30; SN XXXV.31; SN XXXV.32; SN XXXV.94; SN XXXV.95; SN XXXV.116; SN
XXXV.248; AN VIII.30; Snp
I.1; Snp IV.11; Snp
IV.14 [Retorna] [8] MA diz que esta passagem tem a intenção de mostrar o ciclo completo
da existência, (vatta), por meio das
doze bases dos sentidos; o verso 18 mostra a cessação do ciclo, (vivatta), por meio da negação das doze bases dos sentidos. [Retorna] [8A] O Bhikkhu Ñanananda na página 13 do livro mencionado na nota 4 acima
resume este discurso da seguinte forma: alguém que esteja livre do desejo, (tanha), presunção, (mana), idéias, (ditthi), com
relação aos fenômenos condicionados envolvidos no processo de cognição, sem
recorrer à ficção de um ‘eu’, estará livre da opressão da proliferação
conceitual e dessa forma terá erradicado todas as tendências para os estados
mentais prejudiciais que fomentam o conflito tanto no indivíduo como na
sociedade. [Retorna] [9] Um grande bolo ou bola feita de farinha, manteiga líquida, melaço,
mel, açúcar, etc. [Retorna] Leia também o comentário de Ajaan Thanissaro.
Em um estudo
profundo (Concept and Reality in Early
Buddhism) o Bhikkhu Ñanananda explica papanca
como "proliferação conceitual" ou seja a propensão da imaginação da
pessoa mundana de irromper em uma profusão de comentários mentais que
obscurecem o reconhecimento dos fenômenos isentos de qualificação.
Os
comentários indicam a fonte dessa proliferação como sendo os três fatores -
desejo, presunção e idéias - por conta dos quais a mente "embeleza" a
experiência interpretando-a em termos de "meu," "eu" e
"pertencente ao meu eu." Papanca é portanto semelhante a maññana,
“conceber”, encontrado no MN1 – nota 6.
O composto
papanca-sañña-sankha é um pouco mais problemático. O ven.
Ñanananda interpreta o significado como sendo "conceitos, suposições, designações ou convenções linguísticas caracterizadas
pela tendência prolífica da mente," mas essa interpretação não toma em
conta a palavra sañña.
MA explica sankha com kotthasa, "porção," e diz que sañña ou é a percepção associada com papanca ou papanca mesmo.
Esta tradução segue a interpretação do ven. Ñanananda ao interpretar sankha como sendo concepção ou noção ao
invés de porção.
A decisão de tratar
sañña-sankha como o composto
"percepções e concepções" pode ser questionada, mas a expressão papanca-sañña-sankha ocorre apenas
raramente no Cânone e nunca é analisada verbalmente de forma que nenhuma
interpretação está isenta de questionamento.
Em interpretações alternativas dos
seus componentes, a expressão poderia ser formulada como "concepções (que
surgem da) proliferação das percepções" ou "concepções perceptivas
(que surgem da) proliferação.”
Na seqüência ficará claro que o próprio processo
de cognição é "a fonte através da qual as percepções e concepções
impregnadas pela proliferação mental atormentam um homem." Se não há nada
no processo cognitivo que deleite, que seja bem vindo, que deva ser mantido, as
tendências subjacentes serão eliminadas. [Retorna]
Revisado: 5 Junho 2012
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