Introdução ao Majjhima Nikaya
Por
Bhikkhu Bodhi
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Índice:
O Majjhima Nikaya como uma Coleção
O Majjhima
Nikaya (MN) é a
segunda coleção dos discursos do Buda encontrada no Sutta
Pitaka do Cânone em
Pali. O seu título significa literalmente a Coleção Média e é assim chamada
porque os suttas nela contidos são em geral de tamanho médio quando comparados
com os discursos mais longos do Digha Nikaya que antecede o MN, e com os
discursos mais curtos que compõem as duas coleções que seguem o MN, Samyutta Nikaya e Anguttara
Nikaya.
O MN
compõem-se de 152 suttas. Estes estão divididos em três partes chamadas Grupos
de Cinqüenta, (pannasa), embora o último grupo contenha cinqüenta e dois
suttas. Dentro de cada grupo os suttas são subdivididos em capítulos ou
divisões, (vagga), com dez suttas cada, sendo que a penúltima divisão
contém doze suttas. Os títulos atribuídos a essas divisões freqüentemente são
derivados exclusivamente do título do primeiro sutta daquela divisão (ou, em
alguns casos, de um par de suttas) e portanto são um indicativo limitado do
material a ser encontrado em cada divisão. Uma exceção diz respeito ao grupo
dos Cinqüenta do Meio, onde os títulos das divisões em geral se referem ao tipo
principal de interlocutor ou figura principal em cada um dos suttas contidos em
cada divisão. Mas mesmo nesses casos a conexão entre o título e o conteúdo é
algumas vezes tênue. Todo o sistema de classificação parece ter sido criado
mais com o propósito de conveniência do que por alguma homogeneidade nos
assuntos tratados nos suttas contidos em cada divisão.
Tampouco
existe uma seqüência pedagógica especial nos suttas, nenhum desdobramento
gradual de pensamento. Assim, enquanto diferentes suttas elucidam-se mutuamente
completando as idéias que foram apenas sugeridas por um outro, em essência,
qualquer sutta pode ser tomado para estudo individual e será inteligível por si
só. É claro que o estudo de toda a coleção irá seguramente proporcionar um
entendimento mais rico.
Se fôssemos
escolher uma única frase que distinga o MN dos demais livros que compõem o
Cânone em Pali, ela o descreveria como uma coleção que combina uma rica
variedade de contextos, em que os discursos foram proferidos, com o conjunto
mais profundo e abrangente de ensinamentos. Como o Digha Nikaya, o MN está
repleto de drama e narrativa, apesar de desprovido da tendência para o
embelezamento imaginativo e a profusão mítica do primeiro. Como o Samyutta, o
MN contém alguns dos mais profundos discursos do Cânone, revelando os insights
radicais do Buda a respeito da natureza da existência; e como o Anguttara, o MN
abrange uma ampla variedade de tópicos com aplicação prática. No entanto,
contrastando com esses dois nikayas, o MN apresenta esse material não sob a
forma de enunciados breves, independentes, mas no contexto de uma fascinante
sucessão de cenários que mostram a resplandecente sabedoria do Buda, a sua
habilidade de adaptar os ensinamentos às necessidades e inclinações dos
interlocutores, a sua sagacidade e humor afável, a sua sublimidade majestosa e
a sua compaixão humanitária.
Sem dúvida,
a maioria dos discursos do MN são dirigidos aos bhikkhus – os monges –pois eles
viviam muito próximos do Mestre e o seguiram na vida santa para poderem absorver o treinamento completo que ele
oferecia. Mas no MN vemos o Buda não só no papel de líder da Ordem. Repetidas
vezes o vemos participando de diálogos com pessoas de distintas camadas sociais
da sociedade Hindu daquela época – com reis e príncipes, com brâmanes e ascetas,
com pessoas simples e filósofos eruditos, com buscadores sérios e debatedores
vaidosos. É talvez nesta coleção, acima de todas as demais, que o Buda emerge
no papel a ele atribuído no verso canônico que homenageia o Abençoado como “um
líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e
humanos.”
Não é só o
Buda que aparece no MN no papel de mestre. Esta coleção também nos apresenta os
realizados discípulos que ele produziu, que deram continuidade à transmissão
dos ensinamentos. Dos 152 suttas contidos no MN, nove são discursados pelo
venerável Sariputta, o General do Dhamma; três desses (MN 9, MN 28, MN 141) se converteram em textos básicos para o
estudo da doutrina Budista nas escolas monásticas em todas as partes do mundo
Budista Theravada. O venerável Ananda, o acompanhante pessoal do Buda durante
os seus últimos vinte cinco anos de vida, discursa sete suttas e participa em
muitos mais. Quatro suttas são discursados pelo venerável Maha Kaccana, que se
destacava por sua habilidade na análise dos enunciados sumários e enigmáticos
do Mestre, e dois pelo segundo discípulo principal, o venerável Maha
Moggallana, um dos quais (MN 15) tem sido recomendado para a reflexão diária
dos monásticos. Um diálogo entre o venerável Sariputta e o venerável Punna
Mantaliputta (MN 24) explora um esquema de sete estágios de
purificação que acabou se constituindo no esboço para o grande tratado sobre o
caminho Budista, o Visuddhimagga, escrito por Acariya Buddhaghosa. Um outro
diálogo (MN 44)
apresenta a bhikkhuni Dhammadinna, cujas respostas a uma série de questões
profundas foram tão hábeis que o Buda as marcou para a posteridade com as
palavras “eu teria explicado exatamente da mesma forma.”
O formato
dos suttas também é bem variado. A maioria toma essencialmente a forma de
discursos, exposições dos ensinamentos que são pronunciados pelo Buda sem
interrupção. Alguns poucos são ditos como uma série de instruções simples ou
como um guia para a prática, mas a maioria está entrelaçada com símiles e parábolas
marcantes que como um relâmpago iluminam a densa massa doutrinária imprimindo–a profundamente na mente. Outros
suttas se desenvolvem sob a forma de diálogos e discussões e em alguns o
elemento dramático ou narrativo predominam. Talvez o mais conhecido e apreciado
sutta desse gênero seja o Angulimala Sutta (MN 86), que relata como o Buda subjugou o
conhecido bandido Angulimala e o transformou num santo iluminado. Da mesma
forma tocante, porém de um modo distinto, é a história de Ratthapala (MN 82), o jovem de uma família rica cujo
insight precoce da universalidade do sofrimento foi tão persuasivo que ele
estava disposto a morrer ao invés de aceitar a recusa dos pais que não queriam
que ele deixasse a vida em família e seguisse a vida santa. Vários suttas estão
centrados num debate e destacam a sagacidade e o delicado senso de ironia do
Buda bem como as suas habilidades dialéticas. Menção especial deve ser feita,
ao MN 35 e MN 56, em que o humor sutil suaviza a
seriedade do conteúdo. Numa categoria à parte está o Brahmanimantanika Sutta (MN 49), onde o Buda visita o mundo de Brahma para
separar um Brahma deludido das suas ilusões de grandeza e logo acaba se
envolvendo numa contenda absorvente com Mara, o Senhor do Mal – uma aliança
inconcebível entre a Divindade e o Demônio, que defende a santidade de
ser/existir contra o chamado do Buda para a libertação em Nibbana, a cessação
de ser/existir.
A
informação biográfica em si mesma nunca foi uma preocupação prioritária para os
redatores do Cânone em Pali e por isso, a informação que o MN proporciona sobre
a vida do Buda é escassa e descoordenada, incluída principalmente pela luz que
ela irradia sobre o Buda como o exemplo ideal da busca espiritual e como o
mestre plenamente qualificado. Apesar disso, embora o MN subordine a biografia
a outros objetivos, ele nos proporciona o relato canônico mais completo da vida
do Buda como um Bodisatva em busca da iluminação. O MN partilha com o Digha
Nikaya a história miraculosa da concepção e nascimento do Bodisatva (MN
123), mas a versão
da sua grande renúncia foi reduzida ao essencial e narrada nos termos austeros
do realismo existencial. Na sua juventude, depois de vivenciar as delícias
sensuais permitidas pelo seu status principesco (MN
75.10), o Bodisatva
concluiu que era fútil aspirar por coisas que, como ele mesmo, estão sujeitas
ao envelhecimento e morte e assim, com os seus pais em lágrimas, ele deixou a
vida em família e saiu em busca do intemporal e imortal, Nibbana (MN
26.13).
O MN 26 relata o seu aprendizado com dois
realizados mestres de meditação da época, a sua maestria nos respectivos
sistemas e a sua subseqüente desilusão. O MN 12 e o MN 36 descrevem as suas práticas ascéticas ao longo
dos seis anos de busca intensa, um caminho que ele perseguiu chegando quase a
ponto de morrer. O MN 26 e o MN 36
relatam com termos despojados a sua realização da iluminação através de
ângulos distintos, embora o MN 26 nos conduza para além da iluminação, para a
sua decisão de ensinar o Dhamma e instruir os primeiros discípulos. A partir
desse ponto, a informação biográfica seqüencial é interrompida no MN e só pode
ser reconstruída de maneira parcial e hipotética. Novamente, apesar da ausência
de um relato sistemático, o MN oferece inúmeros retratos do Buda que nos ajuda
a obter, com o auxílio da informação proporcionada por outras fontes, um quadro
razoavelmente satisfatório das suas atividades diárias e da sua rotina anual ao
longo dos seus quarenta e cinco anos de ensino. Um texto dos comentários
mostra a rotina diária do Buda dividida em períodos de instrução aos bhikkhus,
discursos para os leigos e meditação em retiro, durante a qual em geral ele
“permanecia no vazio” (MN 121.3, MN 122.6), ou na realização da grande compaixão. A
única refeição diária era sempre tomada antes do meio dia, quer recebida
através de um convite ou recebida através da esmola de alimentos, o período de
sono estava limitado a poucas horas por noite, exceto no verão, quando ele
descansava por pouco tempo no meio do dia (MN
36.46). A rotina
anual era determinada pelas condições climáticas da Índia, que dividia o ano em
três estações – uma estação fria de Novembro a Fevereiro, uma estação quente de
Março a Junho e uma estação das chuvas de Julho a Outubro. Como era o costume
entre os ascetas na antiga Índia, o Buda e a sua comunidade monástica
permaneciam numa residência fixa durante a estação das chuvas, quando as chuvas
torrenciais e os rios inchados praticamente impossibilitavam as viagens.
Durante o resto do ano ele perambulava através do vale do rio Ganges expondo os
seus ensinamentos a todos os que estivessem preparados para ouví-los.
Os
principais monastérios nos quais o Buda estabelecia residência para o retiro das
chuvas, (vassa), estavam localizados em Savatthi no reino de Kosala, e
em Rajagaha no reino de Magadha. Em Savatthi, em geral ele ficava no Bosque de
Jeta, um parque que lhe foi oferecido pelo rico comerciante Anathapindika e
conseqüentemente um grande número de discursos do MN foram registrados como
discursados nesse local. Em Savatthi, outras vezes, ele residia no Parque do
Oriente que foi oferecido por uma devota discípula leiga chamada Visakha,
também conhecida como a “mãe de Migara”. Em Rajagaha ele com freqüência residia
no Bambual que havia sido oferecido pelo rei de Magadha, Seniya Bimbisara, e para um maior isolamento, no Pico do
Abutre fora da cidade. As suas perambulações, durante as quais ele geralmente
estava acompanhado por uma grande comitiva de bhikkhus, abrangiam o país dos
Angas, (próximo a Bengala Ocidental na atualidade), até o sopé do Himalaia e o
país dos Kurus (próximo a Delhi na atualidade). Algumas vezes, quando ele via
que um caso especial requeria a sua atenção individual, ele deixava a Sangha e
viajava sozinho (veja o MN 75, MN 86, MN 140). Embora o Cânone seja preciso e confiável ao
proporcionar esses detalhes, a comunidade Budista original focava o seu
interesse não tanto na particularidade concreta histórica do Buda, mas no seu
significado arquétipo. Enquanto os forasteiros podiam vê-lo apenas como um
dentre vários mestres espirituais na época – como o “contemplativo Gotama” –
para os seus discípulos “ele é visão, ele é conhecimento, ele é o Dhamma, ele é
o sagrado; ele é o que diz, o que proclama, o que elucida o significado, o que
provê o imortal, o senhor do Dhamma, o Tathagata” (MN
18.12). O último termo desta série é o epiteto que o Buda usava mais
freqüentemente ao referir a si mesmo, que enfatiza a sua importância como a
‘Grande Chegada’, que concretiza um padrão cósmico repetitivo de eventos. Os
comentadores em Pali explicam a palavra como “assim vindo”, (tatha agata),
e “assim ido”, (tatha gata),
isto é, aquele que veio para o nosso meio trazendo a mensagem do imortal, para
o qual ele “foi” através da sua própria prática do caminho. Como o Tathagata,
ele possui os dez poderes e os quatro tipos de intrepidez que o capacitam a
rugir o “rugido do leão” nas assembléias (MN 12.9-20). Ele não é apenas um místico sábio
ou um moralista benevolente, mas o último numa linhagem de Perfeitamente
Iluminados, cada um dos quais surge sozinho numa era de obscuridade espiritual,
descobre as verdades mais profundas acerca da natureza da existência e
estabelece uma Revelação, (sasana), através da qual o caminho para a
libertação se torna novamente acessível para o mundo. Até aqueles seus
discípulos, que alcançaram a insuperável visão, prática e libertação, honram e
veneram o Tathagata como aquele que, iluminado pelo esforço próprio, ensina os
outros a alcançarem a iluminação (MN 35.26). Recordando-se dele depois do seu falecimento
a primeira geração de monges podia dizer: “O Abençoado foi aquele que fez
surgir o caminho que não havia surgido, o que produziu o caminho que não estava
produzido, o que declarou o caminho que não estava declarado; ele era o
conhecedor do caminho, o que encontrou o caminho, aquele com habilidade no
caminho” que depois foi seguido e realizado pelos seus discípulos (MN
108.5).
O
ensinamento do Buda é chamado Dhamma, uma palavra que tanto pode significar a
verdade transmitida pelo ensinamento, como o meio conceitual e verbal através
do qual essa verdade é expressa para poder ser comunicada e compreendida. O
Dhamma não é um corpo de dogmas imutáveis ou um sistema de idéias
especulativas. Em essência, ele é um meio, uma balsa para atravessar “desta
margem” da ignorância, desejo e sofrimento para a “outra margem” da paz e
liberdade transcendental (MN 22.13). Como o seu objetivo ao apresentar o seu
ensinamento – a libertação do sofrimento – é pragmático, o Buda pode deixar de
lado toda a gama de especulação metafísica como um empreendimento fútil. Ele
compara aqueles que se dedicam a isso com um homem que, atingido por uma flecha
venenosa, recusa a ajuda de um cirurgião até que ele saiba todos os detalhes
sobre quem o assaltou e sobre o armamento empregado (MN
63.5). Atingida
pela flecha do desejo, afligida pelo envelhecimento e morte, a humanidade
necessita urgentemente de ajuda. O remédio que o Buda traz no papel de médico
do mundo (MN 105.27) é o Dhamma, que revela tanto a verdade da nossa
problemática situação existencial como os meios através dos quais podemos curar
as nossas feridas.
O Dhamma
descoberto e ensinado pelo Buda consiste no seu núcleo de Quatro Nobres
Verdades:
a nobre verdade do sofrimento (dukkha)
a nobre verdade da origem do
sofrimento (dukkhasamudaya)
a nobre verdade da cessação do
sofrimento (dukkhanirodha)
a nobre verdade do caminho que
conduz à cessação do sofrimento (dukkhanirodhagaminipatipada)
É para
essas quatro verdades que o Buda despertou na noite da sua iluminação (MN
4.31, MN
36.42);
revelando-as para o mundo quando ele colocou em movimento a inigualável Roda do
Dhamma em Benares (MN 141.2) e mantendo-as num patamar elevado através dos
quarenta e cinco anos do seu ministério como “o ensinamento particular dos
Budas” (MN 56.18). As Quatro Nobres Verdades são explicadas de
forma concisa no MN 9.14-18 e em detalhe no MN
141, enquanto no MN 28 o venerável Sariputta desenvolve
uma explicação original das verdades, exclusiva deste sutta. Embora as Quatro
Nobres Verdades sejam apresentadas de forma explícita só de vez em quando, elas
estruturam todo o ensinamento do Buda, contendo em si mesmas seus muitos outros
princípios, da mesma forma como a pegada do elefante contém em si as pegadas de
todos os outros animais (MN 28.2).
A noção
fundamental ao redor da qual giram as verdades é dukkha, traduzido como
“sofrimento.” Originalmente, a palavra
em Pali significava simplesmente dor e sofrimento, um significado que é mantido
nos textos quando essa palavra é usada como uma qualidade das sensações: nesses
casos dukkha tem sido interpretado como “dor” ou “doloroso.” Como primeira
verdade, no entanto, dukkha tem um significado muito mais amplo, que
reflete uma visão filosófica completa. Enquanto dukkha toma o colorido
emocional da conexão com a dor e o sofrimento, e com certeza inclui estes, ele
aponta para mais além desse significado limitado, para a insatisfação inerente
em tudo aquilo que é condicionado. Essa qualidade insatisfatória do
condicionado é devido à sua impermanência, sua vulnerabilidade à dor e devido à
sua inabilidade em proporcionar satisfação completa e duradoura.
A noção de impermanência,
(anicca), constitui o fundamento do ensinamento do Buda, e foi esse
insight inicial que empurrou o Bodisatva a deixar o palácio em busca do caminho
pela iluminação. A impermanência, na visão Budista, compreende a totalidade da
existência condicionada, variando numa escala que vai do cósmico ao
microscópico. No ponto extremo dessa escala, a visão do Buda revela um universo
com dimensões imensas evoluindo e se desintegrando em ciclos repetitivos sem um
princípio que possa ser determinado – “muitos ciclos cósmicos de contração,
muitos ciclos cósmicos de expansão, muitos ciclos cósmicos de contração e
expansão” (MN 4.27). No ponto médio dessa escala, a marca da
impermanência se manifesta na nossa inescapável mortalidade, essa nossa condição de seres atados ao
envelhecimento, enfermidade e morte (MN 26.5), possuidores de um corpo que está sujeito “a
ser gasto e pulverizado, à dissolução e desintegração” (MN
74.9). E no outro
extremo da escala, o ensinamento do Buda revela a impermanência radical que só
pode ser observada através da atenção prolongada daquilo que é experimentado no
momento presente: o fato de que todos os elementos do nosso ser, corporal e
mental, estão num processo contínuo, surgindo e cessando em rápida sucessão, de
momento a momento, sem nenhuma substância persistente subjacente. Durante a
própria observação eles estão sujeitos à “destruição, desaparecimento,
decadência e cessação” (MN 74.11).
Essa
característica da impermanência, que marca tudo que é condicionado, conduz
diretamente ao reconhecimento da universalidade de dukkha ou sofrimento.
O Buda ressalta esse aspecto ubíquo de dukkha na sua explanação da
primeira nobre verdade, quando ele diz, “em resumo, os cinco agregados
influenciados pelo apego são sofrimento.” Os cinco agregados influenciados pelo
apego, (panc'upadanakkhandha), são um esquema classificatório que o Buda
desenvolveu para demonstrar a natureza composta da identidade. O esquema
compreende todos os possíveis tipos de estados condicionados, que estão
distribuídos em cinco categorias: forma material, sensação, percepção,
formações mentais e consciência. O agregado da forma material, (rupa),
inclui o corpo físico com as suas faculdades dos sentidos bem como os objetos
materiais externos. O agregado da sensação, (vedana), é o elemento
emotivo das experiências, quer sejam prazerosas, dolorosas ou neutras. A
percepção, (sañña), o terceiro agregado, é o fator responsável por notar
as qualidades das coisas e também se responsabiliza pela identificação e
memória. O agregado das formações, (sankhara), é um termo abrangente que
inclui todos os aspectos volitivos, emocionais e intelectuais da vida mental. E
a consciência, (viññana), o quinto agregado, é o nível básico da
consciência de um objeto, indispensável para qualquer cognição. Como mostra o
venerável Sariputta na sua habilidosa análise da primeira nobre verdade, os
representantes dos cinco agregados estão presentes em cada ocorrência da
experiência, surgindo em conexão com cada uma das seis faculdades dos sentidos
e seus objetos (MN 28.28).
A afirmação
do Buda de que os cinco agregados são dukkha revela que as coisas com as
quais nos identificamos e que consideramos ser a base para a felicidade, vistas
corretamente, são a base para o sofrimento que tememos. Mesmo quando nos sentimos
confortáveis e seguros, a instabilidade dos agregados é em si mesma uma fonte
de opressão e nos mantém continuamente expostos ao sofrimento nas suas formas
mais evidentes. A situação toda se multiplica em outras dimensões, além do que
pode ser conjecturado, quando tomamos em conta a revelação do Buda sobre o fato
do renascimento. Todos os seres, nos quais a ignorância e o desejo estão
presentes, perambulam no ciclo de repetidas existências, samsara, onde
cada ciclo traz o sofrimento de um novo nascimento, envelhecimento, enfermidade
e morte. Todos os estados de existência dentro de samsara, sendo obrigatoriamente transitórios e
sujeitos à mudança, são incapazes de proporcionar segurança duradoura. A vida
em qualquer mundo é instável, é varrida, não tem refúgio nem protetor, não tem
nada que lhe pertença (MN 82.36).
O Ensinamento de Não-eu (Anatta)
Conectado
de forma inextricável com a impermanência e o sofrimento está o terceiro
princípio, intrínseco a todos os fenômenos da existência. Essa é a
característica do não-eu, (anatta), e os três juntos são chamados de as
três marcas ou características, (tilakkhana). O Buda ensina, contrário
às nossas crenças mais valiosas, que a nossa identidade – os cinco agregados –
não pode ser identificada como o eu, como um fundamento duradouro e substancial
para uma identidade pessoal. A noção de um eu tem somente validez convencional,
como um conveniente mecanismo para descrever de forma abreviada uma situação
composta sem substância. Ela não significa uma entidade última imutável que
sobrevive no íntimo do nosso ser. Os fatores corporais e mentais são fenômenos
transitórios que surgem e desaparecem constantemente, processos que criam a
aparência de um eu através da sua continuidade causal e funcionamento
interdependente. Todavia, o Buda não propõe um eu fora e além dos cinco
agregados. A noção de um eu, tratada como fundamental, é considerada por ele
como fruto da ignorância, e todas as variadas tentativas de fundamentar essa noção
identificando-a com algum aspecto da identidade é descrita como “apego a uma
doutrina de um eu.”
Em vários
suttas no MN, o Buda expressa com vigor o seu repúdio às idéias de um eu. No MN
102, ele empreende
uma extensa análise das várias proposições apresentadas sobre o eu, declarando
que todas são “condicionadas e grosseiras.” No MN
2.8, seis idéias
sobre o eu são rotuladas como “um emaranhado de idéias, uma confusão de idéias,
idéias contorcidas, idéias vacilantes, idéias que agrilhoam.” No MN 11, ele compara o seu ensinamento
ponto por ponto com o ensinamento de outros contemplativos e brâmanes e mostra
que debaixo das suas aparentes similaridades, eles divergem nesse único ponto
crucial – a rejeição das idéias de um eu – que subverte os pontos de
concordância. O MN 22, oferece uma série de argumentos contra a
idéia de um eu, culminando com a declaração do Buda de que ele não vê nenhuma
doutrina de um eu que não conduza à tristeza, lamentação, dor, angústia e
desespero. No seu esquema dos passos para a libertação, a idéia da existência de um eu, (sakkayaditthi), a concepção de um eu em relação aos cinco agregados, é considerada como o
primeiro grilhão a ser rompido com o surgimento da “visão do Dhamma.”
O princípio
do não-eu é mostrado nos suttas como uma seqüência lógica das duas marcas da
impermanência e sofrimento. A fórmula padrão afirma que aquilo que é
impermanente é dor ou sofrimento, e aquilo que é impermanente, sofrimento e
sujeito à mudança não pode ser considerado como meu ou eu (MN
22.26, MN
35.20, etc.).
Outros trechos destacam a relação entre as três características através de
ângulos distintos. O MN 28 destaca que se até mesmo os elementos materiais
externos – terra, água, fogo e ar – apesar de tão vastos, são de tempos em
tempos destruídos em cataclismos cósmicos, não é possível conceber que este
corpo transitório seja o eu. O MN 148 usando a argumentação reductio ad
absurdum demonstra que a impermanência implica o não-eu: como todos os fatores da
existência estão claramente sujeitos ao surgimento e desaparecimento,
identificar entre eles qualquer coisa que seja com o eu significa apoiar-se na
tese indefensável de que o eu está sujeito ao surgimento e desaparecimento. O MN 35.19
conecta a marca do não-eu com dukkha ao argumentar que, como não podemos
fazer com que os cinco agregados se sujeitem à nossa vontade, eles não podem
ser tomados como meu ou eu.
A Origem e a Cessação do Sofrimento
A segunda
das Quatro Nobres Verdades declara a origem ou causa do sofrimento, que o Buda
identifica como desejo, (tanha), nos seus três aspectos: desejo pelos
prazeres sensuais; desejo pela existência, isto é, de continuar a ser/existir e
desejo pela não existência, isto é, pela aniquilação pessoal. A terceira
verdade afirma o oposto da segunda verdade, que com a eliminação do desejo o
sofrimento que se origina deste cessará sem deixar vestígio.
A
descoberta feita pelo Buda do vínculo causal entre o desejo e o sofrimento
explica a aparente característica “pessimista” que emerge de vários suttas no
MN: no MN 13 com a
dissertação sobre os perigos dos prazeres sensuais, forma e sensações; no MN 10 e MN
119 com as meditações dos cemitérios; no MN 22, MN 54 e MN 75 com os símiles chocantes para os prazeres
sensuais. Esses ensinamentos fazem parte da abordagem tática do Buda para guiar
os seus discípulos para a libertação. Por sua própria natureza inerente, o
desejo surge e prospera onde quer que encontre algo que pareça ser prazeroso e
delicioso. Ele prolifera através da percepção equivocada – a percepção dos
objetos sensuais como prazerosos – e para romper o agarramento da mente pelo
desejo, com freqüência, a exortação não basta. O Buda precisa fazer com que as
pessoas vejam que as coisas que elas anseiam e perseguem com sofreguidão são na
realidade sofrimento, e ele faz isso expondo os perigos escondidos por trás do
seu exterior doce e atraente.
Embora a
segunda e a terceira nobres verdades tenham um valor psicológico imediato, elas
também possuem um aspecto mais profundo revelado nos suttas. As duas verdades
intermediárias, da forma como estão expressas na formulação geral das Quatro
Nobres Verdades, são de fato versões abreviadas de uma formulação mais extensa,
que revela a origem e a cessação do cativeiro no samsara. A doutrina em que
essa versão expandida das duas verdades é apresentada é chamada paticca
samuppada, origem dependente. Na sua versão mais completa, essa doutrina
explica a origem e a cessação do sofrimento representada pelos doze fatores
conectados . Essa formulação, apresentada de modo esquemático, será encontrada
no MN 38.17 na
sua ordem de origem e no MN 38.20 na sua ordem de cessação. O MN
115.11 inclui ambas
as seqüências juntas, precedidas por um enunciado do princípio geral da
condicionalidade que suporta a referida doutrina. Uma versão mais elaborada
apresentando uma análise de cada termo da seqüência é apresentada no MN
9.21-66, e uma
versão exemplificada tomando o curso de uma vida individual no MN
38.26-40. Versões
condensadas também podem ser encontradas
especialmente no MN 1.171, MN 11.16 e MN 75.24-25. O venerável Sariputta repete as
palavras do Buda dizendo que aquele que vê a origem dependente vê o Dhamma e
aquele que vê o Dhamma vê a origem dependente (MN
28.28).
De acordo com
a interpretação usual, a série de doze fatores abrange três vidas e se divide
em fases causais e resultantes. A essência desse processo pode ser explicada
resumidamente da seguinte forma. Devido à ignorância, (avijja) –
definida como o desconhecimento das Quatro Nobres Verdades – um ser engaja em
ações volitivas ou kamma e que podem ser corporais, verbais ou mentais,
benéficas ou prejudiciais. Essas ações cármicas são as formações, (sankhara),
e elas amadurecem nos estados de consciência, (viññana) – primeiro como
a consciência de renascimento no momento da concepção e depois como estados de
consciência passivos que são o fruto de kamma que amadurece ao longo da vida.
Junto com a consciência surge a mentalidade-materialidade (nome e forma), (namarupa), o
organismo psicofísico que é equipado com a base sêxtupla, (salayatana),
as cinco faculdades dos sentidos e a mente como a faculdade das funções
cognitivas mais elevadas. Através das faculdades dos sentidos ocorre o contato,
(phassa), entre a consciência e os seus objetos, e o contato condiciona
as sensações, (vedana). Os elos da consciência até as sensações são o
produto do kamma passado, da fase causal representada pela ignorância e
formações. Com o elo seguinte, tem início a fase carmicamente ativa da vida
presente com capacidade de produzir uma nova existência no futuro. Condicionado
pela sensação, surge o desejo, (tanha), sendo esta a segunda nobre
verdade. Quando o desejo se intensifica ele dá origem ao apego, (upadana),
através do qual o ser novamente se engaja em ações volitivas férteis com o
ser/existir, (bhava). A nova existência começa com o nascimento, (jati),
que inevitavelmente conduz ao envelhecimento e morte, (jaramarana).
O
ensinamento da origem dependente também mostra como o ciclo de existências pode
ser quebrado. Com o surgimento do verdadeiro conhecimento, a completa
penetração das Quatro Nobres Verdades, a ignorância é erradicada. Como
conseqüência, a mente não mais se entrega ao desejo e ao apego, as ações perdem
o seu potencial de gerar o renascimento e assim, desprovido do seu combustível
o ciclo chega ao fim. Isso evidencia o objetivo do ensinamento, identificado na
terceira nobre verdade, a cessação do sofrimento.
O estado
que sobrevém depois que a ignorância e o desejo foram desenraizados é chamado
Nibbana, (Nirvana em Sânscrito), e nenhum outro conceito nos ensinamentos do
Buda provou ser tão refratário à precisão conceitual como este. E de certo modo
é de se esperar esse caráter elusivo, visto que Nibbana é descrito precisamente
como “profundo, difícil de ver e difícil de compreender, ... que não pode ser
alcançado através do mero raciocínio” (MN 26.19). No entanto, nesse mesmo trecho o Buda também
diz que Nibbana é para ser experimentado pelos sábios, e nos suttas ele
proporciona indicações suficientes quanto à sua natureza para transmitir a
idéia de que é algo desejável.
O Cânone em
Pali oferece evidência suficiente para deixar de lado a opinião de alguns
intérpretes que afirmam ser Nibbana a completa aniquilação; mesmo a idéia mais
sofisticada, que diz que Nibbana é simplesmente a destruição das impurezas
mentais e a extinção da existência, não se mantém depois de um exame minucioso.
Provavelmente o testemunho mais
convincente contra essa idéia é o conhecido trecho do Udana que declara sobre
Nibbana que “o que não nasceu - o que não veio a ser - o que não é feito - o
que não é fabricado,” cuja existência faz com que seja possível a “emancipação
do nascido - do que veio a ser - do feito - do fabricado” (Ud
8.3). O MN
caracteriza Nibbana de modo semelhante. É o que não nasce, não envelhece, não
está sujeito à enfermidade, o imortal, não está sujeito à tristeza, não está
sujeito às impurezas, a suprema segurança contra o cativeiro,” que o Buda
alcançou na noite da sua iluminação (MN 26.18). A sua realidade preeminente é afirmada pelo
Buda quando ele define Nibbana como o supremo fundamento da verdade, cuja
natureza não é enganosa e que se classifica como a verdade nobre suprema (MN
140.26). Nibbana
não pode ser percebido por aqueles que estão imersos na cobiça e na raiva, mas
pode ser experimentado com o surgimento da visão espiritual, e através da
fixação da mente nisso em estado meditativo profundo o discípulo poderá
alcançar a destruição das impurezas (MN 26.19, MN 75.24, MN 64.9).
O Buda não
dedica muitas palavras à definição filosófica de Nibbana. Uma das razões é que
por ser Nibbana, incondicionado, transcendente e supramundano, não se adapta
com facilidade à definição baseada em conceitos que inevitavelmente estão
presos ao condicionado, manifesto e mundano. Outra razão é que o objetivo do
Buda é de natureza prática, conduzir os seres à libertação do sofrimento, e
assim a sua abordagem principal na caracterização de Nibbana é estimular a
motivação para alcançá-lo e mostrar o que deve ser feito para realizar isso.
Para mostrar que Nibbana é desejável, como o objetivo da prática, ele o
descreve como a felicidade suprema, como o supremo estado de paz sublime, como
aquilo que não envelhece, imortal e desprovido de tristeza, como a suprema
segurança contra o cativeiro. Para mostrar o que deve ser feito para alcançar
Nibbana, para indicar que o objetivo implica uma tarefa específica, ele o
descreve como o cessar de todas as formações, o abandono de todos os apegos, o
fim do desejo, desapego, cessação (MN 26.19). Acima de tudo, Nibbana é a cessação do
sofrimento, e para aqueles que buscam o fim do sofrimento essa designação é
suficiente para atraí-los para o caminho.
A quarta
nobre verdade completa o padrão estabelecido nas três primeiras verdades ao
revelar os meios para eliminar o desejo e dessa forma dar um fim ao sofrimento.
Esta verdade ensina o “Caminho do Meio” descoberto pelo Buda, o Nobre Caminho
Óctuplo:
1.
Entendimento Correto (samma ditthi)
2.
Pensamento Correto (samma sankappa)
3.
Linguagem Correta (samma vaca)
4. Ação
Correta (samma kammanta)
5. Modo de
Vida Correto (samma ajiva)
6. Esforço
Correto (samma vayama)
7. Atenção
Plena Correta (samma sati)
8.
Concentração Correta (samma samadhi)
Mencionado
incontáveis vezes ao longo do MN, o Nobre Caminho Óctuplo é explicado em
detalhe em dois suttas completos. O MN 141 apresenta uma análise fatorial dos oito
componentes do caminho empregando as definições padrão do Cânone em Pali; o MN
117 explica o caminho
sob um ângulo distinto sob a rubrica de “nobre concentração correta com os seus
suportes e os seus requisitos.” Neste caso, o Buda faz a importante distinção
entre os estágios mundanos e supramundanos do caminho, define os primeiros
cinco fatores de ambos os estágios e mostra como os fatores do caminho
funcionam em harmonia na tarefa comum de proporcionar uma escapatória do
sofrimento. Outros suttas exploram em mais detalhes os componentes individuais
do caminho. Assim, o MN 9 proporciona uma
explicação profunda do entendimento correto, o MN
10 da atenção plena correta, o MN 19 do
pensamento correto. O MN 44.11 explica que os oito fatores podem ser
englobados em três “agregados”. Linguagem Correta, Ação Correta e Modo de Vida
Correto compõem o agregado da virtude ou disciplina moral, (sila);
Esforço Correto, Atenção Plena Correta e Concentração Correta compõem o
agregado da concentração, (samadhi); e o Entendimento Correto e o
Pensamento Correto compõem o agregado do entendimento ou sabedoria, (pañña).
Essa seqüência tríplice, por outro lado, serve como esquema básico para o
treinamento gradual, que será discutido mais adiante.
No Cânone
em Pali as práticas que conduzem a Nibbana são freqüentemente detalhadas num conjunto mais complexo que compreende
sete grupos de fatores que se cruzam. Nos textos subseqüentes eles são
designados como os trinta e sete apoios ou “asas” para a iluminação, (bodhipakkhiya
dhamma), mas o próprio Buda se referia a eles como “essas coisas que lhes
ensinei após tê-las conhecido diretamente", sem dar-lhes um nome coletivo
(MN 103.3, MN
104.5). Próximo ao
final da sua vida ele enfatizou para a
Sangha que a longa duração dos seus ensinamentos no mundo dependia da
preservação acurada desses fatores e que estes fossem praticados pelos seus discípulos
em harmonia, sem disputas.
Os
constituintes desse conjunto são os seguintes:
Os quatro fundamentos da
atenção plena (satipatthana)
Os quatro tipos de esforço (sammappadhana)
As quatro bases do poder
espiritual (iddhipada)
As
cinco faculdades dominantes (indriya)
Os
cinco poderes (bala)
Os sete fatores da iluminação (bojjhanga)
O nobre caminho óctuplo (ariya
atthangika magga)
Cada grupo
é definido completamente no MN 77.15-21. O exame irá mostrar que a maioria
desses grupos são simplesmente subdivisões ou rearranjos dos fatores do caminho
óctuplo feitas para dar destaque a diferentes aspectos da prática. Assim, por
exemplo, os quatro fundamentos da atenção plena são uma elaboração da atenção
plena correta; os quatro tipos de esforço são uma elaboração do esforço
correto. O desenvolvimento dos grupos é portanto integral e não sequencial. O MN
118, por exemplo,
mostra como a prática dos quatro fundamentos da atenção plena realiza o
desenvolvimento dos sete fatores da iluminação e o MN
149.10 afirma que
aquele que se dedicar à meditação de insight tomando como objeto as bases
sensuais realizará todos os trinta e sete apoios para a iluminação.
A análise
fatorial dos trinta e sete apoios para a iluminação revela a importância
central de quatro fatores – energia, atenção plena, concentração e sabedoria.
Disso, um quadro claro da prática essencial pode ser esboçado. A pessoa inicia
com um entendimento conceitual do Dhamma e o pensamento de atingir o objetivo,
os dois primeiros fatores do caminho. Depois, com base na fé, ela aceita a
disciplina moral que controla a linguagem, ação e modo de vida. Tendo a virtude
como base, ela aplica a mente com energia no cultivo dos quatro fundamentos da
atenção plena. À medida que a atenção plena amadurece, esta proporciona a
concentração profunda, e a mente concentrada, através da investigação, alcança
a sabedoria, o entendimento penetrante dos princípios que no início foram
apenas compreendidos conceitualmente.
Freqüentemente,
no MN, o Buda explica a prática do caminho como um treinamento gradual, (anupubbasikkha),
que se desdobra em estágios desde o primeiro passo até o objetivo final. Esse
treinamento gradual é uma subdivisão mais detalhada da divisão tríplice do
caminho em virtude, concentração e sabedoria. Sempre, nos suttas, a seqüência
do treinamento gradual é mostrada começando com o abandono da vida em família e
a adoção do estilo de vida de um bhikkhu, um monge Budista. Isso de imediato
chama a atenção para a importância da vida monástica na Revelação do Buda. Em
princípio, a prática de todo o Nobre Caminho Óctuplo está aberta a pessoas de
qualquer estilo de vida, monástico ou leigo, o Buda confirma que muitos entre
os seus discípulos leigos eram realizados no Dhamma e tinham alcançado os três
primeiros dos quatro estágios supramundanos (MN
68.18-23; MN
73.9-22); a posição
do Theravada é que um discípulo leigo também pode alcançar o quarto estágio, do
arahant, mas ao alcançá-lo ele imediatamente segue a vida monástica ou falece.
No entanto, permanece o fato de que a vida em família inevitavelmente tende a
impedir a busca resoluta pela libertação ao fomentar uma multidão de
preocupações mundanas e apegos pessoais. Por conseguinte, o próprio Buda adotou
o estilo de vida monástico como passo preliminar na sua busca nobre e depois da
sua iluminação ele estabeleceu a Sangha, a ordem dos bhikkhus e bhikkhunis,
como refúgio para aqueles que querem se dedicar completamente à prática dos
seus ensinamentos sem serem desviados pelas preocupações da vida em família.
O principal
paradigma para o treinamento gradual encontrado no MN é aquele apresentado no MN 27 e MN 51; versões alternativas podem ser encontradas no
MN 38, MN 39, MN 53, MN 107 e MN 125 e algumas das variações mais importantes serão
comentadas brevemente. A seqüência tem início com o surgimento de um Tathagata
no mundo e a sua exposição do Dhamma, ao ouví-la o discípulo adquire fé e segue
o Mestre na vida monástica. Tendo seguido a vida santa, ele adota e observa as
regras de disciplina que promovem a purificação da conduta e do modo de vida.
Os próximos três passos – satisfação, contenção das faculdades dos sentidos,
atenção plena e plena consciência – têm a intenção de interiorizar o processo
de purificação e dessa forma estabelecer
a ponte de transição da virtude para a concentração. Versões alternativas (MN 39, MN 53, MN 107, MN 125) introduzem dois passos adicionais neste
ponto, a moderação na alimentação e a vigilância. O treinamento na concentração
ganha proeminência na seção sobre o abandono dos obstáculos. Os cinco
obstáculos – desejo sensual, má vontade, preguiça e torpor, inquietação e
ansiedade, dúvida – são os principais obstáculos ao desenvolvimento meditativo
e a sua remoção é portanto essencial para que a mente possa ser conduzida a um
estado de calma e unificação. Na seqüência do treinamento gradual a superação
dos obstáculos é tratada apenas de forma esquemática; outras partes do Cânone
proporcionam instruções mais práticas que são ainda mais ampliadas nos
comentários. O trecho sobre os obstáculos está adornado no MN 39 com uma série de símiles que
ilustram o contraste entre o cativeiro imposto pelos obstáculos e a prazerosa
sensação de liberdade que é conquistada quando estes são abandonados.
O próximo estágio na seqüência descreve a realização dos jhanas, estados
profundos de concentração nos quais a mente se torna totalmente absorta no seu
objeto. O Buda enumerou quatro jhanas, simplesmente nomeados de acordo com a
sua posição numérica na série, cada um mais refinado e mais sublime do que o
anterior. Os jhanas são sempre descritos através das mesmas fórmulas, que em
vários suttas (MN 39, MN 77, MN 119) são incrementadas com belos símiles. Embora na
tradição Theravada os jhanas não sejam considerados indispensáveis para
alcançar a iluminação, [1]o Buda sempre os inclui no treinamento gradual completo devido à
sua contribuição para a perfeição intrínseca do caminho e porque a concentração
profunda proporciona uma base sólida para o cultivo do insight. Apesar de
mundanos, os jhanas são as “pegadas do Tathagata” (MN
27.19-22) e
presságios da bem aventurança de Nibbana que se encontra no final do
treinamento.
A partir do
quarto jhana, três alternativas de desenvolvimento adicional se tornam
possíveis. Em várias passagens fora da seqüência do treinamento gradual (MN 8, MN 25, MN 26, MN 66, etc.) o Buda menciona quatro estados
meditativos que dão continuidade à unificação da mente estabelecida nos jhanas.
Esses estados, descritos como “as libertações que são pacíficas e imateriais,”
tal como os jhanas, também são mundanos. Distinguem-se dos jhanas pela
transcendência sutil da imagem mental que constitui o objeto da concentração,
eles recebem os seus nomes dos seus objetos transcendentes: a base do espaço
infinito, a base da consciência infinita, a base do nada, a base da nem
percepção, nem não percepção. Nos comentários em Pali esses estados passaram a
ser chamados de jhanas imateriais ou sem forma, (arupajjhana).
Uma segunda
linha de desenvolvimento revelada pelos suttas é a obtenção de poderes
supra-humanos. O Buda com freqüência menciona seis tipos que formam um grupo e
que passaram a ser chamados os seis tipos de conhecimento direto, (chalabhinna;
esta expressão não aparece no MN). O último desses conhecimentos, o
conhecimento da destruição das impurezas, é supramundano e como tal pertence à
terceira linha de desenvolvimento. Mas os outros cinco são todos mundanos, resultado do extraordinário grau de concentração
mental alcançado no quarto jhana: os poderes supra-humanos, o ouvido divino, a
habilidade de ler a mente dos outros, a recordação das vidas passadas e o olho
divino (MN 6, MN 73, MN 77, MN 108).
Os jhanas e
os tipos mundanos de conhecimento direto por si só não resultam na iluminação e
libertação. Ainda que sublimes e pacíficas, essas realizações podem apenas
abafar as contaminações que sustentam o ciclo de renascimentos, mas não são
capazes de erradicá-las. Para desenraizar as contaminações na sua base e com
isso produzir os frutos da iluminação e libertação, o processo meditativo
precisa ser re-direcionado para uma terceira linha de desenvolvimento, que não
pressupõe necessariamente as duas anteriores. Trata-se da contemplação das
“coisas como estas na verdade são,” que resulta em níveis progressivos de
profundo insight em relação à natureza da existência e que culmina no objetivo
final, a realização do estado de arahant.
Esta linha
de desenvolvimento é aquela que o Buda persegue na seqüência do treinamento
gradual, embora ele a preceda com a descrição de dois dos conhecimentos
diretos, a recordação de vidas passadas e o olho divino. Os três juntos, que
aparecem de modo destacado na iluminação do próprio Buda (MN
4.27-30), são em
conjunto denominados os três conhecimentos verdadeiros, (tevijja).
Embora os dois primeiros dentre os três não sejam essenciais para a realização
do estado de arahant, podemos presumir que o Buda os inclui por eles revelarem
a verdadeira dimensão ampla e profunda do sofrimento no samsara e dessa maneira
prepararem a mente para a penetração das Quatro Nobres Verdades, nas quais esse
sofrimento é diagnosticado e superado.
O processo
de contemplação através do qual o meditador desenvolve o insight não é mostrado
de modo explícito como na seqüência do treinamento gradual. Ele fica implícito
pela exibição do seu fruto final, aqui chamado de conhecimento da destruição
das impurezas. Os asavas ou impurezas são uma classificação das
contaminações consideradas no seu papel de sustentação do ciclo samsárico. Os
comentários derivam a palavra da raiz su que significa “fluir”. Existe
divergência entre os estudiosos sobre se o fluxo implícito no prefixo a é
para fora ou para dentro; por conseguinte, alguns o interpretam como “fluxo
para dentro” ou “influências”, outros como “fluxo para fora” ou
“efluentes”.
Um trecho
freqüentemente encontrado nos suttas indica no entanto o real significado do
termo, independentemente da sua etimologia, quando descreve os asavas como
estados “que contaminam, que causam a renovação de ser/existir, que causam problemas,
que amadurecem no sofrimento e conduzem ao futuro nascimento, envelhecimento e
morte” (MN 36.47, etc.). Assim, outros tradutores, deixando de
lado o sentido literal, utilizam a interpretação de “máculas”, “corrupções” ou
“impurezas”. As três impurezas mencionadas nos suttas são na realidade
sinônimas de desejo por prazeres sensuais, de desejo por ser/existir e da
ignorância que aparece no topo da fórmula da origem dependente. Quando a mente
do discípulo foi libertada das impurezas com a culminação do caminho do
arahant, ele revê a sua recém-conquistada libertação e ruge o rugido do leão:
“O nascimento foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito
foi feito, não há mais vir a ser a nenhum estado.”
Os métodos
de meditação ensinados pelo Buda no Cânone em Pali se encaixam dentro de dois
sistemas amplos. Um é o desenvolvimento da tranqüilidade, (samatha), que
objetiva a concentração, (samadhi); o outro é o desenvolvimento de insight,
(vipassana), que objetiva o entendimento ou sabedoria, (pañña).
No sistema de treinamento mental do Buda o papel da tranqüilidade é subordinado
ao insight porque este último é o instrumento crucial necessário para
desenraizar a ignorância que se encontra na base do cativeiro samsárico. As
realizações possíveis através da meditação da tranqüilidade eram do
conhecimento dos contemplativos Hindus muito antes do advento do Buda. O
próprio Buda adquiriu maestria nos dois estágios mais elevados, nesse tipo de
meditação, sob a orientação dos seus primeiros mestres, mas concluiu que eles
só conduziam aos planos superiores de renascimento, não à verdadeira iluminação
(MN 26.15-16).
Entretanto, como a unificação da mente, induzida pela prática da concentração,
contribui para o claro entendimento, o Buda incorporou as técnicas da meditação
da tranqüilidade e os níveis de absorção resultantes ao seu próprio sistema,
tratando-os como fundamento e preparação para o insight e como um “estado
prazeroso no aqui e agora.”
As
realizações alcançadas por meio da prática da meditação da tranqüilidade são,
como mencionado na seção anterior, as
oito absorções – os quatro jhanas e as quatro realizações imateriais – cada um
dos quais servindo como base para o seguinte. Curiosamente, os suttas não
prescrevem, de modo explícito, objetos de meditação específicos por meio dos
quais os jhanas podem ser alcançados, mas comentários como o Visuddhimagga nos
permitem fazer as respectivas conexões. Entre os tópicos de meditação
enumerados nos suttas, oito das dez kasinas (MN
77.24) são
reconhecidas como adequadas para alcançar todos os quatro jhanas, sendo que as
duas últimas são respectivamente suporte para as duas primeiras realizações
imateriais. As oito bases para a transcendência parecem ser um tratamento
bastante diferenciado de meditação das kasinas coloridas, bem como as três
primeiras das oito libertações (MN 77.22-23). A atenção plena na respiração, à
qual o Buda dedicou um sutta completo (MN 118), proporciona um objeto de meditação sempre
acessível que pode ser empregado para todos os quatro jhanas e também para
desenvolver o insight. Outro método para alcançar os jhanas mencionado nos
suttas são as quatro moradas divinas, (brahmavihara) – amor bondade,
compaixão, alegria altruísta e equanimidade (MN 7, MN 40, etc.). A tradição afirma que as três
primeiras são capazes de conduzir aos três jhanas iniciais e a última de
induzir o quarto jhana. As realizações imateriais são alcançadas fixando a
mente no objeto específico de cada realização – espaço infinito, consciência
infinita, nada e o estado que só pode ser descrito como nem perceptivo, nem não
perceptivo.
Enquanto
que na meditação da tranqüilidade o meditador tenta focar num único objeto
uniforme abstraído da experiência presente, na meditação de insight o esforço é
feito para contemplar, de uma posição de observação desapegada, o contínuo
fluxo da experiência em si, em constante mutação, para penetrar a natureza
essencial dos fenômenos materiais e mentais. O Buda ensina que o desejo e o apego
que nos mantêm em cativeiro são sustentados por uma rede de “concepções”, (maññita)
– idéias deludidas, conceitos e suposições que a mente fabrica por meio de um
processo de comentário mental interno
ou “proliferação”, (papañca), e depois as projeta no mundo,
assumindo que elas possuem validade objetiva. A tarefa da meditação de insight
é de cortar os nossos apegos permitindo-nos penetrar essa rede de projeções
conceituais de modo que possamos ver as coisas tal qual estas na verdade são.
Ver as coisas
como elas na verdade são significa vê-las em relação às três características –
como impermanentes, como insatisfatórias e como não-eu. Visto que as três
características estão intimamente interligadas, qualquer uma delas pode ser
tomada como a porta principal para entrar no domínio do insight, mas a
abordagem usual do Buda é de mostrá-las juntas – a impermanência denotando o
sofrimento e as duas em conjunto denotando a ausência de um eu. Quando o nobre
discípulo vê todos os fatores estampados com essas três marcas, ele não mais se
identifica com eles, não mais se apropria deles assumindo serem meu ou o eu. Vendo desta maneira, ele se desencanta com todas as formações. Ao se
desencantar a sua cobiça e apego desaparecem e a sua mente se liberta das impurezas.
As
instruções para o desenvolvimento do insight no MN, embora concisas, são muitas
e variadas. O ensinamento mais importante para a prática que conduz ao insight
é o Satipatthana Sutta, o Discurso sobre os Fundamentos da Atenção Plena
(MN 10;
constando também no Digha Nikaya com uma seção mais ampla sobre as Quatro
Nobres Verdades que é encontrada no MN 141). O sutta detalha um sistema abrangente
denominado satipatthana projetado para treinar a mente a ver com
precisão microscópica a verdadeira natureza do corpo, sensações, estados
mentais e objetos mentais. Este sistema algumas vezes é tomado como o paradigma
da prática do “dry insight” – a contemplação direta dos fenômenos mentais e
corporais sem o anterior estabelecimento da concentração dos jhanas – e,
enquanto vários exercícios descritos no sutta podem também conduzir aos jhanas,
o despertar do insight é claramente a intenção do método.
Outros suttas
no MN descrevem abordagens para o desenvolvimento do insight que ou elaboram as
contemplações de satipatthana, ou chegam até elas a partir de distintos pontos
de partida. Assim o MN 118 mostra como a prática da atenção plena na
respiração realiza todos os quatro fundamentos da atenção plena, não só o
primeiro como mostrado no MN 10. Vários suttas - MN 28, MN 62, MN 140 – apresentam instruções mais detalhadas sobre
a contemplação dos elementos. Os MN 37, MN 74 e MN 140 contêm trechos esclarecedores sobre a
contemplação das sensações. Em alguns dos suttas o Buda emprega os cinco
agregados como a base para a contemplação de insight (MN 22, MN 109); em alguns, as seis bases dos sentidos (MN
137, MN
148, MN
149); em alguns, a
combinação de ambos (MN 147). O MN 112
apresenta trechos que tratam do insight baseado nos cinco agregados, nos
seis elementos e nas seis bases dos sentidos, como resultado do treinamento
gradual. O MN 52 e o MN 64 mostram que o insight também pode ser
realizado tendo os jhanas, as realizações imateriais e as moradas divinas como
objeto: o discípulo entra em qualquer um desses estados e contempla os seus
fatores constituintes como sujeitos às três características.
Várias
seqüências de estados meditativos mencionados no MN culminam numa realização
chamada a cessação da percepção e da sensação, (saññavedayitanirodha).
Embora este estado venha sempre em seguida à última realização imaterial, ele
não é, como se poderia supor, só um passo mais elevado na escala da
concentração. A rigor, a realização da cessação não pertence nem à
tranqüilidade e tampouco ao insight. É um estado alcançado pela combinação dos
poderes da tranqüilidade e do insight no qual todos os processos mentais são
suspensos temporariamente. Essa realização só pode ser alcançada por aqueles
que não retornam e pelos arahants que já obtiveram a maestria dos jhanas e dos
estados imateriais. Mais detalhes com respeito a esse estado são encontrados no
MN 43 e MN 44.
Os Quatro Planos de Libertação
A prática
do caminho Budista evolui para estágios distintos, um mundano, (lokiya),
ou estágio preparatório, e para o supramundano, (lokuttara), ou estágio
consumado. O caminho mundano é desenvolvido quando o discípulo adota o
treinamento gradual da virtude, concentração e sabedoria. E alcança o seu ápice
com a prática da meditação de insight, que aprofunda a experiência direta das
três características da existência. Quando as faculdades do praticante tiverem
alcançado um certo grau de maturidade, o caminho mundano produz o caminho
supramundano, assim chamado porque conduz direta e infalivelmente para fora, (uttara),
do mundo, (loka), que compreende os três planos de existência, com a
realização do “elemento imortal”, Nibbana.
O progresso
no caminho supramundano é marcado por quatro logros importantes, cada um dos
quais conduz o discípulo através de duas fases subordinadas chamadas de caminho, (magga), e seu fruto, (phala). A fase do caminho tem
a função especial de eliminar um número determinado de contaminações, os
impedimentos mentais que nos mantêm cativos no ciclo de renascimentos. Quando o
trabalho do caminho for completado, o discípulo alcança o seu fruto
correspondente, o grau de libertação que pode ser obtido através daquele
caminho em particular. A fórmula canônica de homenagem à Sangha se refere
indiretamente a esses quatro planos de libertação – cada um com a sua fase de
caminho e fruto –quando exalta a comunidade dos nobres discípulos do Abençoado
incluindo “os quatro pares de pessoas, os oito tipos de indivíduos” (MN
7.7). Esses quatro
pares são obtidos tomando, para cada estágio, aquele que entrou no caminho para
a realização do fruto e aquele que já realizou o fruto.
Nos suttas
o Buda destaca as características de cada estágio supramundano de duas formas:
mencionando as contaminações que são abandonadas em cada estágio e as
conseqüências que essa realização traz ao processo de renascimento, (veja por
exemplo MN
6.11-13, 19; MN
22.42-45, etc.).
Ele trata da eliminação das contaminações classificando-as num grupo de dez
chamado os dez grilhões, (samyojana). O discípulo entra no primeiro
caminho supramundano quer seja como discípulo do Dhamma, (dhammanusarin),
ou como discípulo pela fé, (saddhanusarin); o primeiro é aquele em quem
a sabedoria é a faculdade dominante, o último é aquele que progride através do
ímpeto da fé. Este caminho, o caminho do entrar na correnteza, tem a tarefa de
erradicar os três grilhões mais grosseiros: a idéia da existência de um eu, isto é,
a idéia da existência de um eu dentre os cinco agregados; a dúvida em relação
ao Buda e aos seus ensinamentos; e o apego a preceitos e rituais, quer sejam
ritualísticos ou ascéticos, na crença de que estes resultam em purificação.
Quando o discípulo alcança o fruto deste caminho ele se torna um dos que entrou
na correnteza, (sotapanna), que entrou na “correnteza” do Nobre Caminho
Óctuplo que irá conduzí-lo irreversivelmente a Nibbana. O sotapanna está
destinado a alcançar a libertação final em até no máximo sete renascimentos, os
quais ocorrerão no plano humano ou nos paraísos.
O segundo
caminho supramundano enfraquece as três raízes da cobiça, raiva e delusão, sem
no entanto erradicá-las por completo. Ao realizar o fruto deste caminho o discípulo
se torna aquele que retorna uma vez, (sakadagamin), que irá retornar a
este mundo, (isto é, o reino da esfera sensual), só mais uma vez para então dar
um fim ao sofrimento. O terceiro caminho erradica os dois grilhões do desejo
sensual e da má vontade; ele resulta no fruto daquele que não retorna, (anagamin),
que irá renascer através do nascimento espontâneo num dos reinos celestiais
chamados de Moradas Puras e lá realizar o parinibbana sem nunca mais retornar
daquele mundo.
O quarto e
último caminho supramundano é o caminho do arahant. Este caminho erradica os
cinco últimos grilhões: desejo pelo renascimento no reino da matéria sutil,
desejo pelo renascimento no reino imaterial, presunção, inquietação e
ignorância. Ao realizar o fruto deste caminho o praticante se torna um arahant,
completamente libertado, que “aqui e agora entra e permanece na libertação da
mente e libertação através da sabedoria que são imaculadas com a destruição das
impurezas.” O arahant será discutido na seção seguinte.
Os
comentários (MA - Majjhima Nikaya Atthakatha e MT - Majjhima Nikaya Tika, que freqüentemente aparecem nas notas de
cada sutta) desenvolvem uma interpretação dos caminhos e frutos baseada na
sistematização dos ensinamentos do Buda conhecida como Abhidhamma. Recorrendo à
descrição do Abhidhamma que descreve a mente como uma seqüência de atos de
consciência momentâneos discretos, chamados cittas, os comentários
entendem que cada caminho supramundano é um momento de consciência único que
surge no auge de uma série de insights do Dhamma. Cada um dos quatro cittas
momentâneos elimina o seu respectivo conjunto de contaminações para ser seguido
de imediato pelo seu fruto, que consiste de uma seqüência de cittas
momentâneos que desfrutam do prazer de Nibbana alcançado através da realização do caminho.
Embora essa concepção dos caminhos e frutos seja regularmente empregada pelos
comentadores como uma ferramenta hermenêutica para a interpretação dos suttas,
ela não está explicitamente formulada desta maneira nos Nikayas e em algumas
ocasiões até parece haver uma certa tensão entre os comentários e os suttas
(por exemplo, no trecho do MN 142.5 que descreve as oito pessoas no caminho como
recipientes distintos de dádivas).
A figura
ideal no MN, assim como no Cânone em Pali como um todo, é o arahant. A palavra
“arahant” em si deriva de uma raiz que significa “ser digno.” Essa palavra
parece ter tido uso pré-Budista mas foi assumida pelo Buda para designar o
indivíduo que alcançou o fruto final do caminho.
Os suttas
adotam uma descrição padrão do arahant que resume as suas realizações: ele é
“aquele que destruiu as impurezas, que viveu a vida santa, fez o que devia ser
feito, depôs o fardo, alcançou o verdadeiro objetivo, destruiu os grilhões da
existência e está completamente libertado através do conhecimento supremo” (MN
1.51, etc.).
Descrições alternativas enfatizam aspectos distintos da realização do arahant.
Assim, um sutta oferece uma série de epítetos metafóricos que o próprio Buda
interpreta como a representação do abandono pelo arahant da ignorância, desejo
e presunção, a sua erradicação dos grilhões e a sua libertação do ciclo de
renascimentos (MN 22.30-35). Em outros discursos o Buda atribui uma série
distinta de epítetos ao arahant – vários usados entre brâmanes – derivando
esses termos através do uso imaginativo da etimologia de todos os estados
prejudiciais eliminados pelo arahant (MN 39.22-29).
O MN
registra diferenças de tipos entre os arahants, que são atribuídas à
diversidade nas suas faculdades. No MN 70 o Buda apresenta uma distinção básica entre
aqueles arahants que estão “libertados de ambos os modos” e aqueles que estão
“libertados através da sabedoria”: sendo que os primeiros possuem as realizações
imateriais e os
últimos não. Os arahants também são distinguidos entre aqueles que possuem,
além do conhecimento da destruição das impurezas necessário a todos os
arahants, todos os três conhecimentos verdadeiros e todos os seis conhecimentos
diretos. No MN 108 o venerável Ananda indica que aqueles arahants
que possuíssem os seis conhecimentos diretos seria outorgada veneração especial
e autoridade na Sangha depois do falecimento do Buda.
Por baixo
dessas diferenças incidentais, no entanto, todo os arahants compartem
igualmente as mesmas realizações essenciais – a destruição de todas as
contaminações e a libertação de futuros renascimentos. Eles possuem três
qualidade insuperáveis – visão insuperável, a prática insuperável do caminho e
a libertação insuperável (MN 35.26). Eles estão dotados com os dez fatores
daquele que está além do treinamento – os oito fatores do Nobre Caminho Óctuplo
aumentado pelo conhecimento correto e libertação correta (MN 65.34, MN 78.14). Eles possuem os quatro fundamentos – os
fundamentos da sabedoria, da verdade, da renúncia e da paz (MN
140.11). E com a
erradicação da cobiça, raiva e delusão, todos os arahants têm acesso a uma
realização meditativa única denominada a fruição da realização do estado de
arahant, descrita como a libertação inabalável da mente, a libertação
imensurável da mente, a libertação no vazio, a libertação da mente no nada e a
libertação da mente sem sinais (MN 43.35-37).
De acordo
com os ensinamentos do Buda, todos os seres, exceto os arahants, estão sujeitos
à “renovação da existência no futuro”, (punabbhava), isto é, ao
renascimento. O renascimento na concepção Budista não é a transmigração de um
eu ou alma, mas a continuidade de um processo, um fluxo de devir, no qual vidas
sucessivas estão conectadas juntas através da transmissão causal de
influências, ao invés de uma identidade substancial. O padrão causal básico
subjacente a esse processo é aquele definido pela origem dependente (veja acima), que também demonstra como é
possível o renascimento desprovido de um eu que reencarna.
O processo
de renascimento, o Buda ensina, exibe uma regularidade definida essencialmente
ética no seu caráter. Esse caráter ético é estabelecido pelo dinamismo
fundamental que determina os estados nos quais os seres renascem e as
circunstâncias que eles encontram ao longo das suas vidas. Esse dinamismo é
kamma, a ação volitiva através do corpo, linguagem e mente. Aqueles seres que
praticam ações ruins – ações motivadas pelas três raízes prejudiciais da
cobiça, raiva e delusão – geram kamma prejudicial que os conduzirá ao
renascimento nos estados de existência inferiores e se o kamma amadurecer no
mundo humano, trará dor e infortúnio. Aqueles seres que praticam boas ações –
ações motivadas pelas três raízes benéficas da não cobiça, não raiva e não
delusão – geram kamma benéfico que os conduzirá aos estados de existência
superiores e que amadurecem no plano humano como prazer e boa fortuna. Como as
ações que uma pessoa realiza ao longo de uma única vida podem ser extremamente
variadas, o tipo de renascimento que virá mais adiante pode ser bastante
imprevisível, como mostra o Buda no MN 136. Mas apesar dessa variabilidade empírica, há
uma lei invariável que governa os resultados produzidos, sendo que as
correlações básicas são delineadas pelo Buda no MN 57 e em mais detalhes no MN 135.
Em vários
suttas do MN o Buda se refere aos vários planos de existência nos quais pode
ocorrer o renascimento e também dá alguma indicação dos tipos de kamma que
conduzem a esses planos. Essa tipografia cosmológica não é, sob o ponto de
vista Budista, um produto da conjectura ou fantasia mas um tema que o Buda
conhecia diretamente através dos “poderes do conhecimento de um Tathagata” (MN
12.36); até certo
ponto o processo também pode ser verificado por aqueles que obtêm o olho divino
(ex: MN 39.20).
Pode-se dar aqui uma breve visão geral dos planos de renascimento reconhecidos
na cosmologia Budista e os seus antecedentes cármicos, como apresentado na
tradição Theravada.
O cosmo
Budista está dividido em três amplos reinos – o reino da esfera sensual, o
reino da matéria sutil e o reino imaterial. Cada um destes compreende um
conjunto de planos subsidiários, totalizando trinta e um planos de existência.
O reino da esfera sensual, assim chamado porque nele predomina o desejo
sensual, consiste de onze planos divididos em dois grupos, as destinações ruins
e as destinações boas. As destinações ruins ou “estados de privação”, (apaya),
são quatro em número: os infernos, que são estados de intenso tormento como
descrito no MN 129 e MN 130; o reino animal; o mundo dos fantasmas, (peta),
seres afligidos pela sede e fome incessantes; e o mundo dos titãs, (asuras),
seres envolvidos em constante combate (não mencionados como um plano separado
no MN). Os tipos de kamma que conduzem ao renascimento nesses planos são
classificados em um conjunto de dez - três com o corpo, quatro com a linguagem
e três com a mente. Estes estão enumerados resumidamente no MN 9.4 e explicados no MN 41. Graduações na gravidade das
intenções ruins responsáveis por esses atos explicam as diferenças específicas
no modo de renascimento que resulta dessas ações.
As
destinações boas no reino da esfera sensual são o mundo humano e os planos
paradisíacos. Estes últimos são seis em número: os devas sob os Quatro Grandes
Reis; os devas do Trinta e Três, (tavatimsa), que são governados por
Sakka, uma metamorfose Budista de Indra, retratado como um devoto discípulo do
Buda, mas dado à negligência (MN 37); os devas de Yama; os devas do paraíso de
Tusita, a morada do Bodisatva antes do seu último nascimento (MN
123); os devas que
se deliciam com a criação; e os devas que exercem poder sobre a criação dos
outros. Este último dizem ser a morada de Mara, a Tentação no Budismo, que além
de ser um símbolo para o Desejo e a Morte, é também considerado uma divindade
poderosa com intenções maldosas que deseja ardentemente evitar que os seres
escapem da rede do samsara. A causa cármica para o renascimento nas destinações
boas do reino da esfera sensual é a prática dos dez tipos de ações benéficas,
definidas no MN 9.6 e no MN 41.
No reino da
matéria sutil os tipos de matéria mais grosseiros estão ausentes e o prazer,
poder, luminosidade e vitalidade dos seus habitantes são muito superiores aos
dos seres do reino da esfera sensual. O reino da matéria sutil consiste de
dezesseis planos que são a contrapartida objetiva dos quatro jhanas. A
realização do primeiro jhana conduz ao renascimento como membro do cortejo
de Brahma, ministro de Brahma ou Maha Brahma, dependendo do grau de
desenvolvimento desse jhana, se inferior, médio ou superior. O Brahma Baka (MN 49) e o Brahma Sahampati (MN 26, MN 67) parecem ser residentes do terceiro nível. Os
suttas mencionam especialmente as moradas divinas como o caminho para os mundos de Brahma (MN 99.24-27). A realização do segundo jhana nos mesmos
três graus conduz respectivamente ao renascimento entre os devas da Radiância
Limitada, da Radiância Imensurável e dos que Emanam Radiância; o terceiro jhana
ao renascimento entre os devas da Glória Limitada, da Glória Imensurável e da
Glória Refulgente. O quarto jhana em geral conduz ao renascimento entre os
devas do Grande Fruto, mas se ele for desenvolvido com o desejo de alcançar um
modo de existência insensitivo, ele conduzirá ao renascimento entre os seres
não perceptivos, nos quais a consciência é temporariamente suspensa. Por outro
lado, o reino da matéria sutil contém cinco planos especiais que são
exclusivamente para o renascimento daqueles que não retornam. Eles são as
Moradas Puras - Aviha, Atappa, Sudassa, Sudassi e Akanittha. Em cada um dos
planos do reino da matéria sutil, dizem que o tempo de vida tem uma duração
enorme e que aumenta de modo significativo em cada plano superior.
O terceiro
reino da existência é o reino imaterial, no qual a matéria se tornou
inexistente e existem apenas processos mentais. Este reino consiste de quatro
planos, que são as contrapartidas objetivas das quatro realizações meditativas
imateriais, das quais estes resultam e com as quais compartem os nomes: as
bases do espaço infinito, consciência infinita, nada, nem percepção, nem não
percepção. Os tempos de vida atribuídos a cada um respectivamente são: 20.000;
40.000; 60.000; e 84.000 éons.
Na
cosmologia Budista a existência em cada reino é necessariamente impermanente em
virtude do resultado de kamma ter um potencial finito. Os seres renascem de
acordo com as suas ações, experimentam os bons ou maus resultados, e depois que
o kamma generativo tiver gasto a sua força, os seres falecem e renascem noutro
lugar determinado por algum outro kamma que encontrou a oportunidade favorável
para amadurecer. Por conseguinte, os tormentos do inferno bem como os prazeres
do paraíso estão sujeitos a ter um fim, não importando o quanto eles possam
durar. Por essa razão o Buda não localiza o objetivo final dos seus
ensinamentos em nenhum lugar dentro do mundo condicionado. Ele guia aqueles
cujas faculdades espirituais ainda são imaturas a aspirar pelo renascimento nos
paraísos celestiais e ensina os tipos de comportamento que conduzem à
satisfação das suas aspirações (MN 41, MN 120). Mas aqueles cujas faculdades espirituais
estão maduras, capazes de compreender a natureza insatisfatória de tudo que é
condicionado, são incitados a aplicar esforço diligente para dar um fim à
perambulação no samsara e realizar Nibbana, que transcende todos os planos de
existência.
O Buda e os seus Contemporâneos
A região da
Índia na qual o Buda viveu e ensinou no século V antes da era Cristã estava
cheia de uma abundante variedade de crenças religiosas e filosóficas propagadas
por mestres igualmente variados nos seus estilos de vida. A principal divisão
era entre os brâmanes e os ascetas não brâmanes, os samanas ou “contemplativos.”
Os brâmanes eram os sacerdotes hereditários na Índia, os guardiões da ortodoxia
antiga. Eles aceitavam a autoridade dos Vedas, que eles estudavam, recitavam em
rituais inumeráveis, sacrifícios e cerimônias e aos quais recorriam como fonte
para as suas especulações filosóficas. Por conseguinte, eles são caracterizados
nos suttas como tradicionalistas, (anussavika), que ensinam as suas
doutrinas com base na tradição oral (MN 100.7). O Cânone em Pali de modo geral os descreve
vivendo uma vida confortável e equilibrada, casados e com filhos e em alguns
casos desfrutando de favores reais. Os mais estudados são apresentados na
companhia de estudantes – todos obrigatoriamente nascidos brâmanes – aos quais
eles ensinavam os Vedas.
Os samanas
por outro lado, não aceitavam a autoridade dos Vedas e por isso, sob a
perspectiva dos brâmanes, eles se situavam na categoria dos heterodoxos. Em
geral eles eram celibatários, viviam da mendicância e adquiriam o seu status
através da renúncia voluntária e não através do nascimento. Os samanas
perambulavam pelo interior da Índia algumas vezes em grupos, algumas vezes
solitários, pregando as suas doutrinas para a população, debatendo com outros
contemplativos, dedicando-se às suas atividades espirituais que com freqüência
envolviam rigorosas austeridades (veja o MN 51.8). Alguns mestres do grupo dos samanas
ensinavam exclusivamente fundamentados no raciocínio e na especulação, enquanto
que outros ensinavam com base nas suas próprias experiências na meditação. O
próprio Buda se encaixava entre estes últimos, como aquele que ensinava o
Dhamma que ele compreendeu diretamente por si mesmo (MN
100.7).
Os
encontros do Buda com os brâmanes em geral eram amigáveis, as conversas
caracterizadas pela cortesia e respeito mútuo. Muitos suttas no MN tratam da
pretensa superioridade dos brâmanes em relação às demais castas sociais. Na
época do Buda o sistema de castas estava apenas começando a tomar forma no
nordeste da Índia e ainda não havia gerado as incontáveis subdivisões e regras
rígidas que acabariam por aprisionar a sociedade Hindu ao longo dos séculos. A
sociedade estava dividida em quatro classes sociais amplas: os brâmanes, que
desempenhavam as funções sacerdotais; os khattiyas, nobres, guerreiros e
administradores; os vessas, comerciantes e agricultores; e os suddas,
servos e serviçais. Nos suttas em Pali parece que os brâmanes, apesar de
investidos de autoridade nas questões religiosas, ainda não haviam ascendido à
posição de hegemonia incontestável que eles iriam adquirir depois da
promulgação das Leis de Manu. Eles já tinham, no entanto, embarcado na busca
pelo domínio e faziam isso através da propagação da tese de que a casta dos
brâmanes era superior, a casta mais bela, os descendentes divinamente
abençoados de Brahma e que somente eles seriam capazes de se purificarem. A
preocupação de que essa afirmação dos brâmanes poderia na realidade ser verdadeira
parece ter se espalhado entre a realeza, que deve ter ficado atemorizada pela
ameaça que eles representavam ao seu poder. (veja o MN
84.4, MN
90.9-10).
Contrário a
certas noções populares, o Buda não repudiou explicitamente a divisão de
classes da sociedade Hindu ou pediu a abolição desse sistema social. Dentro da
Sangha, no entanto, todas as distinções de casta eram anuladas no momento da
ordenação. Desse modo, as pessoas de qualquer uma das quatro castas, que
seguiam a vida santa sob o Buda, renunciavam aos títulos e prerrogativas da
classe à qual pertenciam para se tornarem simplesmente os discípulos do filho
dos Sakyas (veja Ud 5:5/55). Sempre que o Buda ou os seus discípulos eram
confrontados com as reivindicações de superioridade dos brâmanes, eles
argumentavam vigorosamente contra elas, afirmando que todas essas afirmações
careciam de fundamento. A purificação, eles sustentavam, é o resultado da
conduta e não do nascimento e por esse motivo, estava acessível a toda as
pessoas das quatro castas (MN 40.13-14, MN 84, MN
90.12, MN 93). O Buda até despiu o termo
“brâmane” da sua conotação hereditária e, resgatando a sua conotação original
de homem santo, ele definiu o arahant como o verdadeiro brâmane (MN 98). Aqueles dentre os brâmanes, que
ainda não estavam obstaculizados pelo preconceito de classes, respondiam com
apreço aos ensinamentos do Buda. Alguns dos mais eminentes brâmanes na época,
nos quais ainda ardia o antigo anseio dos Vedas pela luz, conhecimento e verdade,
reconheceram no Buda o Perfeitamente Iluminado por quem eles tanto esperaram e
se declararam seus discípulos (veja em particular o MN
91.34). Muitos até
mesmo renunciaram aos seus privilégios de classe e com os seus acompanhantes
entraram para a Sangha (MN 7.22, MN 92.15-24).
Os samanas
eram um grupo muito mais diversificado que, sem ter uma autoridade espiritual
comum, promulgavam uma pletora de doutrinas filosóficas que iam desde o
diabólico até o super divino. O Cânone em Pali com freqüência menciona seis
mestres em particular como contemporâneos do Buda, e visto que cada um deles é
descrito como “líder de uma ordem ... considerado como um santo por muitos” (MN
77.6), eles deviam
exercer muita influência na época. O MN menciona ambos, o conjunto de seis e,
separadamente, as suas doutrinas individuais; no entanto, o MN não correlaciona
os nomes com as doutrinas. As conexões entre os nomes e as doutrinas são feitas
no Samaññaphala Sutta do Digha Nikaya.
Purana
Kassapa, que sempre aparece primeiro na lista, ensinava a doutrina da inação, (akiriyavada),
que negava a validade das distinções morais (MN
60.13, MN
76.10). Makkhali
Gosala era o líder de uma seita conhecida como Ajivakas, (ou Ajivikas), que sobreviveu
na Índia até a época medieval. Ele ensinava a doutrina do fatalismo e negava a
condicionalidade, (ahetukavada), e afirmava que todo o processo cósmico
está controlado de modo rígido por um princípio chamado fatalidade ou destino,
(niyati); os seres não possuem controle volitivo sobre as suas ações e
se movem desamparadamente aprisionados pelo destino (MN
60.21, MN
76.13). Ajita
Kesakambalin era um niilista moral, (natthikavada) que propunha uma
filosofia materialista que rejeitava a existência de uma sobrevida e a
retribuição de kamma (MN 60.5, MN 76.7); a sua doutrina é freqüentemente citada pelo
Buda entre os tipos de ações prejudiciais como o paradigma do entendimento
incorreto. Pakudha Kaccayana advogava o atomismo e fundamentado nisso ele
repudiava os princípios básicos de virtude (MN
76.16). Sanjaya
Belatthiputta, um cético, se recusava a assumir uma posição em relação aos
temas morais e filosóficos cruciais da época, provavelmente afirmando que esse
conhecimento estava além da nossa capacidade de verificação (MN
76.30). O sexto
mestre, Nigantha Nataputta, é identificado como Mahavira, o histórico
progenitor do Jainismo. Ele ensinava que há uma pluralidade de almas mônadas
aprisionadas na matéria por laços do kamma passado e que a alma deve ser
libertada através do esgotamento dos laços cármicos por meio da prática severa
da auto-mortificação.
Enquanto os
suttas em Pali em geral são corteses porém críticos em relação aos brâmanes,
estes, por sua vez são vigorosos na sua rejeição às doutrinas rivais dos
samanas. Num sutta (MN 60) o Buda afirma que a firme adoção de qualquer
uma das três primeiras doutrinas (e conseqüentemente a quarta) resulta numa
cadeia de estados prejudiciais gerando kamma ruim forte o suficiente para
trazer um renascimento nos planos mais inferiores. Do mesmo modo, o venerável
Ananda descreve essas idéias como as quatro “negações da vida santa” (MN 76). O ceticismo de Sanjaya, apesar de
não ser considerado tão pernicioso, é interpretado como um sinal da tolice e
confusão do seu proponente; ele é descrito como “contorção de enguias”, (amaravikkhepa),
devido às suas evasivas e classificado entre os tipos de vida santa sem
consolação (MN 76.30-31). A doutrina Jainista, embora compartindo
algumas similaridades com os ensinamentos do Buda era considerada
suficientemente equivocada nas suas premissas básicas para ser refutada, e o
Buda assim o fez em várias ocasiões (MN 14, MN 56, MN 101).
O repúdio a
essas idéias errôneas era visto, sob a perspectiva Budista, como uma medida
necessária, não só para soar um claro alerta contra doutrinas que eram
prejudiciais sob o ponto de vista espiritual, mas também para eliminar os
obstáculos contra a aceitação do entendimento correto, que como precursor do
caminho Budista (MN 117.4) é um pré-requisito para o progresso no
caminho para a libertação final.
Notas:
[1] Esta opinião do autor toca num tema controverso dentro do Theravada e
sobre o qual não há um consenso. Para uma opinião contrária veja o ensaio
escrito por Thanissaro Bhikkhu – Jhanas, Concentração e Sabedoria.
Revisado: Revisado: 14 Dezembro 2011
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