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ABC do Budismo

Por

Michael Beisert

Respostas a algumas das dúvidas mais freqüentes sobre o Budismo

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Índice:

O que é o Budismo?

No que os Budistas (Theravada) acreditam?

Os Budistas Acreditam em Deus?

O Budismo e a Reencarnação

O Budismo tem uma visão negativa da vida? O Budismo é niilista?

O Budismo e a homossexualidade

No Budismo todo desejo é ruim?

Porque devo meditar?

Posso confiar nos Suttas?

 



O que é o Budismo?

1. O que é o Budismo?

A palavra Budismo é derivada da palavra ‘bodhi’ que significa ‘despertar’, portanto o Budismo é a filosofia do despertar ou iluminação. Essa filosofia teve origem na experiência de um homem chamado Siddhata Gotama, conhecido como o Buda, que realizou a iluminação por si próprio com 36 anos de idade. O Budismo existe faz 2.500 anos e tem cerca de 300 milhões de adeptos no mundo todo. Até meados do séc. XIX o Budismo era um filosofia com predominância na Ásia mas desde então se expandiu para todo o mundo.

2. Então o Budismo é apenas uma filosofia?

A palavra filosofia provém de duas palavras, ‘filo’ que significa ‘amor’ e ‘sofia’ que significa ‘sabedoria’. Então filosofia é o amor pela sabedoria ou amor e sabedoria, ambos significados descrevem o Budismo com perfeição. O Budismo ensina que devemos tentar desenvolver todo o potencial da nossa capacidade mental de modo que possamos alcançar o claro entendimento da realidade. O Budismo também prega o desenvolvimento do amor e bondade de modo que possamos expressar verdadeira amizade por todos os seres.

3. Quem foi o Buda?

No ano 560 antes de Cristo um bebê nasceu numa família real no norte da Índia. Ele cresceu rodeado pela riqueza e pelo luxo mas acabou se dando conta de que o conforto e a segurança mundanas não asseguram a felicidade. Profundamente comovido pelo sofrimento que viu ao seu redor, ele decidiu tentar encontrar o caminho para a felicidade humana. Com 29 anos de idade ele abandonou a vida de príncipe e saiu em busca da solução para os problemas humanos. Ele estudou e praticou com mestres distintos mas nenhum deles na verdade sabia a causa do sofrimento humano e como superá-lo. Por fim, depois de seis anos de estudos e experimentos com todos os tipos de práticas ascéticas e meditativas, ele realizou o fim da ignorância e compreendeu a origem e a cessação do sofrimento. A partir dessa data ele passou a ser o Buda, o Iluminado. Ele viveu por mais 45 anos durante os quais viajou pelo norte da Índia e ensinou a todos que quisessem ouvir aquilo que ele havia descoberto. A sua paciência e compaixão eram legendárias e milhares de pessoas se tornaram seus discípulos. Com oitenta anos ele faleceu.

4. Não foi um ato irresponsável do Buda abandonar a família?

Não deve ter sido uma decisão fácil para Siddhata Gotama abandonar a família em busca de algo completamente desconhecido. Durante muito tempo ele deve ter sofrido com a angústia e hesitação. Ele tinha duas alternativas, permanecer com a família ou dedicar-se ao mundo. No final a sua grande compaixão prevaleceu e fez com que ele se entregasse ao mundo. E desde a sua iluminação até os dias de hoje todo o mundo ainda se beneficia com o seu sacrifício. Essa não foi uma decisão irresponsável mas talvez o supremo sacrifício que alguém pode fazer.

5. O Buda está morto faz muito tempo, como ele pode nos ajudar?

Faraday, descobriu a eletricidade e já morreu faz muito tempo, mas a sua descoberta ainda nos beneficia hoje. Louis Pasteur descobriu a cura para muitas doenças e também já morreu faz muito tempo, mas as suas descobertas médicas ainda salvam vidas. Leonardo da Vinci, que criou obras de arte, também está morto, mas aquilo que ele criou ainda é capaz de causar elação e alegria. Homens nobres e heróis podem ter morrido faz séculos mas ainda podemos obter inspiração ao ler sobre as suas realizações. De fato, o Buda está morto, mas 2.500 anos depois, os seus ensinamentos ainda ajudam as pessoas, o seu exemplo ainda inspira as pessoas, as suas palavras ainda mudam vidas. Apenas um Buda é capaz de ter tal poder séculos depois da sua morte.

6. O Buda era um Deus?

Não, o Buda não era um Deus. Ele nunca fez esse tipo de afirmação, nem de que ele era o filho de algum Deus ou mesmo o mensageiro de algum Deus. Ele era um ser humano comum que aperfeiçoou a si mesmo e ensinou que se seguirmos o seu exemplo também poderemos nos aperfeiçoar.

7. Se o Buda não é um Deus, então porque as pessoas o veneram?

Há diferentes tipos de veneração. Quando as pessoas veneram um Deus, elas o honram e glorificam, fazem oferendas e pedem favores, acreditando que o Deus irá ouvir os seus louvores, receber as oferendas e atender as orações.

O outro tipo de veneração é quando demonstramos respeito por alguém ou alguma coisa que admiramos. Quando um professor entra na sala de aula ficamos em pé, quando somos apresentados a algum dignitário o cumprimentamos, quando ouvimos o hino nacional assumimos um postura respeitosa. Esses são todos gestos de respeito e veneração e indicam a nossa admiração por pessoas ou coisas. Esse é o tipo de veneração praticado pelos Budistas. Uma estátua do Buda com as mãos gentilmente repousadas sobre o colo e com um sorriso compassivo nos lábios nos recorda do esforço para desenvolver a paz e o amor dentro de nós mesmos. O perfume do incenso nos recorda da penetrante influência da virtude, as velas nos recordam da luz do conhecimento e as flores que, em breve irão murchar e morrer, nos recordam da impermanência. Quando nos curvamos expressamos nossa gratidão ao Buda por tudo aquilo que nos foi proporcionado pelos seus ensinamentos. Essa é a natureza da veneração Budista.

8. Mas eu ouvi as pessoas dizerem que os Budistas veneram ídolos.

Esse tipo de afirmação é um mal-entendido. A definição do dicionário para a palavra ídolo é “estátua ou simples objeto cultuado como deus ou deusa”. Como vimos, os Budistas não acreditam que o Buda era um Deus, então como poderiam acreditar que um pedaço de madeira ou pedra possa ser um Deus? Todas as religiões empregam símbolos para expressar vários conceitos. No Taoísmo, o ying-yang é usado para simbolizar a harmonia entre os opostos. No Sikhismo, a espada é usada para simbolizar a busca espiritual. No Cristianismo, o peixe é usado para simbolizar a presença de Cristo e a cruz é usada para simbolizar o seu sacrifício. No Budismo, a estátua do Buda é usada para simbolizar a perfeição humana. A estátua do Buda também serve para nos recordar da dimensão humana dos ensinamentos do Buda, e que precisamos olhar para o nosso íntimo e não para o exterior para encontrarmos a perfeição e a sabedoria. Dizer que os Budistas veneram ídolos é incorreto.

9. Porque as pessoas fazem todo o tipo de coisas estranhas nos templos Budistas?

Muitas coisas podem parecer estranhas quando não as compreendemos. Ao invés de descartar essas coisas como esquisitas, deveríamos tentar entender o seu significado. No entanto, é verdade que algumas das práticas Budistas têm as suas origens nas superstições e mal-entendidos populares ao invés dos ensinamentos do Buda. E esse tipo de mal-entendido não é encontrado apenas no Budismo, mas aparece em todas as religiões de tempos em tempos. O Buda ensinou de forma clara e detalhada e se alguém é incapaz de compreender aquilo que foi ensinado, o Buda não pode ser censurado por isso. Há um dito:

Se alguém enfermo não busca tratamento mesmo na presença de um médico, isso não é culpa do médico.

Da mesma forma, se alguém está oprimido e atormentado pela enfermidade das contaminações mentais, mas não busca a ajuda do Buda, isso não é culpa do Buda.

Tampouco deve o Budismo, ou qualquer religião, ser julgado por aqueles que não o praticam da forma apropriada. Se alguém quiser conhecer os verdadeiros ensinamentos Budistas, deve ler as palavras do Buda ou buscar os ensinamentos através daqueles que os entendem da forma correta.

10. Porque há tantos tipos distintos de Budismo?

Há muitos diferentes tipos de açúcar: mascavo, branco, granulado, em pedra, xarope e cristalizado, mas todos são açúcar e todos têm o mesmo sabor doce. Diferentes formas são produzidas para atender as diferentes necessidades de uso. Com o Budismo ocorre o mesmo. Há o Theravada, Zen, Terra Pura e Vajrayana, mas todos são Budismo e todos têm o mesmo sabor – o sabor da liberdade. O Budismo evoluiu para formatos distintos para ser relevante para as distintas culturas nas quais ele se estabeleceu. O Budismo foi re-interpretado ao longo dos séculos para continuar relevante para as novas gerações. Externamente, os distintos tipos de Budismo podem parecer muito diferentes, mas no núcleo de cada um encontram-se as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo.

11. O Budismo tem base na ciência?

Antes de responder a essa questão seria melhor primeiro definir a palavra “ciência”. De acordo com o dicionário, ciência é o “conjunto de conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos, historicamente acumulados, dotados de universalidade e objetividade que permitem sua transmissão, e estruturados com métodos, teorias e linguagens próprias, que visam compreender e possibilitam orientar a natureza e as atividades humanas.”

Há alguns ensinamentos Budistas que não se encaixam nessa definição mas um dos ensinamentos mais importantes no Budismo, as quatro nobres verdades, com certeza se encaixa. O sofrimento, que é a primeira nobre verdade, é uma experiência universal e objetiva que pode ser definida, experimentada e medida. A segunda nobre verdade afirma que o sofrimento tem uma causa natural, que é o desejo pelo prazer dos sentidos, que de modo semelhante é uma experiência universal e objetiva que pode ser definida, experimentada e medida. O Budismo não tenta explicar o sofrimento com conceitos ou mitos metafísicos. O sofrimento tem fim de acordo com a terceira nobre verdade e não com a ajuda de um ser supremo, através da fé ou de orações, mas simplesmente removendo a sua causa: isso é axiomático. A quarta nobre verdade, o caminho para o fim do sofrimento, uma vez mais, não tem nada que ver com a metafísica mas depende da adoção de certos tipos de comportamento. E uma vez mais, o comportamento é algo que está sujeito a ser testado. O Budismo, tal qual a ciência, prescinde da idéia de um ser supremo e explica as origens e movimentos do universo com base em leis da natureza. Tudo isso com certeza exibe um espírito científico. Por outro lado, o conselho do Buda de que não devemos aceitar as coisas cegamente, mas ao invés disso, questionar, examinar e investigar tomando por base a nossa própria experiência pessoal, tem também uma forte conotação científica. O Buda disse:

“Agora Kalamas, não se deixem levar por relatos, por lendas, pelas tradições, pelas escrituras, pela conjectura lógica, pela inferência, por analogia, pela concordância obtida através de ponderações, por probabilidades ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’ Quando vocês sabem por vocês mesmos que, ‘Essas qualidades são hábeis; essas qualidades são isentas de culpa; essas qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao bem-estar e à felicidade” - então vocês devem penetrar e permanecer nelas.” (AN III.65)

Podemos então dizer que embora o Budismo não seja completamente científico, com certeza ele tem uma forte conotação científica e certamente é a mais científica das religiões. É significativo que Albert Einstein, um dos maiores cientistas do século XX, tenha dito sobre o Budismo:

“A religião do futuro será uma religião cósmica. Deve transcender um Deus pessoal e evitar os dogmas e as teologias. Abrangendo ambos, o natural e o espiritual, ela deve estar baseada num senso religioso que surja da experiência de todas as coisas, naturais e espirituais, e uma unidade que tenha significância. O Budismo preenche essa descrição. Se houver alguma religião que esteja à altura das necessidades científicas modernas, essa religião é o Budismo.”

Nota: Estas perguntas e respostas foram traduzidas do livro “Good Question, Good Answer” escrito pelo Ven. Shravasti Dhammika.




No que os Budistas (Theravada) acreditam?


Tomando como referência os suttas em pali dos nikayas podemos dizer que os Budistas acreditam no seguinte, procurando expressá-lo da forma mais resumida e compacta (se houver dúvidas - investigue, pergunte):

O Buda de fato existiu, era uma pessoa como todos nós exceto por uma série de qualidades que fizeram dele uma pessoa extraordinária.

A mente vem primeiro, a mente determina a nossa qualidade de vida.

A vida nos oferece muitas alegrias, prazeres e felicidade.

Na mesma medida, a vida também nos oferece muitas tristezas, dores e sofrimento.

A generosidade, compaixão, benevolência, boa vontade, diligência, atenção, são qualidades benéficas que devem ser cultivadas.

A cobiça, avareza, crueldade, má-vontade, raiva, negligência, são qualidades prejudiciais que devem ser evitadas.

O renascimento ocorre. Esta não é a única vida, nem será a última. O ciclo de renascimentos é chamado samsara.

O renascimento pode ocorrer em vários tipos de mundos, incluindo seres humanos, animais, inferno e divindades.

Todo renascimento é temporário, não existe nenhum mundo em que o renascimento seja permanente.

Karma é ação intencional. Uma ação sem intenção não é karma.

Todo karma, ou ação intencional, produz frutos, ou vipaka. Os frutos podem ser colhidos de imediato, mais tarde nesta vida, ou em alguma outra vida.

Os frutos de karma, ou vipaka, em grande parte determinam as nossas experiências de vida, as sensações que marcam essas experiências.

Karma também determina o renascimento: em qual mundo e em quais condições ocorrerá o renascimento.

O núcleo dos ensinamentos do Buda são as Quatro Nobres Verdades que tradicionalmente são formuladas como: (1) o sofrimento, (2) a origem do sofrimento, (3) a cessação do sofrimento e (4) o caminho que conduz à cessação do sofrimento. Alternativamente as Quatro Nobres Verdades podem ser formuladas como: (1) a verdadeira felicidade existe, (2) o seu oposto - a infelicidade, (3) os impedimentos para a verdadeira felicidade, e (4) o caminho para encontrar a verdadeira felicidade.

Não há nada que seja permanente. Todos fenômenos mentais e materiais são impermanentes, incertos, instáveis.

O surgimento e desaparecimento dos fenômenos ocorre devido a condições. Por exemplo, o envelhecimento e a morte só ocorrem se há nascimento. Portanto o nascimento é uma condição para o envelhecimento e a morte. Se não houver nascimento, não há envelhecimento e morte.

A impermanência e a condicionalidade dos fenômenos são elementos essenciais dos ensinamentos do Buda, estando inseridas na segunda e na terceira Nobres Verdades.




Os Budistas Acreditam em Deus?


Na cosmologia do Budismo Theravada há 31 mundos de existência dos quais 26 são habitados por divindades, (ou devas). Os 5 mundos restantes correspondem ao inferno, mundo animal, fantasmas famintos, titãs e seres humanos. O nascimento nesses 31 mundos é temporário e não há nenhum mundo onde a existência seja permanente ou eterna. Todos os seres em todos os mundos estão sujeitos ao falecimento e ao renascimento no mesmo mundo ou em algum outro. Os seres renascem em cada um desses mundos de acordo com o seu karma.

As divindades que renascem nos 26 mundos de existência possuem distintas características de refinamento ou pureza, por exemplo, os primeiros 6 mundos de divindades, depois do mundo humano, ainda fazem parte da esfera sensual, ou seja, são divindades que ainda desfrutam do prazer dos sentidos. A diferença em relação ao mundo humano é que essas divindades desfrutam mais prazeres do que os humanos, cuja experiência é uma combinação de prazer e dor. Já nos mundos seguintes as divindades apresentam gradualmente qualidades cada vez mais refinadas e purificadas, que correspondem aos estados mentais experimentados nos jhanas, que são estados mentais puros acompanhados de profunda concentração e absorção mental. Portanto, o que caracteriza as divindades de um determinado mundo são as qualidades mentais desenvolvidas e presentes na mente daquele ser. Essas qualidades mentais são provenientes da prática de ações meritórias ou da prática de desenvolvimento da mente através da meditação. Agora, através da prática dos jhanas, é possível que alguns seres desenvolvam poderes extraordinários, os poderes supra-humanos descritos em vários suttas (veja a descrição completa dos poderes supra-humanos).

Os poderes supra-humanos descritos nos suttas não incluem a onisciência. A onisciência do Buda é um aspecto controverso no Cânone. Em geral o Cânone retrata o Buda sob uma perspectiva humanista, ele é um ser humano comum, igual a qualquer outro, que através do seu próprio esforço acabou descobrindo a realidade da vida. Essa descoberta, em muitos suttas, é descrita como a realização dos três conhecimentos verdadeiros: o conhecimento das vidas passadas, o conhecimento sobre como o karma determina o processo de renascimento e o conhecimento da destruição das impurezas mentais. Este último é o que caracteriza a iluminação e esse conhecimento não é privilégio do Buda, pois está disponível para qualquer um. Em contraponto a essa perspectiva humanista, os comentários da escola Theravada atribuem um certo grau de onisciência ao Buda. A posição ‘oficial’ da escola Theravada, é que o Buda era onisciente mas apenas em relação àquilo para o qual ele dirigia a sua mente, ou seja, o Buda não era capaz de saber tudo de forma simultânea e precisava dar atenção para aquilo que ele queria saber (para mais detalhes veja o MN 71 e o MN 12). Essa interpretação sofreu uma profunda transformação no Budismo, especialmente com o desenvolvimento do Mahayana, que atribui ao Buda um caráter totalmente transcendental, um caráter divino, distante do ideal humanista presente no Cânone.

O capítulo a seguir - “Multiplicação de Budas e Bodisatvas” - foi traduzido de um ensaio de autoria do renomado estudioso do Budismo – Etienne Lamotte. Ele foi publicado no livro The World of Buddhism e descreve resumidamente o desenvolvimento deste tema no Budismo Mahayana.

Multiplicação de Budas e Bodisatvas

"Mesmo reconhecendo no Buda uma série de poderes e prerrogativas, os savakas, (palavra usada para descrever os discípulos do Buda e o Theravada), durante muito tempo mantiveram-no no plano humano. Eles afirmavam que ele era “consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos,” mas não ignoravam o fato de que, uma vez morto, ele estaria invisível para devas e humanos, e não poderia fazer mais nada por eles abandonado-os à sua própria sorte, deixando, assim, o Dhamma como única herança. De acordo com eles, o surgimento de um Buda seria uma ocorrência muito rara - tão rara quanto brotar uma flor numa figueira – e a humanidade permaneceria sem um guia e sem conselheiros durante longos períodos de tempo.

Um deus ‘morto a partir do seu parinibbana’ – como definido por H. Kern – poderia bastar para os monges; mas não satisfaria as aspirações populares que clamavam urgentemente por um espírito superior, um panteão, santos, uma mitologia e um culto. A vulgarização da Boa Doutrina, (Dhamma), e a sua penetração nas massas teve o efeito de transformar o ‘mestre de devas e humanos’ num ‘Deus superior aos deuses,’ circundando-o com uma multitude de divindades menores e maiores bem como poderosos discípulos. As ‘seitas’ (nikaya) ou ‘escolas’ (vada) do chamado Hinayana já tinham dado o seu suporte para esse processo de sublimação: os Sarvastivadas estofando a lenda de Sakyamuni com milagres, os Mahasanghikas colocando a sua carreira histórica no campo dos fenômenos fictícios. Como a necessidade de protetores eficazes havia se tornado mais urgente, os savakas já tinham concebido ao lado do Buda histórico, um Messias compassivo, o futuro Buda Maitreya e alguns arahants imortalizados em benefício da causa, os quais estariam sempre dispostos a vir para ajudar os fiéis.

Esses desenvolvimentos permaneceram como casos isolados no Savakayana, mas os seguidores do Mahayana não tiveram nenhuma hesitação em aumentar infinitamente o número de Budas e grandes Bodisatvas. Arrebentando os limites estreitos da velha cosmologia, o Mahayana concebeu no coração do cosmo um considerável número de universos, cada um governado por um Buda assessorado por um, ou vários, grandes Bodisatvas. O Buda já possui a Perfeita Iluminação, enquanto que os grandes Bodisatvas – aqueles do décimo estágio – estão bem ‘próximos da Iluminação.’ Exceto por essa diferença, os Budas e Bodisatvas, inspirados pela mesma benevolência, convertem os seres nos seus universos e com freqüência aparecem simultaneamente em formas variadas e em distintos universos.

Sakyamuni, cuja existência histórica não pode ser duvidada, em pouco tempo veria um infinito número de pares e imitadores alinhados ao seu lado. Ele permaneceria como o mais conhecido dentre os Budas mas ele não seria mais o único. As escrituras do Mahayana mencionam muitos Budas e Bodisatvas até então desconhecidos.

Dentre esses Budas, são dignos de nota: Amitabha ou Amitayus, luminoso e com tempo de vida infinito, regente de Sukhavati, o Paraíso do Ocidente; Aksobhya, o imutável, localizado no leste, no universo Abhirati; Bhaisajyaguru, o mestre médico, que também habita o leste. Os mais famosos Bodisatvas são: Maitreya, aguardando no paraíso de Tusita para suceder a Sakyamuni; Avalokitesvara, que habitou o Monte Potalaka antes de manifestar-se na China sob a forma da divindade feminina Kuan-yin; Manjusri, de uma doce majestade, o Bodisatva da sabedoria."

Conclusão:

É possível afirmar que, para aquelas pessoas com um entendimento mais profundo ou sofisticado dos ensinamentos Budistas, essa multitude de Budas e Bodisatvas são apenas manifestações da sabedoria e compaixão do Buda.

No entanto, parece impossível evitar que na cultura popular, menos esclarecida, os Budas e Bodisatvas acabem assumindo uma dimensão divina, que acaba caracterizando-os como Deuses Todo Poderosos, atribuindo a eles um caráter semelhante ao das religiões teístas.




O Budismo e a Reencarnação


1. O Budismo acredita na reencarnação?

O Budismo não ensina a reencarnação, o Budismo acredita no renascimento.

2. Qual é a diferença entre reencarnação e renascimento?

A reencarnação é a idéia da existência de um espírito separado do corpo; com a morte do corpo esse mesmo espírito reassume uma outra forma material e segue evoluindo. O renascimento na concepção Budista não é a transmigração de um espírito, de uma identidade substancial, mas a continuidade de um processo, um fluxo do devir, no qual vidas sucessivas estão conectadas umas às outras através de causas e condições. Esse processo ou fluxo não ocorre apenas com a morte mas está presente constantemente nas nossas vidas. Nós estamos em constante mudança, com cada momento nas nossas vidas surgindo na dependência do momento anterior, que deixou de existir. É um pouco parecido com a correnteza de um rio, a correnteza fluindo continuamente sem cessar. Não é possível entrar no mesmo rio duas vezes.

Podemos ilustrar o renascimento com um símile, é como se a chama de uma vela fosse empregada para acender uma outra vela e nesse processo a primeira vela fosse apagada. A chama da segunda vela surgiu na dependência da primeira vela, ou seja, tem uma conexão com ela, mas a chama da segunda vela não é idêntica à primeira. Então, as duas chamas possuem uma ligação mas não são idênticas.

3. De onde então vem o homem e para onde ele está indo?

Há três respostas possíveis para esta questão. Aqueles que acreditam na existência de um Deus, em geral, postulam que antes da criação de um ser ele não existe, ele passa a existir pela vontade do Deus criador. De acordo com o seu modo de vida, o seu destino será o paraíso ou o inferno eternos. Há outros, humanistas e cientistas, que postulam que um ser surge através da concepção baseada em causas naturais, nasce, e depois de viver algum tempo, morre deixando de existir por completo.

O Budismo não adota nenhuma dessas explicações. A primeira dá origem a uma série de questões de ordem ética. É difícil explicar, se somos realmente criados por um Deus, porque tantos seres nascem com deformidades terríveis ou porque tantos fetos abortam por causas naturais ou são natimortos. Também parece um tanto injusto que alguém esteja destinado ao sofrimento eterno no inferno ou à felicidade eterna no paraíso tendo vivido apenas 60, 70 ou 80 anos. A segunda explicação é um pouco melhor do que a primeira e está mais baseada em evidências científicas, mas ainda assim deixa muitas questões sem resposta. Como é possível que um fenômeno tão incrível como a consciência possa se desenvolver do simples encontro entre o esperma e o óvulo? E agora que muitos fenômenos paranormais são reconhecidos como ramos da ciência, fenômenos como a telepatia são cada vez mais difíceis de se encaixar num modelo puramente materialista.

Para o Budismo, com a morte, a consciência com todas as suas tendências, preferências, habilidades e características que foram desenvolvidas e condicionadas nesta vida, se re-estabelece no embrião/feto. Dessa maneira, o ser cresce, nasce e desenvolve uma personalidade condicionada pelas características que foram trazidas da vida passada e pelo novo ambiente, além de outros fatores condicionantes como a hereditariedade, etc. Essa personalidade está sujeita a mudança e será modificada através do esforço consciente por fatores condicionantes tais como a educação, a influência dos pais e da sociedade, etc. Outra vez, com a morte, essa consciência irá se re-estabelecer num novo embrião/feto.

Esse processo de renascimento irá continuar até que as condições que o causarem persistam. Quando essas condições deixarem de existir, ao invés de renascer, a consciência alcançará um estado que é chamado nirvana, e esse é o objetivo último no Budismo.

4. Como a consciência migra de um corpo para outro?

Imagine as ondas de rádio. As ondas de rádio não são compostas de palavras ou notas musicais mas de energia em distintas freqüências que são transmitidas através do espaço e atraídas e capturadas por um receptor no qual se manifestam como palavras e música. Algo similar ocorre com a consciência. Ao morrer, a energia mental cruza o espaço e se une ao embrião/feto para formar o novo ser. O embrião/feto e a consciência se desenvolvem através de uma relação de mútua dependência e influência.

5. Os seres humanos sempre renascem como seres humanos?

Não. De acordo com o Budismo há vários planos de existência nos quais ocorre o renascimento. Alguns seres renascem no paraíso celestial, alguns no inferno e assim por diante. O paraíso celestial ou o inferno não são propriamente lugares mas estados de existência onde a mente experimenta respectivamente principalmente prazer ou dor. A vida nesses planos no entanto é temporária e depois disso haverá um novo renascimento que poderá muito bem ocorrer entre os seres humanos. Então, a principal diferença entre o plano humano e os outros planos é a qualidade da experiência mental.

6. Qual o fator que decide onde um ser irá renascer?

O fator mais importante que condiciona o renascimento é karma.

Karma quer dizer ação baseada na intenção e se refere ao conjunto de ações com a mente, corpo e linguagem que constituem no seu conjunto a bagagem que carregamos conosco.

Essas ações geram consequências que são os frutos do karma. Os frutos do karma influenciam tanto a nossa experiência do mundo como o processo de renascimento por ocasião da morte.

7. Mas o que exatamente é karma?

Karma é uma palavra em Sânscrito, (Kamma em Pali), que quer dizer ação baseada na intenção e essa intenção inclui volição, escolha e decisão, o ímpeto mental que conduz à ação. A intenção é aquilo que incita e dirige todas as ações humanas, ambas, criativas e destrutivas e por isso é a essência de karma.

Intenção no contexto Budista tem um significado muito mais sutil do que o uso mais geral dessa palavra. Em geral tendemos a usá-la quando queremos proporcionar um elo de ligação entre o pensamento interno e as suas ações externas resultantes. Por exemplo, podemos dizer, “Eu não tinha intenção de fazer isso,” “Eu não tinha intenção de dizer isso” ou “Ela fez isso de forma intencional.”

Mas, de acordo com os ensinamentos Budistas, todas as ações e linguagem, todos os pensamentos, não importa quão fugazes sejam, e as respostas da mente a sensações recebidas através dos órgãos dos sentidos contêm elementos de intenção. Assim, a intenção é a escolha volitiva feita pela mente em relação aos objetos para os quais a atenção é dirigida; é o fator que conduz a mente a se inclinar ou a repelir os vários objetos da atenção, ou de prosseguir em uma certa direção; é o que guia ou governa como a mente responde aos estímulos; é a força que planeja e organiza os movimentos da mente e no final das contas é aquilo que determina os estados experimentados pela mente.

Karma opera no universo como uma cadeia contínua de causa e efeito. Essa cadeia não está só confinada à causação no sentido físico, mas também tem implicações éticas e morais. “Boas ações trazem bons resultados, más ações trazem maus resultados”, é um dito comum. Nesse sentido karma é uma lei moral.

Os seres humanos estão constantemente emitindo energia física e mental em todas as direções. Na física aprendemos que não há perda de energia, ela só muda de forma. Essa é a chamada lei da conservação de energia. Do mesmo modo, a energia mental nunca é perdida. Ela é transformada. Portanto, karma é a lei da conservação da energia moral.

Através das ações com a mente, corpo e linguagem os seres estão emitindo energia para o universo, e em contrapartida, eles são afetados pelas influências que fluem na sua direção. Os seres portanto, enviam e recebem todas essas influências, encontrando-se num estado de interdependência.

O Karma não deve ser confundido com destino, fatalidade. Destino transmite a idéia de que a vida de alguém foi planejada de antemão por algum poder externo e que a pessoa não tem controle sobre o desenrolar dos eventos na sua vida.

Nesse sentido é importante observar que karma através dos seus frutos é um fator que influencia o futuro e não que determina o futuro, pois a cada momento os seres têm a oportunidade de agir no sentido de reforçar os frutos do karma ou de minimizá-los. Isso ocorre porque no Budismo karma não é visto de uma forma absolutamente linear. Há um processo linear em operação através do qual experimentamos no presente os frutos de ações passadas mas também há um processo sincrônico no qual o presente é influenciado pelo fruto das ações no presente. Dessa forma o Budismo reconhece que há um certo espaço para o exercício do livre arbítrio.

Qualquer ação desprovida de intenção não tem impacto na lei de karma. Por exemplo, um barranco desmoronando, uma pedra caindo de uma montanha, ou um galho morto caindo de uma árvore, não faz parte do escopo da lei de karma, mas de alguma outra lei da natureza.




O Budismo tem uma visão negativa da vida?
O Budismo é niilista?


1. O Budismo é uma doutrina com uma visão negativa da vida? O Budismo é niilista?

Não, o Budismo não tem uma visão negativa da vida e nem é niilista. Mas é uma realidade que no Ocidente o Budismo tem sido rotulado como uma religião negativa que enfatiza o sofrimento e a negação da vida, que defende o niilismo.

2. Porque o Budismo recebeu esse rótulo negativo no Ocidente?

Essa idéia surgiu entre filósofos europeus durante o século 19. Na época, vários escritores influentes, baseados em leituras falhas dos textos Budistas, rotularam o Budismo como uma forma perigosa de niilismo.

Mais recentemente, esse tipo de idéia prevalece mesmo dentro da Igreja Católica, como pode ser constatado no livro “Crossing the Threshold of Hope”, escrito pelo Papa João Paulo II. Nesse livro, o Papa afirma que a iluminação do Buda teve como base a convicção de que o mundo representa o mal e é a fonte de sofrimento do homem. Dessa forma, para se livrar do sofrimento é necessário se livrar do mundo. Seria necessário romper os vínculos que nos atam à realidade externa. Quanto mais nos libertarmos desses vínculos mais nos libertaremos do sofrimento, isto é, do mal que provém do mundo.

O Buda nunca afirmou que o mundo é a fonte do mal e do sofrimento. A ênfase do ensinamento Budista está na mente e não no mundo. O mundo é neutro – é a mente do homem que cria dificuldades no mundo. A fonte do sofrimento, de acordo com o ensinamento do Buda, é a cobiça e a raiva numa mente confusa. Essas características não são do mundo, mas do próprio homem.

3. Mas o que é o niilismo?

Niilismo é uma designação atribuída a várias filosofias radicais que rejeitam todo e qualquer valor positivo e não acreditam em nada. Os niilistas adotam um visão materialista da vida e afirmam que depois da morte não há nada. Ou seja, com a morte, esse tipo de doutrina considera que não só o corpo é aniquilado, mas a mente também é completamente aniquilada.

O Budismo rejeita esse tipo de doutrina e afirma que após a morte há a continuidade da consciência. Não no sentido de uma entidade permanente, como por exemplo uma alma ou espírito, mas uma consciência que está sujeita a um contínuo processo de vir a ser ou devir. Além disso, a doutrina de karma, ou lei da natureza relativa às ações e suas conseqüências, que faz parte dos ensinamentos centrais no Budismo, também é evidência de que o Budismo não ensina a aniquilação completa com a morte.

4. Mas o vazio ou vacuidade no Budismo não é uma afirmação niilista?

O termo técnico Budista shunyata (em sânscrito) ou suññata (em Pali) tem dado origem a mal-entendidos no Ocidente, onde esse termo é interpretado como o nada, a ausência ou extinção da existência. Shunyata, ou vacuidade, é um sinônimo para a origem dependente. A origem dependente é provavelmente o ensinamento Budista mais importante e em essência afirma que todas as coisas, quer sejam materiais ou mentais, surgem, subsistem e desaparecem de acordo com causas e condições.

Nenhum tipo de coisa existe de forma autônoma, independente de causas e condições. Essas causas e condições são internas e externas. Por exemplo, uma árvore depende para sua sobrevivência do seu tronco, raízes, galhos e folhas, que são as suas condições internas, mas também a árvore depende da terra, do sol, do abastecimento de água e das condições climáticas de uma forma geral para a sua sobrevivência, essas são as condições externas. Sem estar suportada por essas condições a árvore não existe, o que leva à conclusão de que a árvore em si é vazia.

Uma outra forma de análise é observar que as condições internas na verdade são partes nas quais a árvore pode ser dividida e ao dividir a árvore em partes, não há nada nessas partes que contenha em si a característica de árvore. A idéia da árvore é um conceito criado pela mente a partir da união daquelas partes e assim sendo a árvore em si é vazia.

Então, não é que o Budismo negue a existência das coisas, mas o que é negado é que as coisas possuam algum tipo de existência independente, autônoma. Se as coisas tivessem uma existência autônoma então o mundo seria estático, permanente. É evidente que esse não é o caso. Como as coisas são desprovidas de uma existência independente, autônoma, e dependem de causas e condições para se manifestar, é dito que as coisas são vazias, vazias de uma existência inerente. E justamente pelo fato das coisas serem vazias que a mudança é possível. As coisas mudam quando as condições das quais elas dependem mudam. Esse entendimento é o que viabiliza toda a prática Budista pois o caminho Budista trata da mudança, da transformação dos estados mentais inábeis, ou prejudiciais, em estados mentais hábeis, ou benéficos.

5. O Budismo então também rejeita a eternidade?

A idéia de uma vida eterna ou de coisas que durem para sempre é rejeitada no Budismo. Se analisarmos as coisas neste mundo com atenção é possível verificar que não há absolutamente nada que seja permanente. Todas as coisas, quer sejam na nossa mente e corpo ou no exterior, exibem a mesma característica de impermanência e instabilidade. As coisas surgem e desaparecem de acordo com causas e condições.

6. Mas e com relação ao sofrimento. Porque o Budismo coloca tanta ênfase no sofrimento?

A visão Budista do mundo pode ser descrita como realista. Ninguém pode negar que há sofrimento na vida. O envelhecimento, a enfermidade e a morte são causas de sofrimento para a maioria das pessoas. Também no dia a dia as pessoas estão sujeitas a todo tipo de desconfortos físicos e mentais que causam sofrimento e estresse em graus variados. Na verdade, para a maioria das pessoas a vida contém momentos de alegria e felicidade mais ou menos na mesma proporção de momentos de tristeza e infelicidade. Poderíamos chamar isso de padrão de uma vida normal e o Budismo simplesmente reconhece isso e afirma que não há nada de errado nisso. Se as pessoas sofrem elas não precisam se culpar por isso, visto que sofrer faz parte da vida.

Para curar um enfermo, a primeira coisa que um médico precisa fazer é um diagnóstico preciso para então saber qual o tratamento a ser prescrito. O Buda ao transmitir os seus ensinamentos agiu como um médico. O diagnóstico da condição humana é que o sofrimento é a experiência comum a todos os seres vivos, em forma de descontentamento, insatisfação ou tristeza. Em vista desse diagnóstico, o Buda prescreveu a maneira de dar um fim ao sofrimento; e o tratamento para dar um fim ao sofrimento é o núcleo da prática Budista. O sofrimento é a experiência que nos leva ao despertar, pois quando sofremos, tendemos a investigar, a ter curiosidade, a buscar uma saída.

O Budismo, na realidade, nos apresenta a oportunidade de despertar para a nossa verdadeira natureza, para a verdadeira liberdade, para o amor e a compaixão. Ele proporciona uma visão positiva do potencial humano para encontrar a verdadeira felicidade.




O Budismo e a homossexualidade


1. Há algum tipo de prática sexual rejeitada pelo Budismo?

Em primeiro lugar é necessário fazer a distinção entre os praticantes Budistas que adotam o monasticismo e aqueles que seguem a vida leiga. O código de disciplina monástica prescreve o celibato para os monges e monjas. Para os leigos há um conjunto de cinco preceitos éticos que devem ser observados, sendo que o terceiro preceito determina que a pessoa deve evitar o comportamento sexual impróprio.

Portanto, no caso dos monges (as) qualquer tipo de prática sexual é proibida e estará sujeita a algum tipo de censura e punição que depende da gravidade do ato, sendo que os casos extremos resultam na expulsão da comunidade monástica. No caso dos leigos, determinar se o terceiro preceito está sendo observado ou não é uma situação um pouco mais complexa visto que depende da interpretação do que seria um comportamento sexual impróprio.

2. O que é um comportamento sexual impróprio?

Para entender se um determinado comportamento sexual é impróprio é necessário entender o critério empregado no Budismo para fazer julgamentos éticos.

O Buda recomendou três critérios ao fazermos julgamentos morais. O primeiro podemos chamar de princípio da universalidade – agir em relação aos outros do mesmo modo que gostaríamos que eles agissem conosco. O segundo podemos chamar de princípio conseqüencial – para determinar se um comportamento é benéfico ou prejudicial é necessário avaliar as conseqüências tanto no agente como no paciente, ou seja, um comportamento que cause algum tipo de dano quer seja no agente ou no paciente deve ser evitado. O terceiro podemos chamar de princípio instrumental – um comportamento é benéfico se ele nos conduz para mais perto do objetivo ou prejudicial, se nos afasta dele. O objetivo último no Budismo é nibbana, um estado de pureza e paz mental, e tudo que conduz a esse objetivo será benéfico.

Essa abordagem utilitária em relação à ética fica ainda mais clara ao observarmos que o Buda usava com muito mais freqüência os termos ‘benéfico ou hábil’ e o seu oposto ‘prejudicial ou inábil’ no lugar de bom ou mal. Outro elemento importante na avaliação do comportamento é a intenção. Se uma ação está fundamentada em boas intenções, por exemplo, na generosidade e na compaixão, então, ela será considerada hábil. Portanto, avaliar o comportamento no Budismo requer mais do que simplesmente obedecer a certas regras ou mandamentos, exige que tenhamos plena consciência dos nossos pensamentos, palavras e ações, bem como dos nossos objetivos e aspirações.

Após examinarmos rapidamente os fundamentos racionais da ética Budista podemos melhor compreender que tipo de comportamento sexual o Buda considerava como impróprio ou inábil e porque. Nos discursos o Buda menciona particularmente alguns tipos de comportamento sexual impróprio, como por exemplo o adultério. O adultério é inábil porque requer o subterfúgio e o engano, significa que promessas feitas são rompidas e a confiança é traída.

A homossexualidade não é mencionada de forma explícita em nenhum dos discursos do Buda levando à conclusão de que a homossexualidade deve ser avaliada do mesmo modo que a heterossexualidade. No caso de duas pessoas leigas que agem com base no consentimento mútuo, onde não há adultério, e onde o ato sexual é uma expressão de amor, respeito, lealdade e calor humano, esse seria um comportamento sexual hábil. E o mesmo critério vale se as duas pessoas forem do mesmo sexo. Do mesmo modo, a promiscuidade, libertinagem e a desconsideração dos sentimentos dos outros fazem com que um ato sexual seja inábil quer seja heterossexual ou homossexual. Todos os princípios empregados para avaliar uma relação heterossexual também são válidos para avaliar uma relação homossexual.

No Budismo podemos dizer que não é o objeto do desejo sexual que determina se um ato sexual é inábil ou não, mas na verdade, a qualidade das emoções e intenções envolvidas.

3. Há alguma objeção do Buda com relação ao casamento do mesmo sexo?

A resposta é “Não.” Na coleção de discursos do Buda não há nenhuma objeção desse tipo. Para ser mais exato, o Buda nem apoiava e tampouco se opunha ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

4. Isso então quer dizer que o Budismo é mais tolerante em relação aos homossexuais?

A realidade prática nas sociedades tradicionais Budistas é que não há muito apoio para idéias liberais e os estudos filosóficos das escrituras Budistas têm influencia reduzida na cultura popular. Os direitos humanos nesses países sempre receberam pouca atenção e a cultura está enraizada na interpretação popular da Lei de Karma que tende a ver karma como um processo linear, próximo do fatalismo.

É comum os monges instruírem os discípulos leigos a enxergar o mundo sob uma ótica fatalista, isto é, que cada pessoa nasce para pagar os seus pecados. De acordo com essa interpretação a homossexualidade, bem como as demais práticas sexuais consideradas como depravadas, têm origem no desrespeito ao terceiro preceito em vidas passadas e por isso as pessoas têm de pagar nesta vida por essas ofensas cometidas em vidas passadas. E sendo assim, elas merecem o tratamento que recebem da sociedade. Esse tipo de crença gera um sistema de valores extremamente conservador.

Algumas vezes o Buda aconselhava evitar um certo tipo de comportamento não porque fosse inábil do ponto de vista ético mas porque colocaria a pessoa em divergência com as normas sociais ou porque poderiam sujeitá-la a sanções legais. Nesses casos, o Buda dizia que evitar esse tipo de comportamento livraria a pessoa da ansiedade e embaraço causado pela desaprovação social e o medo de ações punitivas. Em determinadas situações sociais, esse seria o caso em relação à homossexualidade. Nesses casos, o homossexual tem que decidir se irá se submeter àquilo que a sociedade espera ou se irá tentar mudar os valores sociais.




No Budismo todo desejo é ruim?


O Buda disse que as pessoas não são felizes devido ao desejo e que o desejo é a causa do sofrimento humano. Isso significa que no Budismo todo desejo é considerado ruim?

O Buda reconheceu que o desejo é uma força poderosa nas nossas vidas e que a busca pelo prazer está profundamente enraizada na nossa mente. O Buda não negou isso, mas o que ele descobriu é que existem distintos tipos de desejo e distintos tipos de prazer.

Ele observou que não vale a pena buscar alguns tipos de prazer, pois eles acabam se revelando insatisfatórios pelo fato de sempre terminarem. Como diz o ditado, ‘tudo que é bom dura pouco.’ E quando termina, a reação natural é buscar mais, e como esse novo prazer também terminará, então essa busca acaba se tornando inútil e inglória. Além da impermanência, uma das características de todas as coisas, o Buda também descobriu que esses tipos de prazer, que não vale a pena buscar, apresentam perigos e desvantagens enormes, um deles, apesar da satisfação proporcionada, é o de despertar uma busca contínua por prazeres ainda mais intensos e duradouros. Uma boa ilustração desse processo são todos os tipos de obsessões e vícios que podem ser observados na sociedade. O outro tipo de perigo é o preço a ser pago e as consequências decorrentes da busca por esses tipos de prazer. E elas vão desde o esforço individual para ganhar o dinheiro para a obtenção desse tipo de prazer, depois o trabalho de protegê-lo e preservá-lo, chegando à criminalidade e outras enfermidades sociais; sem falar no impacto ambiental e nos conflitos interpessoais que podem até mesmo levar a guerras entre nações, etc.

Esses tipos de prazer são aqueles provenientes dos sentidos, os prazeres sensuais na terminologia Budista. Ao notar as desvantagens dos prazeres sensuais, o Buda se perguntou se haveria algum outro tipo de prazer que não sofresse dos mesmos tipos de problemas.

Ele descobriu duas coisas. Primeiro, há um outro tipo de prazer que não é sensual e que produz uma satisfação muito superior àquela dos prazeres sensuais, mas que ainda assim é impermanente. É o prazer dos jhanas. Os jhanas são estados de absorção profunda que produzem um intenso prazer na mente. As vantagens desse tipo de prazer em relação aos prazeres dos sentidos é que ele está sempre acessível, não pode ser comprado, ninguém poderá tirá-lo de você e que, portanto, não gera nenhum tipo de conflito.

Segundo, além dos jhanas, o Buda descobriu que há um prazer ainda maior, e o melhor de tudo é que ele não está sujeito à impermanência. É o prazer da libertação completa - nibbana.

Com relação ao desejo, o Buda identificou que há dois tipos de desejo, os hábeis e os inábeis. A melhor maneira de ilustrar a diferença entre esses dois é através de um símile empregado pelo próprio Buda. Imagine uma galinha que está chocando os ovos. Se ela desejar que os pintinhos rompam as cascas e nasçam com saúde, mas não cobrir os ovos e não os mantiver aquecidos da forma necessária, os pintinhos não irão nascer não importa quanto a galinha deseje isso. Por outro lado, se ela não desejar que os pintinhos nasçam, mas mesmo assim, se ela cobrir e aquecer os ovos da maneira necessária, os pintinhos, certamente, irão nascer. Ou seja, para obter certos resultados, há uma forma correta de fazer as coisas. Ter desejos que contrariam a maneira correta de fazer as coisas acaba sendo um obstáculo para a concretização do objetivo. No entanto, se o desejo for coerente com a maneira correta de fazer as coisas, então as chances de alcançar o objetivo serão maiores ainda.

O Buda identificou que os desejos pelos prazeres sensuais nos afastam de um prazer ainda maior e melhor, que são os jhanas; e por isso ele recomendou o abandono dos prazeres sensuais e a busca do prazer dos jhanas. E mais ainda, ele recomendou o abandono do prazer dos jhanas por um prazer ainda maior e melhor, que é nibbana.

Portanto, não há problema nenhum em desejar o prazer superior dos jhanas ou de nibbana. Mas é absolutamente tolo desejá-los e não fazer aquilo que é necessário para alcançá-los.




Porque devo meditar?


A resposta é simples, para desfrutar da verdadeira felicidade.

Todos nós sabemos o que é sentir-se feliz. Já sentimos isso várias vezes. O problema é que invariavelmente esse sentimento de felicidade não dura, acaba desaparecendo. Quantas vezes não desejamos obter algo acreditando que aquilo traria a verdadeira felicidade. Obtendo aquilo que desejamos, o sentimento de felicidade pode ser extremamente intenso e recompensador, mas passado algum tempo já não sentimos mais a mesma coisa e até começamos a ver defeitos naquilo que antes parecia completamente perfeito. A nossa reação, regra geral, é colocar defeito no objeto. Ou seja, se aquilo que obtivemos não trouxe a felicidade completa e duradoura é porque não encontramos a coisa certa e assim saímos em busca de alguma outra coisa que seja perfeita e duradoura. E assim seguimos na nossa busca sem fim.

Mas há uma felicidade que é perfeita e duradoura, que não desaparece e que não depende das circunstâncias. A verdadeira felicidade está no interior, nas nossas próprias mentes, não pode ser encontrada no mundo, lá fora. Essa felicidade não é egoísta pois não precisa tomar nada de ninguém e não causa nenhum tipo de dano a ninguém, pois se a nossa felicidade tiver que depender de tomar algo de outras pessoas ou do sofrimento de outras pessoas, elas de alguma forma irão tentar dar um fim nisso. A felicidade que vem do interior não precisa ter um fim e não precisa tomar nada de ninguém, sendo portanto um ato de sabedoria e um ato de compaixão. Para encontrá-la, o único método possível é a meditação.

Entendendo a mente

A meditação é como uma expedição exploratória no interior das nossas mentes. Um processo investigatório que tem dois objetivos. O primeiro é entender como a mente funciona e o segundo é treiná-la.

Entender como a mente funciona significa compreender porque em determinadas situações acabamos agindo ou dizendo coisas que acabam ferindo até mesmo pessoas que queremos muito e a nós mesmos. Coisas das quais acabamos nos arrependendo mais tarde. Ou porque as coisas que obtemos e que nos trazem tanta felicidade, passado algum tempo perdem valor.

Treinar a mente significa deixar de lado aqueles hábitos mentais que acabam produzindo uma felicidade apenas temporária, que prejudicam os outros e a nós mesmos, e que nos afastam da verdadeira felicidade. Além disso, treinar a mente significa cultivar, desenvolver, aqueles hábitos que irão beneficiar os outros e a nós mesmos e que conduzem à verdadeira felicidade.

O objetivo da meditação não é curar um determinado mal-estar emocional que a pessoa possa estar sentindo, mas sim atacar o problema na sua raiz eliminando as causas que dão origem a todos os tipos de mal-estar mental e que impedem a verdadeira felicidade.

Quantos tipos de meditação existem?

Existem vários tipos de meditação no Budismo, mas para atingir os objetivos descritos acima, há dois tipos de meditação que são os mais adequados. Uma é a meditação da concentração e a outra é a meditação de insight. Os dois tipos também são conhecidos como samadhi e vipassana em Pali (shamatha e vipayshana em Sânscrito).

A meditação da concentração visa acalmar e tranquilizar a mente enquanto que a meditação de insight visa ver as coisas que ocorrem na nossa mente como elas na verdade são.

Para dar um exemplo, imaginemos um lago com águas cristalinas, tão limpas que nos permita ver o fundo, ver as pedras e o cascalho, os peixes nadando. Agora imaginem a superfície do lago com ondas agitadas pelo vento, seria possível ver até o fundo do lago? Muito provavelmente não, a superfície do lago tem de estar calma, sem ondas, sem nenhuma agitação. Assim é como funciona a meditação da concentração, que tem como objetivo aquietar a agitação natural da mente para poder ver melhor o que está acontecendo. Agora imaginem que a superfície do lago está calma, a pessoa que está olhando é capaz de ver e apreciar aquilo que está na água, agora se essa pessoa tiver conhecimentos de biologia, geologia ou ecologia, ela poderá apreciar aquilo que está vendo num grau muito mais completo e profundo do que uma que não tenha esse tipo de conhecimento. De modo semelhante com a meditação de insight, que possibilita ao meditador enxergar e entender completa e profundamente aquilo que está ocorrendo na sua mente. Mas isso também implica que há um certo referencial para a prática da meditação de insight que são exatamente os ensinamentos do Buda sobre a realidade das coisas. Praticar a meditação de insight sem esse referencial é perda de tempo. Esse referencial pode ser obtido através do estudo dos ensinamentos Budistas.

Posso meditar sozinho?

Não há nada que impeça alguém de começar a praticar meditação sozinho. É necessário ter um conhecimento razoável dos ensinamentos do Buda e com base nos textos disponíveis sobre meditação é possível ter uma idéia geral sobre como funciona a prática. Havendo oportunidade é recomendável que o meditador tenha o apoio de pessoas mais experientes e que participe de retiros de meditação para obter mais experiência e contar com o auxílio de um professor.

No entanto, há dois obstáculos que são enfrentados por todos os meditadores. Primeiro é a motivação e segundo, como lidar com as dificuldades que surgem.

A meditação como qualquer arte ou esporte requer continuidade na prática. Certo maestro de uma orquestra sinfônica dizia que se um músico da sua orquestra ficasse três dias sem praticar, a audiência perceberia; se ele ficasse dois dias sem praticar, os seus colegas na orquestra perceberiam; e se ele ficasse um dia sem praticar, ele, maestro, perceberia. Com a meditação é a mesma coisa. É necessário incorporá-la como parte da rotina diária, assim como escovar os dentes ou ir ao banheiro. Para fazer isso, no entanto, é necessário motivação. Num retiro de meditação, onde há um grupo de pessoas e uma rotina de atividades estabelecida, fica mais fácil manter a disciplina. Em casa, sozinho, é muito mais difícil. A pessoa tem de encontrar dentro de si mesma essa motivação. Desenvolver um senso de urgência, (samvega em Pali), é um dos principais fatores que ajuda a estimular a energia para a prática da meditação. Esse senso de urgência é despertado ao refletirmos sobre as inevitáveis vicissitudes da vida e o sofrimento gerado pelas enfermidades, envelhecimento e morte. O estudo, a leitura de textos Budistas pode servir como fonte de inspiração, e a participação num grupo que medite regularmente também pode ajudar. Ayya Khema dizia que as pessoas com tendência para aversão são aquelas que são motivadas com mais facilidade para a prática, porém são aquelas que provavelmente, pela própria aversão, irão encontrar mais dificuldades.

O segundo aspecto é como lidar com as dificuldades. Não que a meditação seja algo difícil. A meditação em si é muito fácil. As dificuldades são em geral criadas por nós mesmos devido aos hábitos mentais inábeis acumulados durante muito tempo. Isso é o que cria as dificuldades na meditação.

Qualquer prática de meditação terá mais chance de ser bem sucedida se for acompanhada por uma sensação de bem-estar mental. Isso não só cria um fator de estímulo para praticar a meditação, como é também a condição necessária para que a meditação transcorra com menos dificuldades. O objeto de meditação mais recomendado é a respiração, que inclusive foi o que o próprio Buda empregou. A respiração tem a vantagem de ser algo neutro, mas ao mesmo tempo capaz de condicionar a mente e o corpo. Dependendo da forma como a respiração é observada, ou seja, o tipo de atenção e intenção na mente ao observar a respiração, combinado com um ritmo de respiração que seja confortável e agradável, é possível com facilidade criar essa sensação de bem-estar no corpo e na mente. Esse será um bom ponto de partida, ao qual poderemos sempre recorrer.

Além disso é importante, como base para uma meditação bem sucedida, que o meditador observe certas regras de conduta, cujo conteúdo mínimo abarca os cinco preceitos e o ideal, a Ação Correta, a Linguagem Correta e Modo de Vida Correto do Nobre Caminho Óctuplo. A observação dessas regras de conduta visa evitar o remorso e a agitação mental e com isso, contribuir para o ambiente de bem-estar e tranqüilidade da mente.

Mas mesmo tomando todas essas precauções, é inevitável que as dificuldades surjam, e nesse aspecto, uma pessoa mais experiente pode ajudar bastante evitando que o meditador perca tempo em demasia com problemas de fácil solução. Por outro lado, o meditador tem de estar preparado para emoções fortes que podem se encontrar contidas dentro da mente e que devido à prática da meditação encontrem uma forma de vir à tona e assim impossibilitar que a mente se tranquilize. Nesse caso, o mais prudente é descontinuar a prática da meditação até que ele receba instrução adequada de como lidar com esse aspecto da prática, e para isso a ajuda de um meditador mais experiente ou de um professor será necessária, pois se essa emoção for demasiado intensa e perturbadora, a prática da meditação poderá alimentá-la.

No entanto, há algumas dificuldades que o meditador irá enfrentar e para as quais ele mesmo terá de encontrar a solução, pois as experiências das pessoas variam muito e nem sempre um meditador mais experiente, ou um professor, terá uma resposta satisfatória. Mesmo que o professor tenha tido uma experiência semelhante, as soluções para as dificuldades na meditação podem variar de pessoa para pessoa. Nesses casos o meditador terá que agir como seu próprio professor, ser aluno e professor ao mesmo tempo. Para conseguir isso é necessário ser muito observador e estar disposto a fazer experimentos, tentar diferentes alternativas para avaliar o resultado, é dessa forma que o meditador irá conhecer melhor a sua mente. O importante é não ficar frustrado com as dificuldades que forem encontradas, lembrando sempre que a paciência e a equanimidade são qualidades mentais importantes e que são justamente as dificuldades que fazem com que elas amadureçam.

Lembro de uma história do Ajaan Mun, um dos fundadores da tradição de florestas da Tailândia, que no início da sua carreira como monge, perambulando pelas florestas da Tailândia, ao meditar, com a mente concentrada, tinha a visão de um cadáver e não sabia bem o que fazer com aquilo. Ele recorreu ao seu companheiro monge para pedir ajuda mas este foi incapaz de ajudá-lo, pois as suas experiências meditativas eram completamente distintas. Ajaan Mun teve de encontrar a resposta sozinho através da própria perspicácia. Através da sua determinação e esforço Ajaan Mun acabou se convertendo num dos mais renomados mestres de meditação na Tailândia no século XX. Para aqueles que o conheceram Ajaan Mun era um iluminado. A tradição que ele estabeleceu se mantém viva até os dias de hoje, não só na Tailândia, mas em vários monastérios estabelecidos pelos seus discípulos em muitos países da América do Norte, Europa e Oceania.

Uma pessoa com a mente instável,
que não compreende o verdadeiro Dhamma,
que tem convicção hesitante:
a sabedoria não chega à sua plenitude.
                    Dhammapada 38

Para mais informações sobre como desenvolver a prática de meditação.

Veja também A Meditação e a Ciência. Artigos e notícias sobre estudos cientifícos dos efeitos da meditação.




Posso Confiar nos Suttas?


O registro dos ensinamentos do Buda podem ser encontrados nos Suttas que são discursos proferidos pelo próprio Buda, ou pelos seus discípulos mais próximos. São cerca de 11.500 discursos. O número de Suttas pode apresentar alguma variação dependendo da forma como alguns Suttas são agrupados ou divididos.

Há duas coleções de Suttas que são reconhecidas por estudiosos e acadêmicos como contendo os ensinamentos originais do Budismo. Essas coleções são os Nikayas em Pali e os Agamas em Chinês. Os demais Suttas, principalmente aqueles que fazem parte da tradição Mahayana, são reconhecidos por estudiosos e acadêmicos como tendo sido compostos muito tempo depois do falecimento do Buda e portanto não fazem parte do conjunto original de ensinamentos.

A questão que pode surgir na mente das pessoas é se esses ensinamentos originais são de fato originais e se são confiáveis, no sentido de expressarem aquilo que de fato foi ensinado pelo Buda.

Há vários argumentos que respondem positivamente a essas questões, ou seja, que de fato os Suttas originais são confiáveis e expressam aquilo que o Buda ensinou. Os principais argumentos são os seguintes:

1. O exemplo vivo da Sangha

Em geral os Suttas mencionam explicitamente que o texto foi dito pelo próprio Buda ou em outros casos pelos seus discípulos mais próximos.

Além dos Suttas o Buda também estabeleceu o Vinaya que é o conjunto das regras monásticas. A Sangha, ou a comunidade de monges e monjas, é bastante variada nos diversos países nos quais o Budismo é praticado. Variada no sentido de adotar com mais rigor ou menos rigor as regras definidas no Vinaya. O Buda não fez exceções em termos de adoção ou não dessas regras. Quem quer fazer parte da Sangha estabelecida pelo Buda adota as regras do Vinaya integralmente. Mas a realidade é que existem muitas pessoas que se apresentam como monges/monjas, vestem os mantos característicos, mas não seguem as regras com rigor.

Nos países típicos do Budismo Theravada há monges que fazem parte daquilo que é conhecido como "tradição das florestas", que no geral seguem os ensinamentos dos Suttas e do Vinaya com rigor. No Ocidente, bem como na própria Tailândia, é bem conhecida a tradição das florestas do falecido mestre Ajaan Chah. Nessa tradição pode ser encontrado o exemplo vivo da Sangha ou seja monges que vivem e praticam de acordo com aquilo que foi ensinado pelo Buda há mais de 2.500 anos, de acordo com os Suttas e o Vinaya. Conhecendo e convivendo com os monges dessa tradição é possível confirmar que os ensinamentos contidos nos Suttas e no Vinaya conduzem à realização assegurada pelo Buda, expressa na completa libertação da mente.

Esse exemplo vivo da Sangha assegura que os ensinamentos aos quais temos acesso hoje são autênticos pois cumprem o que prometem. Esse argumento por si só já deveria ser suficiente para convencer qualquer um que os ensinamentos dos Suttas são confiáveis e funcionam. Mas como poucas pessoas terão a oportunidade de conhecer e conviver com esses monges iluminados há outros argumentos que podem ajudar a depositar confiança nos Suttas.

2. Primeiro Concílio

De acordo com os registros históricos, alguns meses após a morte do Buda houve um primeiro concílio (sangiti) com a participação de 500 bhikkhus arahants no qual foram recitados e acordados os ensinamentos dos Suttas e as regras do Vinaya. Esse passou a ser o registro oficial dos ensinamentos do Buda.

3. Tradição Oral

Durante cerca de 500 anos os ensinamentos que foram acordados no primeiro concílio foram preservados apenas através da tradição oral. Esse é um ponto que levanta muitas suspeitas na mente de muitas pessoas quanto à autenticidade dos Suttas pois todos sabem que a memória está sujeita a falhas, conforme já foi demonstrado em vários tipos de experimentos. No entanto, há argumentos em favor da fidelidade da transmissão oral:

- A Índia mantém até hoje uma forte tradição oral que teve origem, muito antes da época do Buda, com a preservação dos ensinamentos dos Vedas dos Brâmanes. Portanto já na época do Buda a tradição da transmissão oral já existia com pessoas sendo treinadas nesse tipo de habilidade. Os editais gravados em rocha do imperador Ashoka indicam que existia a linguagem escrita, no entanto para a preservação de ensinamentos tão preciosos como os Upanishads dos Brâmanes e os Suttas do Buda, a tradição oral era considerada como mais confiável.

- Os Suttas devem ter sido discursados e provavelmente foram editados de tal forma a facilitar a memorização. Por exemplo com o uso de sinônimos, de símiles, padronização do vocabulário e frases. A estrutura dos textos que para nós hoje é repetitiva e algumas vezes enfadonha, teve como propósito facilitar a memorização. É possível supor que o Buda tenha empregado recursos mnemônicos nos seus discursos, mas também podemos imaginar que os editores dos Suttas, provavelmente na sequência do primeiro concílio, tenham adotado mais recursos, como por exemplo a padronização de trechos, também com o propósito de facilitar a memorização dos textos.

- Em Myanmar na atualidade há monges capazes de memorizar e recitar todos os Suttas da completa coleção dos Nikayas provando que essa não é uma tarefa impossível.

- Quem tiver a curiosidade de conhecer um pouco mais sobre como expandir e dar mais confiabilidade à capacidade de memorização recomendo ler os livros "Moonwalking with Einstein" (Joshua Foer) e "The Memory Book" (Harry Loraine & Jerry Lucas).

4. Registros por Escrito

Os Suttas foram registrados na forma escrita pela primeira vez no Sri Lanka antes do início da era Cristã. Havia uma situação de conflitos e fome no país e um grande risco da perda dos ensinamentos. Desde então ambos sistemas - o registro escrito e a tradição de memorização dos ensinamentos têm sido preservados.

5. Harmonia Interna

Aqueles que já tiveram a oportunidade de ler muitos, ou mesmo poucos Suttas, devem ter notado a coerência ou harmonia interna dos Suttas. Em outras palavras, que numa coleção tão vasta de ensinamentos as idéias apresentadas são absolutamente coerentes entre si, sem contradições ou idéias conflitantes, que à primeira vista poderia ser esperado de um conjunto tão amplo. Essa harmonia interna dos Suttas é um forte indício de que esses ensinamentos tiveram uma única origem pois se tivessem sido compostos ao longo do tempo por distintas pessoas não seria surpreendente encontrar contradições e idéias conflitantes, aliás tal como ocorre na literatura Mahayana.

6. Nikayas, Agamas e Ashoka

No ápice do seu governo, por volta do ano 250 antes da era Cristã, o império de Ashoka se estendia pela quase totalidade do sub-continente Indiano até Kandahar no atual Afeganistão e o Himalaia ao norte. Ashoka é creditado pela transformação do Budismo de mais uma das várias religiões da índia numa das principais religiões mundiais.

O elemento mais importante com relação a Ashoka, para responder a questão da confiabilidade dos suttas, é que ele patrocinou um Concílio da Sangha Budista na sua capital em Pataliputra por volta do ano 250 antes da era Cristã. A importância desse Concílio foi a unificação da Sangha, com a exclusão de elementos que não se adequavam ao Vinaya e a unificação dos ensinamentos com a refutação das doutrinas conflitantes com os ensinamentos originais. Na sequência Ashoka enviou monges emissários para distintas regiões dentro e fora do seu império, destacando-se o Sri Lanka, no qual Mahinda, filho de Ashoka, transmitiu os ensinamentos do Buda ao rei Mogaliputta Tissa que acabou adotando o Budismo como religião oficial do estado, dando origem à tradição Theravada que até hoje continua florescendo no Sri Lanka.

Também foram enviados emissários para o norte da Índia, na região da Caxemira, que mais tarde acabou sendo conhecida como a tradição Sarvastivada. Os ensinamentos da escola Sarvastivada acabaram encontrando o seu caminho para a China, onde foram preservados traduzidos para o Chinês.

Portanto, cerca de 250 anos antes da era Cristã, entre 150 e 250 anos depois da morte do Buda (não há acordo com relação à data precisa), Ashoka enviou emissários com os ensinamentos do Buda para uma região no extremo norte do sub-continente Indiano e outra no extremo sul, na ilha do Sri Lanka, cerca de 3.000 km de distância uma da outra. Esses ensinamentos foram preservados, estudados, praticados e transmitidos de forma isolada em cada região e acabaram se convertendo no que hoje conhecemos como os Nikayas em Pali e os Agamas em Chinês.

Desde meados do séc. XIX, e com maior intensidade nos últimos 20 anos, têm sido feitos estudos comparativos entre essas duas coleções e nesses estudos é que pode ser encontrada mais uma justificativa para a confiabilidade dos Suttas. Pois em termos doutrinários esses estudos confirmam que há sintonia entre os ensinamentos das duas coleções, ou seja ambas coleções apresentam perfeita coerência em termos dos ensinamentos apresentados. Visto que ambas coleções foram transmitidas e preservadas em áreas geográficas muito distantes uma da outra, é possível afirmar que ambas coleções, dada a sua harmonia em termos doutrinários, possuem uma origem comum que só pode remontar ao próprio Buda.

Em resumo, o exemplo vivo da Sangha combinado com a harmonia doutrinária interna na coleção dos Nikayas e dos Agamas, bem como nos estudos comparativos entre essas duas coleções, deveria ser suficiente para que qualquer um deposite confiança nos ensinamentos contidos nos Suttas.

Os questionamentos que existem hoje em relação à confiabilidade da memória é um fenômeno que provavelmente teve início com a disponibilidade de livros impressos, à partir do séc. XVI. Antes disso, todo conhecimento que alguém dispunha dependia da sua memória e havia métodos de treinamento para aumentar a capacidade de memorização e a sua confiabilidade.

Quem estiver interessado numa análise mais profunda e extensa sobre a autenticidade dos ensinamentos originais do Buda, recomendo a leitura do livro: The Authenticity of the Early Buddhist Texts, escrito por Bhikkhu Sujato e Bhikkhu Brahamali.

 

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Revisado: 16 Abril 2016

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